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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

 

Abdulrazak Gurnah


PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

O escritor tanzaniano, radicado no Reino Unido desde o final da década de 1960, leva o prêmio mais importante das letras universais



Andrea Aguilar
Madri, 7 Oct 2021

Começou a escrever aos 21 anos como um jovem refugiado tanzaniano no Reino Unido, e nesta quinta-feira, aos 73, estava na cozinha da sua casa quando recebeu um telefonema da Academia Sueca para lhe informar que ganharia o maior prêmio literário que existe. Horas depois, em Estocolmo, era anunciado ao público que o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, dotado de 10 milhões de coroas suecas (6,28 milhões de reais), foi dado ao tanzaniano Abdulrazak Gurnah, “por sua comovedora descrição dos efeitos do colonialismo na África e do destino dos refugiados, no abismo entre diferentes culturas e continentes”. A surpresa foi notável não só para o autor, cujo nome estava fora das listas e das apostas.


Nascido em 1948 na ilha de Zanzibar, Gurnah escreve em inglês e já lançou 10 romances – todos inéditos no Brasil – como Paradise (1994), que foi indicado ao Booker Prize e ao Whitebread Prize. Outros títulos conhecidos são By the sea (2001), Desertion (2015) e os mais recentes Gravel heart (2017) e Afterlives (2020), elogiados pela crítica. Na manhã desta quinta (hora do Brasil), Anders Olsson, membro da academia, explicou como em seu “magnífico último livro ele se afasta das descrições estereotipadas e abre nosso olhar a uma África culturalmente diversa, pouco conhecida em outras partes do mundo”.



Gurnah também escreveu e editou ensaios sobre literatura pós-colonial e é professor emérito no departamento de língua inglesa da Universidade de Kent. Em seus textos analisou o trabalho de outro Nobel, V.S. Naipaul, e de um eterno candidato ao prêmio da Academia, Salman Rushdie – sobre quem também publicou um livro de introdução à obra, Companion to Salman Rushdie (Cambridge University Press, 2007). Mas, na ficção do Nobel de 2021, o que mais ecoa é provavelmente esse exílio britânico sobre o qual o Nobel sul-africano J. M. Coetzee escreveu em Verão. Gurnah é o sexto africano a obter o prêmio, depois do argelino Albert Camus (1957), do nigeriano Wole Soyinka (1986), o egípcio Naguib Mahfouz (1988), e dos sul-africanos Nadine Gordimer (1991) e J. M. Coetzee (2003).


No ano passado, o Nobel de Literatura foi atribuído à poetisa americana Louise Glück. Em 2019, para a polonesa Olga Tokarczuk. O prêmio de 2018, ao austríaco Peter Handke, foi adiado para 2019 devido aos escândalos de abusos sexuais e vazamentos que atingiram a academia sueca no ano anterior. O prêmio para o romancista tanzaniano neste ano revela um autor desconhecido para o grande público, algo que também é parte da tradição da Academia Sueca.


O autor chegou ao Reino Unido no final da década de 1960, após sair do seu país em um momento no qual a minoria muçulmana estava sendo perseguida. Tinha estudado na Universidade Bayero Kano, na Nigéria, e de lá se transferiu para a Universidade de Kent, onde se doutorou em 1982. Seus estudos se centram no pós-colonialismo e no colonialismo, especialmente relacionado com a África, o Caribe e a Índia.


Abdulrazak Gurnah se impôs na decisão final diante de outros nomes que apareciam como apostas para o prêmio neste ano, como a francesa Annie Ernaux, o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o japonês Haruki Murakami, o sul-coreano Ko Un, a guadalupense Maryse Condé ou a chinesa Can Xue. Outros autores que sempre aparecem como favoritos são Don DelilloSalman RushdieAdonis, Jon Fosse, Mircea CărtărescuHilary Mantel e Margaret Atwood.


EL PAÍS

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

Abdulrazak Gurnah

 

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

A obra do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prémio Nobel de Literatura de 2021, vai começar a ser editada em Portugal pela Cavalo de Ferro, a partir do início do próximo ano, anunciou hoje a editora.



18:04 - 26/10/21 POR LUSA
CULTURA 
ABDULRAZAK GURNAH

A publicação da sua obra começará em fevereiro/março de 2022 com "Afterlives", o mais recente romance do escritor que se radicou no Reino Unido em 1968 para fugir da perseguição religiosa no seu país.

Seguem-se "Paradise", a obra que revelou Abdulrazak Gurnah como escritor, em maio, e "By the Sea", em setembro.

"Paradise", de 1994, partiu de uma viagem de investigação que o autor fez à África Oriental por volta de 1990, e inclui uma referência a Joseph Conrad.

"Afterlives", publicado em 2020, é uma espécie de sequela de "Paradise", pegando-lhe no ponto em que acaba: o cenário é o início do século XX, um tempo antes do fim da colonização alemã da África Oriental em 1919.

Quanto ao romance "By the sea", editado em 2001 e o único do autor que teve publicação em Portugal, pela Difel, em 2003, com o título "Junto ao mar", foca-se na identidade e autoimagem dos refugiados.

No início de 2023, a Cavalo de Ferro prevê publicar "Desertion", romance de 2005, que usa uma história de paixão trágica para iluminar as vastas diferenças culturais na África Oriental colonizada.

"É um absoluto privilégio incluir Abdulrazak Gurnah entre os autores da Cavalo de Ferro e poder divulgar a sua obra junto dos leitores portugueses. Uma obra importante, que ajuda a repensar questões que se posicionam no centro das preocupações do mundo atual, com uma voz que ainda teima em ser considerada periférica", afirmou o editor da Cavalo de Ferro, Diogo Madre Deus.

