segunda-feira, 11 de abril de 2022

Carta de Carlos Drummond de Andrade a Lygia Fagundes Telles





Carta de Carlos Drummond de Andrade a Lygia


Lygia:


Ciranda de Pedra é um grande livro, e V. é uma romancista de verdade — eis, em resumo, o que tenho a dizer-lhe depois de ler seus originais com um interesse que não excluía o espírito crítico e se foi convertendo em emoção de leitor fascinado pelo texto. Contando com grande fôlego, dispondo cenas e episódios com uma segurança de quem sabe o que está fazendo, criando realmente pessoas vivas e não simples personagens, V. compôs um livro perturbador, que nos prende e nos assusta, que nos faz sofrer e ao mesmo tempo nos oferece o remédio compensador da própria arte, pois a força da criação resolve num plano mágico os conflitos que ela mesma suscita. Admirei particularmente o instinto sutil de ficcionista, que evitou as cenas fáceis ou de mau gosto, abrindo caminho sempre através do difícil mas não deixando transparecer o esforço da construção. É um livro duro, mas sem nenhuma passagem escabrosa. As notações psicológicas são as mais finas, e a evolução da trama vai oferecendo quadros de costumes que dão à obra importância como documento social, sem entretanto lhe tirar qualquer de suas qualidades como obra puramente literária, isto é, obra de arte, válida por si mesma.


Carlos Drummond de Andrade e Lygia Fagundes Telles


A cena da noite de Natal é um dos episódios de romance mais completos que já li, e bastaria, sozinha, para consagrar um autor. Lygia, V. correspondeu cem por cento à confiança que os amigos depositavam na sua capacidade criadora. Seu livro ganha longe da nossa ficção raquítica de hoje, e se coloca num plano de dignidade literária que lhe assegura permanência. V. deve sentir-se bem paga de toda a canseira que isto lhe custou, do sofrimento que sem dúvida foi seu companheiro durante dias e dias em que os problemas da criação se acumulavam, desafiando-a. Imagino sua alegria justa, e a do Goffredo também. Demorei a escrever porque, logo depois de ter recebido os originais, tive de ir a Minas, lá me demorando algum tempo. E aqui a vida me pegou na sua engrenagem de coisinhas chatas. Agora vou tratar de levar seu livro ao editor, e o que desejo é que os avaliadores da obra estejam em condições de sentir a sua alta qualidade. A telefonista de Araras esforçou-se há dias para fazer a ligação que V. pedira. Ouvi uma voz no éter: “a fazenda… porque a fazenda…” depois mais nada. E foi pena. Lygia, estou contente e orgulhoso de ser seu amigo (sempre estive, mas agora mais, depois de Ciranda de Pedra).


Abraços e saudades do velho

Carlos




sábado, 9 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles / Pomba enamorada ou Uma história de amor

Paloma, 1949
Pablo Picasso


Lygia Fagundes Telles
Pomba Enamorada ou Uma História de Amor

Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras, tais como, Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão da palavra.

Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos, infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o dobro pra vencer. Não acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença pra fumar lá fora, já estavam dançando o bis da “Valsa dos Miosótis” e estava quente pra danar. Ela deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha enquanto voltavam pra casa. Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele, embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube veio lhe perguntar o que tinha perdido. Meu namorado, ela disse rindo, quando ficava nervosa, ria sem motivo. Mas o Antenor é seu namorado? estranhou o diretor apertando-a com força enquanto dançavam “Nosotros”. É que ele saiu logo depois da valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única, informou com ar distraído. Um cara legal mas que não esquentava o rabo em nenhum emprego, no começo do ano era motorista de ônibus, mês passado era borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa loja de acessórios na Guaianases, quase esquina da General Osório, não sabia o número mas era fácil de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no fundo da oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que podia servi-la? Ela começou a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique, lembra? Ele lembrou enquanto sacudia a cabeça impressionado, Mas ninguém tem este endereço, porra, como é que você conseguiu? E levou-a até a porta: tinha um monte assim de serviço, andava sem tempo pra se coçar mas agradecia a visita, deixasse o telefone, tinha aí um lápis? Não fazia mal, guardava qualquer número, numa hora dessas dava uma ligada, tá? Não deu. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio, isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele. No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou um dia maravilhoso para os nativos de Capricórnio, aproveitando a ausência da dona do salão de beleza que saíra para pentear uma noiva, telefonou de novo e dessa vez falou, mas tão baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho, delicadamente. Só se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na esquina, e então tentou novamente justo na hora em que houve uma batida na rua e todo mundo foi espiar na janela. Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou apoiando-se na mesa, meio tonta. Senta, meu bem, deixa eu ligar pra você, ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e falando com a boca quase colada ao fone: Aqui é o Rôni, coleguinha da princesa, você sabe, ela não está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela, nada de grave, graças a Deus, mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta, lógico. Em voz baixa, amarrada (assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema, a gente sente uma coisa, diria o Rôni mais tarde, revirando os olhos) ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra oficina porque o patrão estava puto da vida e além disso (a voz foi engrossando) não podia namorar com ninguém, estava comprometido, se um dia me der na telha, EU MESMO TELEFONO, certo? Ela que espere, porra. Esperou. Nesses dias de expectativa, escreveu-lhe catorze cartas, nove sob inspiração romântica e as demais calcadas no livro Correspondência Erótica, de Glenda Edwin, que o Rôni lhe emprestou com recomendações. Porque agora, querida, a barra é o sexo, se ele (que voz maravilhosa!) é Touro, você tem que dar logo, os de Touro falam muito na lua, nos barquinhos, mas gostam mesmo é de trepar. Assinou Pomba Enamorada, mas na hora de mandar as cartas, rasgou as eróticas, foram só as outras. Ainda durante esse período começou pra ele um suéter de tricô verde, linha dupla (o calor do cão, mas nesta cidade, nunca se sabe) e duas vezes pediu ao Rôni que lhe telefonasse disfarçando a voz, como se fosse o locutor do programa Intimidade no Ar, para avisar que em tal e tal horário nobre a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial. É muito, muito macho, comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou. E só devido a muita insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu que não queria ouvir nenhum bolero do caralho, Diga a ela que viajei, que morri! Na noite em que terminou a novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao lado de Laurinha, quando depois de tantas dificuldades venceu o amor verdadeiro, ela enxugou as lágrimas, acabou de fazer a barra do vestido novo e no dia seguinte, alegando cólicas fortíssimas, saiu mais cedo pra cercá-lo na saída do serviço.

Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e com o cílio postiço só no olho esquerdo, o do direito já tinha se perdido no aguaceiro. Ele a puxou pra debaixo do guarda-chuva, disse que estava putíssimo porque o Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu ponto de ônibus. Mas a gente podia entrar num cinema, ela convidou, segurando tremente no seu braço, as lágrimas se confundindo com a chuva. Na Conselheiro Crispiniano, se não estava enganada, tinha em cartaz um filme muito interessante, ele não gostaria de esperar a chuva passar num cinema? Nesse momento ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça funda, duas vezes repetiu, Essa filha da puta de chuva e empurrou-a para o ônibus estourando de gente e fumaça. Antes, falou bem dentro do seu ouvido que não o perseguisse mais porque já não estava aguentando, agradecia a camisa, o chaveirinho, os ovos de Páscoa e a caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava namorando com outra, Me tire da cabeça, pelo amor de Deus, PELO AMOR DE DEUS! Na próxima esquina, ela desceu do ônibus, tomou condução no outro lado da rua, foi até a Igreja dos Enforcados, acendeu mais treze velas e quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o menino. Dormiu banhada em lágrimas, a meia de lã enrolada no pescoço por causa da dor de garganta, o retratinho de Antenor, três por quatro (que roubou da sua ficha de sócio do São Paulo Chique), com um galhinho de arruda, debaixo do travesseiro. No dia do Baile das Hortênsias, comprou um ingresso para cavalheiro, gratificou o bilheteiro que fazia ponto na Guaianases pra que levasse o ingresso na oficina e pediu à dona do salão que lhe fizesse o penteado da Catherine Deneuve que foi capa do último número de Vidas Secretas. Passou a noite olhando para a porta de entrada do baile. Na tarde seguinte comprou o disco Ave-Maria dos Namorados na liquidação, escreveu no postal a frase que Lucinha diz ao Mário na cena da estação, Te amo hoje mais do que ontem e menos do que amanhã, assinou P.E. e depois de emprestar dinheiro do Rôni foi deixar na encruzilhada perto da casa de Alzira o que o Pai Fuzô tinha lhe pedido há duas semanas pra se alegrar e cumprir os destinos: uma garrafa de champanhe e um pacote de cigarro Minister. Se ela quisesse um trabalho mais forte, podia pedir, Alzira ofereceu. Um exemplo? Se cosesse a boca de um sapo, o cara começaria a secar, secar e só parava o definhamento no dia em que a procurasse, era tiro e queda. Só de pensar em fazer uma ruindade dessas ela caiu em depressão, Imagine, como é que podia desejar uma coisa assim horrível pro homem que amava tanto? A preta respeitou sua vontade mas lhe recomendou usar alho virgem na bolsa, na porta do quarto e reservar um dente pra enfiar lá dentro. Lá dentro! ela se espantou, e ficou ouvindo outras simpatias só por ouvir, porque essas eram impossíveis para uma moça virgem: como ia pegar um pelo das injúrias dele pra enlear com o seu e enterrar os dois assim enleados em terra de cemitério? No último dia do ano, numa folga que mal deu pra mastigar um sanduíche, Rôni chamou-a de lado, fez um agrado em seus cabelos (Mas que macios, meu bem, foi o banho de óleo, foi?) e depois de lhe tirar da mão a xícara de café contou que Antenor estava de casamento marcado para os primeiros dias de janeiro. Desmaiou ali mesmo, em cima da freguesa que estava no secador.