Abdulrazak Gurnah, nascido em 1948 em Zanzibar, na Tanzânia, foi o primeiro negro africano a ser reconhecido pela Academia Sueca em mais de 30 anos, depois do nigeriano Wole Soyinka em 1986.

Todo o seu trabalho e obra foi dedicado aos legados do colonialismo, exílio e dos refugiados, temas que refletem a sua própria experiência de vida.

O autor cresceu em Zanzibar, mas após a libertação pacífica do domínio colonial britânico, em dezembro de 1963, Zanzibar passou por uma revolução que, sob o regime do Presidente Abeid Karume, levou à opressão e perseguição de cidadãos de origem árabe, e à ocorrência de massacres.

Pertencente ao grupo étnico vitimizado, após terminar a escola Abdulrazak Gurnah foi forçado a deixar a sua família e a fugir do país, a recém-formada República da Tanzânia. Tinha então 18 anos de idade.

O autor, que vive no Reino Unido desde então, foi distinguido "pela sua penetração descomprometida e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no espaço entre culturas e continentes".

Segundo a Academia Sueca, "a dedicação de Gurnah à verdade e a sua aversão à simplificação são impressionantes. Isto pode torná-lo sombrio e intransigente, ao mesmo tempo que segue os destinos dos indivíduos com grande compaixão e compromisso inflexível".

A academia destacou ainda, na sua obra, "uma exploração interminável impulsionada pela paixão intelectual", que está presente em todos os seus livros, nomeadamente no seu mais recente romance, 'Afterlives'.

A obra do autor será ainda publicada por outras editoras do grupo Penguin Random House, no qual se inclui a Cavalo de Ferro, nomeadamente pela chancela Companhia das Letras, no Brasil, e pela Salamandra, em língua espanhola.

Ao longo da sua carreira literária, Abdulrazak Gurnah publicou dez romances e uma série de contos. O tema da perturbação dos refugiados atravessa todo o seu trabalho, e embora o suaíli fosse a sua primeira língua, o inglês tornou-se a sua ferramenta literária.

CULTURA AO MINUTO

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / Un Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

 

Abdulrazak Gurnah


NOBEL DE LITERATURA

Um Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

Repassamos alguns dos temas que irrigam a obra do novo Nobel de Literatura, o escritor de origem tanzaniana Abdulrazak Gurnah


Chema Caballero
Madri, 9 Oct 2021

A prosa de Abdulrazak Gurnah é polida e limpa, de fácil leitura. Também tem um retrogosto às narrações e conversas que se escutam em solo africano, o que faz apreciar cada uma das palavras. Mas sob ela fluem muitas outras coisas, horrores e atrocidades cristalizados em uma constelação de temas escassamente tratados nas literaturas africanas. Um deles é a presença das comunidades asiáticas assentadas na África oriental já no século XIX. Homens e mulheres que fugiram da pobreza na Índia e na Península Arábica e encontraram um meio de vida nessa região. Muitos foram comerciantes à procura de marfim e controlaram o tráfico de escravos do interior às regiões costeiras. Mercadorias que trocavam por quinquilharias, fuzis e pólvora, como reflete o autor em sua obra.


Mais tarde, os britânicos impulsionariam a chegada dessas pessoas como mão-de-obra qualificada à construção das ferrovias, por exemplo, em suas colônias da África oriental, e para preencher os postos de trabalho para os que não consideravam os nativos aptos. Mas os indianos e os omanis já estavam lá antes da chegada dos colonos. Também na atual Tanzânia, país onde Gurnah nasceu. E, entretanto, pouco se falou deles. Nos últimos anos, alguns autores lançaram um pouco de luz sobre essas comunidades, como é o caso do queniano Peter Kimani com Dance of the Jakaranda (2017) e a britânica Hafsa Zayyan em We Are All Birds of Uganda (2020). Muito antes deles, Gurnah sempre colocou o centro de sua narrativa nessas pessoas e descreve com detalhes e ternura seus costumes e formas de vida. Talvez tenha sido o pioneiro nesse campo.


Quando os alemães chegaram à África ocidental já encontraram os asiáticos lá. E essa é outra originalidade da literatura do tanzaniano. Muitos de seus romances se situam no período colonial alemão, no que foi a África oriental alemã (a Deutsch-Ostafrika), um território que compreendia a atual parte continental da Tanzânia, além de Ruanda e Burundi. A colônia se instaurou na década de 1880 quando as tropas alemãs intervieram para deter uma revolta contra a Companhia Alemã da África Oriental que operava na região e se manteve até o final da Primeira Guerra Mundial, quando após a derrota alemã a Sociedade das Nações entregou Ruanda e Burundi à Bélgica e Tanganica, como era conhecida a parte continental da atual Tanzânia, ao Reino Unido. Em seu último livro, Afterlives (2020), Gurnah mostra a resistência alemã à invasão britânica durante a guerra e o papel desempenhado pelos askaris, as tropas nativas que lutavam (forçadamente na maioria dos casos) ao lado dos alemães.


Foram escritos muitos romances que denunciam os efeitos causados pela colonização britânica e francesa nas sociedades africanas. Vale citar como exemplo o clássico por excelência das literaturas africanas: O Mundo se Despedaça (1958) do nigeriano Chinua Achebe. Mas poucas vezes se falou da colonização alemã nas literaturas africanas.