Quando chegou em casa, a vizinha portuguesa lhe fez uma gemada (A menina está que é só osso!) e lhe ensinou um feitiço infalível, por acaso não tinha um retrato do animal? Pois colasse o retrato dele num coração de feltro vermelho e quando desse meio-dia tinha que cravar três vezes a ponta de uma tesoura de aço no peito do ingrato e dizer fulano, fulano, Como se chamava ele, Antenor? Pois, na hora dos pontaços, devia dizer com toda fé, Antenor, Antenor, Antenor, não vais comer nem dormir nem descansar enquanto não vieres me falar! Levou ainda um pratinho de doces pra São Cosme e São Damião, deixou o pratinho no mais florido dos jardins que encontrou pelo caminho (tarefa dificílima porque os jardins públicos não tinham flores e os particulares eram fechados com a guarda de cachorros) e foi vê-lo de longe na saída da oficina. Não pôde vê-lo porque (soube através de Gilvan, um chofer de praça muito bonzinho, amigo de Antenor) nessa tarde ele se casava com uma despedida íntima depois do religioso, no São Paulo Chique. Dessa vez não chorou: foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão desejando-lhe todas as felicidades do mundo, pediu ao Gilvan que levasse o presente, escreveu no papel de seda do pacote um P. E. bem grande (tinha esquecido de assinar o cartão) e quando chegou em casa bebeu soda cáustica. Saiu do hospital cinco quilos mais magra, amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do outro, o táxi de Gilvan cheio de lembrancinhas que o pessoal do salão lhe mandou. Passou, ela disse a Gilvan num fio de voz. Nem penso mais nele, acrescentou, mas prestou bem atenção em Rôni quando ele contou que agora aquele vira-folhas era manobrista de um estacionamento da Vila Pompeia, parece que ficava na rua Tito. Escreveu-lhe um bilhete contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na perna, que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu. Seria melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco, Antenor teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços, isso diante de um conhecido do Rôni que espalhou a notícia na festa de São João do São Paulo Chique. Gilvan, Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de núpcias enquanto fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou-lhe um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca.

Assinou por puro hábito porque logo em seguida riscou a assinatura, mas levemente, deixando sob a tênue rede de risquinhos a Pomba Enamorada e um coração flechado. No dia em que Gilvanzinho fez três anos, de lenço na boca (estava enjoando por demais nessa segunda gravidez) escreveu-lhe uma carta desejando-lhe todas as venturas do mundo como chofer de uma empresa de ônibus da linha Piracicaba-São Pedro. Na carta, colou um amor-perfeito seco. No noivado da sua caçula Maria Aparecida, só por brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa no bairro deitasse as cartas e lesse seu futuro. A mulher embaralhou as cartas encardidas, espalhou tudo na mesa e avisou que se ela fosse no próximo domingo à estação rodoviária veria chegar um homem que iria mudar por completo sua vida, Olha ali, o Rei de Paus com a Dama de Copas do lado esquerdo. Ele devia chegar num ônibus amarelo e vermelho, podia ver até como era, os cabelos grisalhos, costeleta. O nome começava por A, olha aqui o Ás de Espadas com a primeira letra do seu nome. Ela riu seu risinho torto (a falha do dente já preenchida, mas ficou o jeito) e disse que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi.



quinta-feira, 7 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles / Seminário dos Ratos

 


Lygia Fagundes Telles

Seminário dos Ratos 

Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.
Carlos Drummond de Andrade

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

– Excelência?

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.

– Pode entrar — disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito. — Então? Correu bem o coquetel?

Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se.

Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.

– Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e — consultou o relógio — veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!

– O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.

— Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas — começou com certa hesitação. Animou-se: — A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa- forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência escolhi este azul- pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul… Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.

– É a cor deles. Rattus alexandrinus.

– Dos conservadores?

– Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

– Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires…

– Fui contra a indicação. Desse americano — atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. — Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos — acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. — Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

– Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também têm muitos ratos, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico.

– Pior ainda. Vai sair buzinando por aí — suspirou o Secretário, tentando mudar a posição do pé. — Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

– Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína…

O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.

– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.

– Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça – acrescentou contendo uma risadinha. — O de sempre… Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza… O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo, adorou nossa água-de-coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!

O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um “enfim”. Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto.

– Que barulho é esse?

– Barulho?

– Um barulho esquisito, não está ouvindo?

O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça, concentrado.

– Não estou ouvindo nada…

– Já está diminuindo — disse o Secretário, baixando o dedo almofadado. — Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto… Não ouviu mesmo?

O jovem arregalou os olhos de um azul inocente.

– Absolutamente nada, Excelência. Mas foi aqui no quarto?

– Ou lá fora, não sei. Como se alguém… — Tirou o lenço, limpou a boca e suspirou profundamente. — Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador. O senhor se lembra? Esse Delegado americano…

– Mas, Excelência, ele é convidado do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas!

– Não confio em ninguém. Em quase ninguém — corrigiu o Secretário num sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa. Nos baldaquins azuis da cama. — Onde essa gente está, tem sempre essa praga de gravador. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?

– Bueno, ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito! Teve que engessar um braço. Só pode chegar amanhã, já providenciei o jatinho — acrescentou o jovem com energia. — Na retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura. Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando virão todos num jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!

– Só sei que ele já deveria estar aqui, começa mal — lamentou o Secretário inclinando-se para o copo de leite. Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora. — Enfim, o que me preocupava muito é ficarmos incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas dúvidas.

– Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação. Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

Com dedos tamborilantes, o Secretário percorreu vagamente os botões do colete. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas.

– Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.

– Braço, Excelência. O antebraço, mais precisamente.

O Secretário moveu penosamente o corpo para a direita e para a esquerda.

Enxugou a testa. Os dedos. Ficou olhando para o pé em cima da almofada.

– Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. A ligação é demorada?

– Bueno, cerca de meia hora. Peço já, Excelência?

O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.

– Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou mais forte agora!

O jovem levou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés.

– Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!

– Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí… Tombou para o espaldar da poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. — Quer dizer que o senhor não ouviu nada?

O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou dentro da lareira. Atrás da poltrona. Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim.

– Tem dois empregados lá no gramado, motoristas, creio… Ei, vocês aí!… — chamou, estendendo o braço para fora. Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam agitados, talvez discutissem, mas suponho que nada tenham a ver com o barulho. Não ouvi coisa alguma, Excelência. Escuto tão mal deste ouvido!

– Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade. O primeiro! Lembro que uma noite avisei meus companheiros, O inimigo está aqui com a gente, e eles riram, Bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.

O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.

– Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem? O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou.

– Enfim, não tem importância. Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala.

Entre consternado e tímido, o jovem apontou para o pé enfermo.

– É algo… grave?