Esta, da mesma forma que as outras, rompeu a harmonia existente nas diversas sociedades presentes no continente africano anterior à sua chegada impondo suas normas e arrogando-se a faculdade de arrecadar impostos. Além disso, tratou com mão de ferro qualquer tentativa de dissidência e rebeldia. Essa intervenção convulsionou todo um sistema social e de relações que até aquele momento funcionava e gerou uma violência nunca antes vivenciada na área. No que talvez seja o melhor romance do tanzaniano – Paradise (1994) –, essas questões estão muito presentes e de maneira muito sutil se mostra como tudo se despedaça com a chegada dos alemães.

Mas Gurnah não é ingênuo e não tenta mostrar uma África pré-colonial idílica como talvez o façam Achebe e outros contemporâneos seus. A África que existia antes da chegada dos colonos era uma África cheia de contradições com suas diferenças, desigualdades, superstições e muita crueldade. Mas, por mais brutal que ela fosse, nunca seria como a dos alemães, homens frios, rígidos e muito seguros de si mesmos, tanto que os mitos populares diziam que “comem ferro” como aponta o autor em algumas de suas obras.


Todas as colonizações se caracterizam por seus massacres, e a alemã não é diferente. Basta lembrar o genocídio dos povos herero e namaqua na atual Namíbia. Em Tanganica isso também ocorreu. Lá foram massacrados, pelo menos, 75.000 tanzanianos para reprimir a rebelião Maji Maji (1905-1907) em que diversos povos se sublevaram contra a administração alemã pelas carências e pobreza geradas pelas políticas coloniais alemãs que exigiam aos camponeses prestar trabalhos forçados nas plantações de algodão, principalmente, para ser seu produto exportado à metrópole. Isso fazia com que precisassem abandonar seus próprios campos que eram os que os alimentavam. Essa brutalidade da colônia alemã fica muito bem evidenciada na narrativa de Gurnah.


Um terceiro tema, talvez menor e mais transversal, muito presente na obra do tanzaniano, é o do racismo. Os asiáticos consideram os africanos inferiores e os tratam como tal, impondo normas discriminatórias nos espaços que controlam. Essa realidade ainda pode ser percebida hoje nos países da África oriental. O próprio Gandhi foi acusado há alguns anos desse racismo durante sua estadia na África do Sul, o que causou manifestações e protestos em várias partes do continente africano que culminaram com a retirada de suas estátuas em algumas universidades como aconteceu na de Gana em 2018. Os alemães pensam o mesmo dos nativos, mas também dos asiáticos e tratam os dois grupos com igual desprezo.


É possível que seja a presença dessas temáticas e outras na obra de Gurnah ou qualquer outro motivo o que tenha levado um comitê de suecos a conceder a ele neste ano o Nobel da literatura. Talvez também tenha influenciado o fato desse comitê parecer gostar de rotacionar de continente e de gênero a cada ano, em uma tentativa de ser paritário ou algo do tipo. Por isso, era de se supor que neste ano o prêmio iria a um homem africano. Todas as apostas indicavam o queniano Ngugi wa Thiong’o, eterno candidato à premiação e, entretanto, não foi assim.


Por mais que possamos gostar da obra de Gurnah, se nos fosse dada a oportunidade de escolher teríamos preferido que o prêmio fosse para Thiong’o. Na literatura deste estão presentes muitas das questões tratadas por Gurnah, mas talvez apresentadas com mais crueza. Além disso, a perspectiva tomada pelo queniano é diferente, mais a partir dos últimos da terra, os mais estropiados e pisoteados. Ele relata as lutas de independência, o sacrifício do povo, a esperança quando se consegue a liberdade e o desencanto da realidade quando os que lideraram aquele sonho se assentam no poder e o utilizam em benefício próprio. E essas críticas custaram a ela a prisão, a tortura e o exílio. Mas talvez Thiong’o seja revolucionário e radical demais para os membros do comitê.


Thiong’o é uma referência das literaturas africanas, bem conhecido e acompanhado em seu país, onde suas obras são publicados em kikuyu e inglês, e em todo seu continente. Gurnah é praticamente um desconhecido em seu país de origem. Mora no Reino Unido e lá desenvolveu sua carreira. É muito difícil encontrar seus livros na Tanzânia, que precisam ser importados do Reino Unido. São encontrados somente na livraria de um centro comercial frequentado principalmente por expatriados a preços que somente esses expatriados podem pagar.


Humbert, de Arusha, no norte do país, confirma isso: “Pouca gente o conhece aqui, de modo que o prêmio passou praticamente despercebido. Somente o Governo postou algumas mensagens nas redes sociais parabenizando-o”. Mussa, em Zanzibar, diz: “Parece que há um escritor famoso que nasceu nessa ilha e não sabíamos”. Por fim, Abdurahman em Dar es Salaam enfatiza o dito pelos anteriores ao afirmar que “dizer que ninguém conhece Gurnah neste país talvez seja um pouco exagerado, mas devem ser bem poucos os que ouviram falar dele antes da notícia da premiação. Aqui, somos mais de literatura escrita em suaíli”.


Mas não vamos cair na armadilha de elucidar se existem as literaturas africanas e, em caso afirmativo, o que são. O escritor sudanês Abdelaziz Baraka Sakin, autor de The Messiah of Darfur, já se meteu nessa enrascada nessas mesmas páginas.