– A gota.

– E dói, Excelência?

– Muito.

– Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água! — cantarolou ele, ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical. Pigarreou. Ajustou o nó da gravata. — Bueno, é uma canção que o povo canta por aí.

– O povo, o povo — disse o Secretário do Bem-Estar Público, entrelaçando as mãos. A voz ficou um brando queixume. — Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração.

– Abstração, Excelência?

– Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos — suspirou o Secretário, percorrendo languidamente os botões do colete. Desabotoou o último. — No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos. Não sei por que aqui não se exige mais da iniciativa privada, se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados…

– Mas Excelência, não sobrou nenhum gato na cidade, já faz tempo que a população comeu tudo. Ouvi dizer que dava um ótimo cozido!

– Enfim — sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou.

– Está escurecendo, não?

O jovem levantou-se para acender as luzes. Seus olhos sorriam intensamente.

– E à noite, todos os gatos são pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas, Excelência! O jantar será servido às oito, a mesa decorada só com orquídeas e frutas. A mais fina cor local, encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes. Bueno, eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade, diga-se de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma dor de cabeça? Por um desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então achei prudente encomendar vinho chileno.

– De que safra?

– De Pinochet, naturalmente.

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé.

– Para mim um caldo sem sal, uma canjinha rala. Mais tarde talvez um… — Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando para o jovem: — Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!

O Chefe das Relações Públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada.

– Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!

– Eu não disse, eu não disse? — perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: — Nunca me enganei, nunca! Já faz horas que estou ouvindo coisas, mas não queria dizer nada, podiam pensar que fosse delírio. Olha aí agora! Parece até que estamos em zona vulcânica, como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo…

– Vulcão?

– Ou uma bomba, têm bombas que antes de explodir dão avisos!

– Meu Deus — exclamou o jovem. Correu para a porta. — Vou verificar imediatamente, Excelência. Não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!…
Quando fechou a porta atrás de si, abriu-se a porta em frente e pela abertura introduziu-se uma carinha louramente risonha. Os cabelos estavam presos no alto por um laçarote de bolinhas amarelas.

– What is that?

– Perhaps nothing… perhaps something… — respondeu ele, abrindo o sorriso automático. Acenou-lhe com um frêmito de dedos imitando asas. — Supper at eight, Miss Gloria!

Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que vinha com seu chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, “Excelência” e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa.

– Que barulho é esse?

– Bueno, também não sei dizer, Excelência, é o que vou verificar. Volto num instante. Não é mesmo estranho? Tão forte!

O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:

– E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? — Franziu a cara. — Uma maçada! Cheiros, barulhos e o telefone que não funciona… Por que o telefone não está funcionando? Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!

– Mudo? Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo… Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul?

– Venho de lá. Também está mudo, uma maçada! Procure meu motorista, veja se o telefone do meu carro está funcionando, tenho que fazer essa ligação urgente.

– Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar providências e volto em seguida.

Com licença, sim? — fez o jovem, esgueirando-se numa mesura rápida. Enveredou pela escada. Parou no primeiro lance: — Mas o que significa isso? Pode me dizer o que significa isso?

Esbaforido, sem o gorro e com o avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio correndo pelo saguão. O jovem fez um gesto enérgico e precipitou-se ao seu encontro.

– Como é que o senhor entra aqui neste estado?

O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate.

– Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!

– Não grita, o senhor está gritando, calma — e o jovem tomou o Cozinheiro- Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?

– As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou nem um grão de arroz na panela. Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora!

– Mas quem comeu tudo? Quem?

– Os ratos, doutor, os ratos!

– Ratos?!… Que ratos?

O Cozinheiro-Chefe tirou o avental, embolou-o nas mãos.

– Vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto. Acho que a gente está no mundo deles. Pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea! Até os panos de prato eles comeram. Só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!

– Ainda estão lá?

– Não, assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido. Eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d’água correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando! E cada ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem.

Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!

– Meu Deus, que loucura… E o jantar?!

– Jantar? O senhor disse jantar?! Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram na água fervendo. Cruz-credo, vou me embora e é já!

– Espera, calma! E os empregados? Ficaram sabendo?