O fato de ser capricho de suecos e não satisfazer nossos desejos não impede que o Nobel outorgue um reconhecimento merecido a um autor que conseguiu com que o horror da colonização não seja esquecido, entre tantas outras coisas. Além disso, servirá para que seus livros sejam divulgados e os leitores tenham a oportunidade de ler narrativas onde “o universal não seja o ocidental”, como diz a especialista em literaturas africanas Sonia Fernández Quincoces.



sábado, 25 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”


Abdulrazak Gurnah



PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Abdulrazak Gurnah: “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”

Vencedor do Nobel deste ano reflete sobre o conceito de literatura pós-colonial e as limitações do reconhecimento. “É a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores”


Andrea Aguilar

28 Nov 2021


Pouco mais de um mês depois de receber a ligação da Academia Sueca para informá-lo de que havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah (Zanzibar, 1948) se conectava na segunda-feira passada por videochamada, de Barbados. Embora mantenha a sua residência habitual no Reino Unido, no condado de Kent, em cuja universidade fez o doutorado e lecionou durante quase três décadas, viaja com frequência para as Antilhas, pois sua mulher tem família ali.


Conciso e cortês, veste uma camisa de linho branco e está em um cômodo de madeira pintado da mesma cor e que nos oferece poucas referências do lugar. Já redigiu o discurso de aceitação do Nobel, que não irá buscar em Estocolmo, mas na Embaixada da Suécia em Londres.


A organização optou por manter a cautela na pandemia e celebrar os prêmios de acordo com o país de residência dos premiados. Gurnah trata da questão dizendo que suas palavras na cerimônia “não trarão grandes surpresas” e sem querer antecipar as ideias ou tópicos que abordará nessa verdadeira aula magna.


Autor de uma dezena de romances, Gurnah não aparecia nas apostas do Nobel. Segundo ele, recebeu o telefonema do comitê sueco com genuína surpresa, mas a verdade é que seu nome já havia constado da lista de indicados a dois dos mais conceituados prêmios da língua inglesa: o Booker Prize e o Whitebread. Foi em 1994, graças ao seu quarto livro de ficção, Paradise — Paraíso na edição que será reeditada em dezembro na Espanha, com nova tradução. “Não há edição brasileira dessa obra. “Foi o romance que me permitiu chegar a muitos e novos leitores. O processo de indicação ao Booker naquele momento não era tão longo como agora, era algo mais vivo e emocionante, ou pelo menos assim foi para mim”, lembra. Fazia muito tempo que ele havia deixado a Tanzânia, em 1968, quando o Sultanato de Zanzibar foi violentamente derrubado, e se graduou no Reino Unido. Depois de passar alguns anos dando aulas na Nigéria, voltou para a Universidade de Kent, começou a escrever romances e nunca mais foi embora.


Tinha começado aquele romance muito tempo antes e a primeira coisa que escrevera era precisamente a cena com a qual a história se encerra. “Foi assim que Paradise começou, mas depois fui escrevendo outras coisas, trabalhando em outros assuntos. Aquilo ficou guardado no meu caderno por seis ou sete anos sem que eu fizesse nada com isso, embora claramente o tivesse na cabeça. Queria escrever sobre a Primeira Guerra Mundial no leste da África. O tempo passava e comecei a me perguntar como se chegou àquele momento em que os alemães começaram a recrutar soldados ali”, recorda.


Em uma viagem bem longa e sozinho por vários países da região, ficou impregnado da paisagem e de outras histórias que ouviu nesses lugares. E assim foi se aproximando de “uma outra dimensão” sobre o lugar e sua história, sobre essa costa da Tanzânia e do arquipélago de Zanzibar. Tudo isso culminou de forma tangencial em um dos temas centrais da obra de Gurnah como um todo: o colonialismo. “O primeiro encontro com os colonos europeus é mais um dos temas sobre o qual comecei a refletir. Eu vi meu pai muito mais velho pouco antes de ele morrer e pensei que ele devia ser um menino quando aquilo aconteceu. Isso me levou a tentar imaginar como eram as coisas antes de acontecer aquele encontro, antes de esses estranhos chegarem e dizerem que eles estavam no comando de tudo”, explica, e acrescenta que sua escrita muitas vezes toma forma ao longo de muito tempo, e seguindo diferentes meandros, de modo que o princípio pode acabar sendo o final.


Essa extensa geografia de ideias acaba permeando o enredo e o terreno que Paradise percorre. No romance, a criança protagonista passa às mãos de um rico comerciante por causa das dívidas de seu pai e, depois de passar alguns anos trabalhando em dois empórios, se junta a uma grande expedição comercial, uma caravana mítica. Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar em um único dia e algumas cachoeiras majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica. E de fato é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer em outro lugar. O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, argumenta.


Sem dúvida, um dos mapas mais variados dos descritos por Gurnah em seu romance é o humano, com sua rica descrição da mistura de personagens de diferentes religiões e raças, dos árabes aos sikhs, que habitaram aquela parte do mundo no início do século XX e competiam entre si antes da chegada das potências europeias. “Havia distintas sociedades e culturas que estavam em contato sem que houvesse uma autoridade central ou algo semelhante. Eram grupos que não acho correto chamar de nações. Entre si viviam em uma negociação permanente, tanto cultural como linguística. Não havia uma cultura dominante”, afirma. “Aquelas pessoas eram mercadores que comercializavam entre si e se declaravam guerra ou o que fosse.” A descrição do caldeirão de culturas que povoam o romance de Gurnah escapa a qualquer simplificação ou idealização do passado pré-colonial. A violência e a crueldade despontam sem reparos e sem a necessidade de que o colonialismo europeu chegue. “As simplificações do passado e do presente têm que ser contestadas”, sustenta.