– Empregados, doutor? Empregados? Todo mundo já foi embora, ninguém é louco! E se eu fosse vocês, também me mandava, viu? Não fico aqui nem que me matem!

– Um momento, espera! O importante é não perder a cabeça, está me compreendendo? O senhor volta lá, abre as latas, que as latas ainda ficaram, não ficaram? A geladeira não estava fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare um jantar com o que puder, evidente!

– Não, não! Não fico nem que me matem!

– Espera, eu estou falando: o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação. O importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada, disso me incumbo eu, está me compreendendo? Vou já até a cidade, trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os dentes, quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa, quero ver!

– Mas o senhor vai como? Só se for a pé, doutor.

O Chefe das Relações Públicas empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.

Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede, mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no andar superior. Falou quase entredentes.

– Covardes, miseráveis! Quer dizer que os empregados levaram todos os carros? Foi isso, levaram os carros?

– Levaram nada, fugiram a pé mesmo, nenhum carro está funcionando. O José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já!

O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. “Quer dizer que o telefone…”, murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro- Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então, deu- se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela gravata.

No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembrava- se, isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada. Lembrava-se de ter aberto a porta da geladeira. Espiou. Um tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.



quarta-feira, 6 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles / A chave na porta




Lygia Fagundes Telles
A chave na porta



A chuva fina. E os carros na furiosa descida pela ladeira, nenhum táxi? A noite tão escura. E aquela árvore solitária lá no fim da rua, podia me abrigar debaixo da folhagem mas onde a folhagem? Assim na distância era visível apenas o tronco com os fios das pequeninas luzes acesas, subindo em espiral na decoração natalina. Uma decoração meio sinistra, pensei. E descobri, essa visão lembrava uma chapa radiográfica revelando apenas o esqueleto da árvore, ah! tivesse ela braços e mãos e seria bem capaz de arrancar e atirar longe aqueles fios que deviam dar choques assim molhados.

— Quer condução, menina?

Recuei depressa quando o carro arrefeceu a marcha e parou na minha frente, ele disse menina? O tom me pareceu familiar. Inclinei-me para ver o motorista, um homem grisalho, de terno e gravata, o cachimbo aceso no canto da boca. Mas espera, esse não era o Sininho? Ah! é claro, o próprio Sininho, um antigo colega da Faculdade, o simpático Sininho! Tinha o apelido de Sino porque estava sempre anunciando alguma novidade. Era burguês mas dizia-se anarquista.

— Sininho, é você!

Ele abriu a porta e o sorriso branquíssimo, de dentinhos separados.

— Um milagre, eu disse enquanto afundava no banco com a bolsa e os pequenos pacotes. Como conseguiu me reconhecer nesta treva?

— Estes faróis são poderosos. E olha que já lá vão quarenta anos, menina. Quarenta anos de formatura! Aspirei com prazer a fumaça do cachimbo e que se misturava ao seu próprio perfume, alfazema? E não parecia ter envelhecido muito, os cabelos estavam grisalhos e a face pálida estava vincada mas o sorriso muito claro não era o mesmo? E me chamava de menina, no mesmo tom daqueles tempos. Acendi um cigarro e estendi confortavelmente as pernas, mas espera, esse carrão antiquado não era o famoso Jaguar que gostava de exibir de vez em quando?

— O próprio.

Fiquei olhando o belo painel com o pequeno relógio verde embutido na madeira clara.

— Você era rico e nós éramos pobres. E ainda por cima a gente lia Dostoievski.

— Humilhados e ofendidos!

Rimos gostosamente, não era mesmo uma coisa extraordinária? Esse encontro inesperado depois de tanto tempo. E em plena noite de Natal. Contei que voltava de uma reunião de amigos, quis sair furtivamente e para não perturbar inventei que tinha condução. Quando começou a chuva.

—Acho essas festas tão deprimentes, eu disse.

Ele então voltou-se para me ver melhor. Dei-lhe o meu endereço. No farol da esquina ele voltou a me olhar. Passou de leve a mão na minha cabeça mas não disse nada. Guiava como sempre, com cuidado e sem a menor pressa. Contou que voltava também de uma reunião, um pequeno jantar com colegas mas acrescentou logo, eram de outra turma. Tentei vê-lo através do pequeno espelho entortado, mas não era incrível? Eu me sentir assim com a mesma idade daquela estudante da Academia. Outra vez inteira? Inteira. E também ele com o seu eterno carro, meu Deus! na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. Ou quase, pensei ao ouvir sua voz um tanto enfraquecida, rateando como se viesse de alguma pilha gasta. Mas resistindo.