“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida”

Essas pessoas falavam línguas diferentes, embora o protagonista, Yusuf, se faça entender em suaíli, um idioma cuja gênese, explica Gurnah, é muito semelhante à do crioulo e que, além do mais, é sua língua materna, embora sempre tenha escrito seus livros em inglês. “Em parte porque é um idioma no qual sempre fui bom, mesmo na escola em comparação com os colegas. Mas talvez o mais determinante é que só pensei em escrever quando cheguei à Inglaterra e, mesmo assim, levei algum tempo até aceitar que era isso que eu queria fazer. E durante todo esse período eu já estava morando no Reino Unido e estudando literatura e lendo em inglês. Tinha muita coisa ruim, mas uma das melhores é o quanto havia para ler, quantos livros eu tinha à minha disposição nas bibliotecas”, explica.


“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida, é o que te dá contexto e relevo ao seu trabalho, o que te permite compreender a área em que você se desenvolve. Então, quando comecei a questionar em que idioma fazer isso, não passou outra coisa pela minha cabeça, fiz no mesmo idioma em que estava lendo.” A sua perspectiva sobre isso mudou com o tempo? “Assim como acontece com os atletas, às vezes você não consegue escolher a prova em que vai competir. Você pode gostar muito de salto em altura, mas pode não ser tão bom como nas maratonas. Algo assim acontece com a minha escrita, não foi de todo uma escolha. Faria diferente hoje? Não, porque gosto de escrever em inglês e sinto prazer ao fazer isso.”


A literatura pós-colonial é o campo de pesquisas dele desde a década de 1980, e em sua obra de ficção desempenha um papel central, conforme destacou o júri do Nobel. Em Paradise, um personagem fala sobre como a história será escrita e como os colonizadores farão com que leiam aquela versão como se fosse “a palavra sagrada”. Gurnah acha que literatura pós-colonial é um termo apropriado? “A primeira coisa é que isso nem existia quando eu estava cursando minha pós-graduação”, diz. O estudo das diferentes literaturas se dava então com base em um prisma geográfico e cada área contava com especialistas que defendiam seu terreno.


“Quem é você para falar sobre literatura caribenha ou literatura africana? Essa era a atitude até que um grupo de teóricos do pós-colonialismo, como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, começou a aplicar certos modelos para identificar algumas experiências comuns e lançou as primeiras flechas. Foi isso que permitiu agrupar escritores de diferentes lugares e afastar-se das autoridades regionais. Só em meados da década de 1990 começamos a dar uma disciplina de Literatura Pós-colonial e isso aconteceu porque era algo útil, não a finalidade de tudo”, relata


“Hoje a discussão sobre o termo literatura pós-colonial não me preocupa. Eu a vejo como uma expressão provisória que nos permite reunir diferentes textos para estudo. É útil no plano acadêmico, mas não creio que seja como fórmula para descrever a literatura fora desse campo”, pondera, e prossegue dizendo que se alguém o descrever como um escritor pós-colonial, ele concordaria, embora isso diga pouco sobre a escrita em si. “A escola pós-colonial não deve ser jogada fora porque vale para algumas coisas, principalmente para ensinar e escrever crítica. Mas acho que essa utilidade, não servirá ao autor. É para quem estuda a sua obra, não para o criador. Quando me perguntam se sou britânico, africano ou zanzibar, bem, não sei, sou tudo isso, mas, serve para alguma coisa? Pode dar aos leitores um pouco de contexto, suponho, mas então você tem que ler os livros para chegar ao escritor.”


Sobre o sucesso da leitura pós-colonial no meio acadêmico, Gurnah tem uma visão positiva por sua enorme diversidade e abrangência. “Os especialistas do século XVIII, os medievalistas ou os estudiosos da dança moderna estão interessados nisso. As mentes se abriram com essa ideia do colonialismo e suas consequências, algo que se relaciona com qualquer aspecto da cultura, tanto os lugares europeus como dos lugares colonizados. Essa consciência surgiu e aumentou a conexão com o mundo não europeu. Os estudos pós-coloniais questionam coisas tão óbvias como os próprios escritos sobre o colonialismo. E é uma disciplina que vai em várias direções, que estuda relações que remontam a muitos séculos e que nos permite compreendê-las melhor.”


A coincidência este ano de vários escritores de origem africana na lista de importantes premiações literárias (o Nobel, o Booker, o Goncourt, o Camões e o Neustadt) levou alguns a se referirem a um fenômeno. Qual é a sua posição sobre isso? “Eles ganharam não porque são de origem africana, mas porque a sua escrita mereceu. Que esses prêmios tenham sido dados a esses escritores é bom, no ano passado não foi assim. Não é que mundialmente se tenha decidido que os africanos deveriam ser premiados, é a escrita que foi premiada”, afirma.


Essa literatura sempre esteve aí e até agora não lhe deram atenção? Esta é uma idade de ouro? “Há muitos escritores aos quais não se presta atenção e há muitos jovens, e alguns não tão jovens, que estão se destacando. E haverá muitos mais. Pode ser que haja um certo tipo de corrente, mas não estou seguro de que a atribuição dos prêmios signifique que haja uma consciência por parte dos leitores... Insisto, é a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores, embora isso tenha algo a ver. O que li sobre este assunto são manchetes sugerindo que este é o ano da África, e entendo que os jornalistas precisam tentar agrupar e resumir, mas o que isso faz é diminuir a conquista de cada um dos escritores premiados. E a história se apresenta como um fenômeno cultural mais do que literário.”


Gurnah conta que está trabalhando em um novo livro e se despede amável e apressado.


EL PAÍS






quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Wole Soyinka / “Tanto o cristianismo como o islamismo têm uma influência perniciosa”

 

O escritor Wole Soyinka, fotografado durante a entrevista ao EL PAÍS nesta segunda-feira em Madri.OLMO CALVO

Wole Soyinka: “Tanto o cristianismo como o islamismo têm uma influência perniciosa”

Primeiro africano negro a ganhar o Nobel Literatura, em 1986, assina um afresco sobre a violência e o fanatismo na Nigéria, mas com valor universal. É seu primeiro romance em quase meio século


BERNA GONZÁLEZ HARBOUR

O Nobel de Literatura Wole Soyinka levou quase meio século para voltar ao romance, e o faz com uma obra monumental, um afresco nada piedoso da Nigéria atual, que bem pode se transformar em retrato universal da violência, do extremismo religioso, do fanatismo, das superstições e da utilização do povo para fins mais ligados à corrupção que ao desenvolvimento. Seu título, Chronicles from the Land of the Happiest People on Earth (Crônicas do país da gente mais feliz da Terra, em tradução literal; o livro ainda está inédito no Brasil), é obviamente satírico, muito satírico, mas o humor que ele destila vai ficando congelado na retina à medida que pastores manipuladores, políticos usurpadores e vítimas de uma violência desalmada vão desfilando numa história coral que adquire unidade pelas mãos da aberração.


Wole Soyinka

Soyinka (Abeokuta, Nigéria, 87 anos) foi o primeiro africano negro a receber o Nobel de Literatura, em 1986. Sua força narrativa é em parte filha de seu olhar crítico, de um ativismo que o levou à prisão nos anos sessenta e que o fez rasgar seu green card norte-americano para denunciar Donald Trump. Claro, com sua escrita nua e sem outros rodeios além dos seus recursos literários, Soyinka transitou mais frequentemente pelo teatro, o ensaio e a poesia, que considera sua casa, em vez do romance. Isso inclusive dá mais importância a este novo livro onde expõe os piores vícios de uma sociedade que é a sua, mas pode ser a de qualquer um. O escritor passa esta semana por Madri, onde conversou com o EL PAÍS.



Wole Soyinka


Pergunta. Foi difícil voltar ao romance?


Resposta. Não havia outra opção. O material vinha se acumulando comigo havia muito tempo, e ficava claro que desta vez precisaria do formato romance para expor minhas ideias. Difícil? Claro que surgiram dificuldades, por ser tão grande, mas me senti muito aliviado ao terminar. Então foi gratificante, também.


P. O senhor aborda em seu livro a corrupção política, mas também o poder religioso. A religião tem um papel maior atualmente que no passado?


R. Sim, sim. E nem sempre um papel saudável. Os nigerianos são religiosos em geral, outras sociedades resolveram o âmbito espiritual e podem dar as costas à religião, mas não é o caso de muitos países na África, e inclusive até certo ponto na Europa. Há pessoas que adquirem grande influência no Governo por professarem a mesma religião que o líder, para o bem ou para o mal. E há também o fenômeno extremista e violento, que acentua todos os outros problemas que temos.


P. Refere-se ao islamismo, ao Boko Haram?


R. Principalmente o islamismo, sim, mas também há os extremistas cristãos como Joseph Kony no leste da África. É muito violento, extremo, inclusive sádico, e sua forma de enfrentar a dissidência é mutilando narizes, lábios e outros membros. É uma aberração surpreendente. Tornou-se um inimigo da humanidade.


P. Em seu romance, o senhor funde o cristianismo e o islamismo. Por quê?


R. Tenho um problema pessoal com ambos, o cristianismo e o islamismo. Ao se pretenderem religiões mundiais que se arvoram em saber tudo, especialmente os extremistas, acreditam que não há outro ponto de vista além do seu, por isso exercem uma grande influência perniciosa que inclui o uso do medo, que é muito diferente da simples influência. Venho da religião prevalente na minha comunidade antes do cristianismo e o islamismo, que é a adoração aos orixás, e esta é a religião mais humanista que conheço, a mais tolerante. E essas duas supostas religiões globais poderiam aprender muito com esta religião, mas nos olham de cima, com desprezo. Por essas razões sou muito crítico com essas duas religiões. De resto, a espiritualidade é algo pessoal e, quando estruturada como parte do instinto da comunidade de compartilhar experiências, ela é boa. O problema surge quando intervém na vida civil.


P. E por que se tornaram tão poderosas?


R. Por muitas razões, também a econômica. Na Nigéria há seitas que prometem uma vida material melhor em troca de segui-las. Usam a miséria e a privação econômica para gerar esperanças, e quando não conseguem o prometido dizem que é porque você não tem fé suficiente. E há a política. Tem gente que abraça outra religião porque é a que está no poder. E depois vem a insegurança das pessoas que preferem pôr toda sua existência nas mãos dos outros, porque não se sentem bem consigo mesmos. É uma mistura desses fatores.


P. O senhor conhece bem os Estados Unidos. A religião se tornou muito poderosa lá também.


R. Muito. Nas últimas décadas, o poder não era considerado um monopólio dos anglicanos brancos. Quando Kennedy se apresentou como católico e ganhou a presidência, foi um fenômeno ver como se salientou a ideia de que isso não ameaçava os direitos. Faz tão poucas décadas que os americanos aceitaram um católico. Depois chegou Ronald Reagan, cuja mulher olhava bola de cristal, era muito supersticiosa e influenciou seu marido com seu olhar religioso e de extrema direita. A extrema direita religiosa nos EUA tem muitos seguidores, e seus eleitores fazem o que mandam.


P. O senhor destruiu sua carteira de identidade de residente nos EUA quando Trump venceu. Arrepende-se hoje que ele não está mais?