— Quarenta anos como se fossem quarenta dias, ele disse. Você usava uma boina.

— Sininho, você vai achar isso estranho mas tive há pouco a impressão de ter recuperado a juventude. Sem ansiedade, ô! que difícil e que fácil ficar jovem outra vez.

Ele reacendeu o cachimbo, riu baixinho e comentou, ainda bem que não havia testemunhas dessa conversa. A voz ficou mais forte quando recomeçou a falar em meio das pausas, tinha asma? Contou que depois da formatura foi estudar na Inglaterra. Onde acabou se casando com uma colega da universidade e continuaria casado se ela não tivesse inventado de se casar com outro. Então ele matriculou o filho num colégio, tiveram um filho. E em plena depressão ainda passou por aquela estação no inferno, quando teve uma ligação com uma mulher casada. Um amor tão atormentado, tão louco, ele acrescentou. Vivemos juntos algum tempo, ela também me amava mas acabou voltando para o marido que não era marido, descobri mais tarde, era o próprio pai.

— O pai?!

— Um atroz amor de perdição. Fiquei destrambelhado, desandei a beber e sem outra saída aceitei o que me apareceu, fui lecionar numa pequena cidade afastada de Londres. Um lugar tão modesto mas deslumbrante. Deslumbrante, ele repetiu depois de um breve acesso de tosse. Nos fins de semana viajava para visitar o filho mas logo voltava tão ansioso. Fiquei muito amigo de um abade velhíssimo, Dom Matheus. Foi ele que me deu a mão. Conversávamos tanto nas nossas andanças pelo vasto campo nas redondezas do mosteiro. Recomecei minhas leituras quando fui morar no mosteiro e lecionar numa escola fundada pelos religiosos, meus alunos eram camponeses.

— Você não era ateu?

— Ateu? Era apenas um ser completamente confuso, enredado em teias que me tapavam os olhos, os ouvidos... Fiquei por demais infeliz com o fim do meu casamento e não me dei conta disso. E logo em seguida aquele amor que foi só atormentação. Sofrimento. Aos poucos, na nova vida tão simples em meio da natureza eu fui encontrando algumas respostas, eram tantas as minhas dúvidas. Mas o que eu estou fazendo aqui?! me perguntava. Que sentido tem tudo isto? Ficava muito em contato com os bichos, bois. Carneiros. Fui então aprendendo um jogo que não conhecia, o da paciência. E nesse aprendizado acabei por descobrir... (fez uma pausa) por descobrir...

Saímos de uma rua calma para entrar numa travessa agitada, quase não entendia o que ele estava dizendo, foi o equilíbrio interior que descobriu ou teria falado em Deus?

— Depois do enterro de Dom Matheus, despedi-me dos meus amigos, fui buscar meu filho que já estava esquecendo a língua e voltei para o Brasil, a gente sempre volta. Voltei e fui morar sabe onde? Naquela antiga casa da rua São Salvador, você esteve lá numa festa, lembra?

— Mas como podia esquecer? Uma casa de tijolinhos vermelhos, a noite estava fria e vocês acenderam a lareira, fiquei tão fascinada olhando as labaredas. Me lembro que quando atravessei o jardim passei por um pé de magnólia todo florido, prendi uma flor no cabelo e foi um sucesso! Ah, Sininho, voltou para a mesma casa e este mesmo carro...

Ele inclinou-se para ler a tabuleta da rua. Empertigou-se satisfeito (estava no caminho certo) e disse que os do signo de Virgem eram desse jeito mesmo, conservadores nos hábitos assim no feitio dos gatos que simulam um caráter errante mas são comodistas, voltam sempre aos mesmos lugares. Até os anarquistas, acrescentou zombeteiro em meio de uma baforada.