R. Não, não, não me arrependo, não podia fazer outra coisa. Esse homem era racista, era um maníaco xenófobo, insultava outras nacionalidades, chamava-os de países de merda. Abertamente. Ele era. Representava o pior dos preconceitos norte-americanos e o retrocesso político, mas foi muito útil porque o que fez foi lembrar que americanos não são tão desenvolvidos, intelectual nem filosoficamente. O pior de tudo na campanha dele foram as execuções sumárias de negros por parte da polícia, de gangues. Morreram muito mais negros de forma extrajudicial pelas mãos da polícia durante a campanha de Trump do que em qualquer campanha presidencial na Nigéria. Eu vi, como antes tinha visto a etapa mais progressista, quando Obama, um negro, pôde se tornar presidente. Mas a direita extrema estava decidida a que isso nunca mais voltasse a ocorrer; Trump viu isso e aproveitou. Para mim, é um inimigo da humanidade. Por isso disse que, se fosse eleito, não queria mais fazer parte dessa comunidade. Então rasguei meu green card e quando preciso ir aos EUA tiro o visto e pronto. A Embaixada dos EUA não tem nenhum problema, me deixam ir, porque lá tem gente boa, o que faz que eu me sinta atraído pelos EUA. Não soltam os cachorros em mim quando chego, pelo contrário, me dão esse visto normal.


P. O movimento Black Lives Matter o surpreendeu?


R. Absolutamente. Houve surtos, mas era a primeira vez que ele atraiu a consciência do mundo. O Black Lives Matter foi muito útil também para o continente africano, porque perante os líderes homicidas podemos dizer: vidas negras importam também na África, então prestem atenção. Isso teve eco em muitos lugares e não me surpreendeu em nada.


P. Também destaca em seu romance a enorme violência, os estupros, as crianças transformadas em vítimas.


R. É um fenômeno que admito que me surpreende. O mundo onde cresci nunca teria tolerado esse nível de crueldade na humanidade. As causas são o desespero econômico, um niilismo decorrente da sucessão do pior tipo de líderes, que infectou ou despertou algo latente na sociedade. Não sabemos como foi, mas nas últimas duas décadas vimos a desvalorização do ser humano, e a religião tem muito a ver com isso. As pessoas se viram sacudidas por explosões em mercados, em fábricas, em escritórios, nas ruas. Há um movimento que se dedica à morte como uma forma de espiritualidade, aos sequestros, como o Boko Haram. E ao longo dos anos a sensibilidade em relação aos outros seres humanos diminuiu. É como uma inoculação no subconsciente, como se consentíssemos com esta violência e depois começássemos a praticá-la porque você se acostuma. Estes grupos extremistas religiosos tiraram o valor da vida e viraram uma infecção, uma doença, e inclusive alguns dos líderes tradicionais recorreram a fazer coisas que não faziam. Há sacerdotes que participam deste sacrifício humano porque lhes dá riqueza, e enquanto o fazem estão louvando a Deus. A aberração se tornou hábito, como a “nova normalidade” da covid-19 — odeio essa expressão—, essa aberração virou moda.


P. Como seu livro foi recebido?


R. Foi um fenômeno incrível, porque os políticos que protagonizam meu livro me procuraram, e inclusive algum famoso que utilizei como modelo veio me fazer perguntas. Um deles subiu ao palco e eu lhe disse: “Antes de abrir a boca, espero que você tenha notado que está no livro”; ele disse: “Sim, sim, mas quero lhe fazer uma pergunta do mesmo jeito”. O que mais me surpreendeu foi a quantidade de políticos que apoiaram o livro de forma ativa.


P. Como definiria sua literatura?


R. Não me considero romancista. Sou dramaturgo. Sinto-me mais à vontade com o teatro e a poesia. Gosto sobretudo de escrever peças de teatro. E acredito na natureza eclética da literatura, o que significa que não persigo nenhum estilo em particular. Simplesmente permito que a musa opere em mim para enlaçar forma e fundo. E espero não pertencer a nenhuma escola.


EL PAÍS


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Louise Glück / Confissão



Louise Glück

Louise Glück

Confissão

Louise Glück / Confesión


Dizer eu não tenho medo – 
Não seria certo.
Tenho medo da enfermidade, da humilhação.
Como todos, tenho meus sonhos,
Mas aprendi as escondê-los
Para proteger-me
De toda a consumação: toda felicidade
Atrai a ira das Parcas.
São irmãs, selvagens –
No final, não tem
Outra emoção apenas inveja.




sábado, 10 de outubro de 2020

Louise Glück conquista o Nobel de Literatura 2020

 

Louise Glück


Louise Glück conquista o Nobel de Literatura 2020

Academia Sueca reconhece o trabalho da norte-americana, considerada uma das escritoras mais talentosas de sua geração. É a primeira mulher poeta a ganhar o Nobel desde a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996


Juan Carlos Galindo

Madri, 8 oct 2020


A poeta norte-americana Louise Glück (Nova York, 77 anos) ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 2020 por sua “inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, torna universal a existência individual”. Glück é a primeira mulher poeta a receber o Nobel desde a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996. “Em seus poemas, o eu ouve o que resta de seus sonhos e ilusões, e ninguém pode ser mais duro do que ela para enfrentar as ilusões do eu”, disse a Academia Sueca sobre Glück. Seus temas são a infância e a vida familiar, através da qual busca o universal. Os mitos e motivos clássicos são duas ferramentas presentes na maioria das suas obras para expressar essas sensações.