Tinha parado de chover. Apontei-lhe o edifício e nos despedimos rapidamente porque a fila dos carros já engrossava atrás. Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviada mas ele devia estar sabendo, eu não precisava mais falar. Entregou-me os pacotes. Beijei sua face em meio da fumaça azul. Ou azul era a névoa?

Quando subia a escada do edifício, dei por falta da bolsa e lembrei que ela tinha caído no chão do carro numa curva mais fechada. Voltei-me. Espera! cheguei a dizer. E o Jaguar já seguia adiante. Deixei os pacotes no degrau e fiquei ali de braços pendidos: dentro da bolsa estava a chave da porta, eu não podia entrar. Através do vidro da sua concha, o porteiro me observava. E me lembrei de repente, rua São Salvador! Apontei para o porteiro os meus pacotes no chão e corri para o táxi que acabava de estacionar.

— É aqui! Quase gritei assim que vi o bangalô dos tijolinhos. Antes de apertar a campainha, fiquei olhando a casa ainda iluminada. Não consegui ver a garagem lá no fundo, mergulhada na sombra mas vislumbrei o pé de magnólia, sem as flores mas firme no meio do gramado. Uma velhota de uniforme veio vindo pela alameda e antes mesmo que ela fizesse perguntas, já fui me desculpando, lamentava incomodar assim tarde da noite mas o problema é que tinha esquecido a bolsa no carro do patrão, um carro prateado, devia ter entrado há pouco. Ele me deu carona e nessa bolsa estava a minha chave. Será que ela podia?...

A mulher me examinou com o olhar severo. Mas que história era essa se o patrão nem tinha saído e já estava até se recolhendo com a mulher e os gêmeos? Carro prateado? Como esqueci a bolsa num carro prateado se na garagem estavam apenas os carros de sempre, o bege e o preto?

— Decerto a senhora errou a casa, dona, ela disse e escondeu a boca irônica na gola do uniforme. Em noite de tanta festa a gente faz mesmo confusão...

Tentei aplacar com as mãos os cabelos que o vento desgrenhou.

— Espera, como é o nome do seu patrão?

— Doutor Glicério, ora. Doutor Glicério Júnior.

— Então é o pai dele que estou procurando, estudamos juntos. Mora nesta rua, um senhor grisalho, guiava um Jaguar prateado...

A mulher recuou fazendo o sinal-da-cruz:

— Mas esse daí morreu faz tempo, meu Deus! É o pai do meu patrão mas ele já morreu, fui até no enterro... Ele já morreu!

Fechei o casaco e fiquei ouvindo minha voz meio desafinada a se enrolar nas desculpas, tinha razão, as casas desse bairro eram muito parecidas, Devo ter me enganado, é evidente, fui repetindo enquanto ia recuando até o táxi que me esperava.

O motorista tinha o rádio ligado numa música sacra. Pedi-lhe que voltasse para o ponto.

Já estava na escada do edifício quando o porteiro veio ao meu encontro para avisar que um senhor tinha vindo devolver a minha bolsa:

— Não é esta?

Fiz que sim com a cabeça. Quando consegui falar foi para dizer, Ah! que bom. Abri a bolsa e nela afundei a mão mas alguma coisa me picou o dedo. Fiz nova tentativa e dessa vez trouxe um pequeno botão de rosa, um botão vermelho enredado na correntinha do chaveiro. Na extremidade do cabo curto, o espinho. Pedi ao porteiro que depois levasse os pacotes e subi no elevador.

Quando abri a porta do apartamento tive o vago sentimento de que estava abrindo uma outra porta, qual? Uma porta que eu não sabia onde ia dar mas isso agora não tinha importância. Nenhuma importância, pensei e fiquei olhando o perfil da chave na palma da minha mão. Deixei-a na fechadura e fui mergulhar o botão no copo d'água. Agora desabrocha! pedi e toquei de leve na corola vermelha.

Debrucei-me na janela. Lá embaixo na rua, a pequena árvore (parecida com a outra) tinha a mesma decoração das luzes em espiral pelo tronco enegrecido. Mas não era mais a visão sinistra da radiografia revelando na névoa o esqueleto da árvore, ao contrário, o espiralado fio das pequeninas luzes me fez pensar no sorriso dele, luminoso de tão branco.


Texto extraído do livro “Invenção e Memória”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 2000, pág. 89. 





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