A escritora sucedeu os dois vencedores do ano passado, a polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura 2018, ano em que não foi entregue o prêmio) e o dramaturgo e escritor austríaco Peter Handke (2019). Em 2017, a instituição que concede o prêmio Nobel se viu envolta num escândalo tão grande que a obrigou a suspender a premiação no ano seguinte. Em 2019, a entrega do prêmio a Handke, um autor cujas opiniões causaram repúdio na comunidade literária, envolveram novamente a academia em polêmicas.

Nascida na cidade de Nova York, a nova Nobel de Literatura cresceu em Long Island e se formou em 1961 na escola secundária George W. Hewlett. Posteriormente frequentou a faculdade Sarah Lawrence, em Yonkers (Estado de Nova York) e a Universidade Columbia. Ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1993 por sua coletânea The Wild Iris (“a íris selvagem”), e o Prêmio Nacional do Livro em 2014. “Virei uma velha. / Acolhi com gosto a escuridão / que tanto temia”, escreveu em Vita Nova.

A autora —inédita no Brasil— é considerada uma das poetas mais talentosas da sua geração, por sua “excepcional capacidade de fazer que a experiência seja assumida como própria por um leitor surpreso com a intensa percepção de poemas que iluminam acontecimentos absolutamente comuns”, como disse o crítico Andrés Ortega em uma resenha de The seven ages, publicada neste jornal. Sua primeira obra, Firstborn (1968), a fez ser aclamada como uma das poetas mais destacadas da literatura contemporânea do seu país. Com livros como The triumph of Achilles (1985) e Ararat (1990) ficou conhecida fora dos Estados Unidos. Averno (2006) é, na opinião da Academia Sueca, “uma coletânea magistral, uma interpretação visionária do mito da descida de Perséfone ao inferno no cativeiro de Hades, o deus da morte”. O júri ressalta também o valor da última coletânea de Louise Glück, Faithful and virtuous night (2014). Mas Glück não escreve só poesia. Segundo o secretário permanente da academia, Ander Olsson, em seus ensaios ela dialoga com outros poetas cruciais da língua inglesa, como T. S. Eliot e John Keats.

A escritora Louise Glück.THE POETRY FOUNDATION

Turbulências em Estocolmo

Os dois últimos anos foram turbulentos em Estocolmo. Em 2018, a Academia Sueca —envolvida num escândalo sexual e de vazamento dos nomes dos premiados, que desembocou na demissão de vários de seus membros— optou por não conceder o prêmio e se submeter a um processo de reflexão e mudanças. No ano passado, a concessão do Nobel a Handke, um autor que tinha estado em muitos bolões de aposta, mas que parecia impossível de ser premiado por seu apoio ao líder sérvio Slodoban Milosevic durante a guerra da Iugoslávia, desatou novas tormentas.

Todos esses antecedentes levaram muita gente a crer que em 2020 o prêmio seria dado a uma pessoa de reconhecido prestígio e que não gerasse polêmicas. Nas últimas semanas, não houve a tradicional chance de espalhar rumores e especulações nos corredores da Feira de Frankfurt, cancelada devido à pandemia de coronavírus, mas mesmo assim as apostas, bolões e palpites não desapareceram absolutamente. Na casa de apostas Ladbrokes, a escritora Maryse Condé (Guadalupe, Caribe, 83 anos) encabeçava a lista de favoritos, seguida muito de perto por Liudmila Ulitskaya (Rússia, 77 anos). Mas voltaram a errar.

Em 2015, o então presidente dos EUA, Barack Obama, condecorou a poetisa Louise Gluck por sua contribuição com a cultura norte-americana.Em 2015, o então presidente dos EUA, Barack Obama, condecorou a poetisa Louise Gluck por sua contribuição com a cultura norte-americana.ALEX WONG /


Prêmios desiguais


Até 2020 foram entregues 113 prêmios Nobel nesta categoria (apenas um deles concedido a um autor de língua portuguesa, José Saramago). Entre mais de uma centena de premiados, apenas 16 eram mulheres. A idade média dos vencedores é de 65 anos, sendo Ruyard Kipling o mais jovem (41 anos) e Doris Lessing a mais idosa (88 anos).

Entre os ganhadores recentes do Nobel de Literatura se encontram, além dos dois do ano passado, Kazuo Ishiguro (2017, Reino Unido), Bob Dylan (2016, Estados Unidos), Svetlana Aleksievich (2015, Belarus), Patrick Modiano (2014, França), Alice Munro (2013, Canadá), Mo Yan (2012, China), Tomas Tranströmer (2011, Suécia) e Mario Vargas Llosa (2010, Peru).

COMO É ESCOLHIDO O NOBEL DE LITERATURA

A Academia Sueca se ocupa da seleção dos candidatos ao Nobel de Literatura e conta com 18 membros. O comitê do Nobel de Literatura, composto por quatro ou cinco membros, é o órgão que avalia as indicações e faz suas recomendações à Academia. Nesse comitê, presidido pelo professor Anders Olsson, estão os escritores Per Wästberg e Jesper Svenbro, e se somaram três especialistas externos: Mikaela Blomqvist, Rebecka Kärde e Henrik Petersen. O prazo para apresentar as indicações, que podem ser feitas por outros premiados, outras academias e professores, começa em setembro e vai até 31 de janeiro. Em abril restam 15 a 20 candidatos, e em maio a lista é reduzida a cinco, selecionados pelo comitê. Junho, julho e agosto são usados na leitura da obra desses finalistas, e em setembro os membros da Academia deliberam e discutem. O prêmio é anunciado em outubro e entregue em dezembro.


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