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quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / Discurso de Caracas

 

Roberto Bolaño


Roberto Bolaño

Discurso de Caracas

Tradução de Lucas de Sena Lima e Daniel Fernandes Vilela

Os detetives selvagens ganhou o prêmio Rômulo Gallegos de romance. Este discurso não é simplesmente algumas palavras de gratidão; ao contrário, com o humor e leveza que o caracteriza, Bolaño faz uma homenagem a sua geração, aquela que aposta a vida à uma causa mal-aventurada.

Outubro de 1999

Sempre tive um problema com a Venezuela. Um problema infantil, fruto de minha educação desordenada, um problema mínimo mas problema após problema. O cerne deste problema é de índole verbal e geográfica. Também é provável que se deva a uma espécie de dislexia não diagnosticada.

Não quero dizer com isso que minha mãe não me levava nunca ao médico, ao contrário, até os dez anos fui um assíduo visitante de consultas e até de hospitais, mas a partir de então minha mãe creu que eu era forte o suficiente para aguentar tudo. Entretanto, voltemos ao problema. Quando era pequeno, jogava futebol. Meu número era o 11, o número de Pepe e Zagalo no mundial da Suécia, e fui um jogador entusiasmado, mas bastante ruim, já que minha perna boa era a esquerda e se supõe que os canhotos não decepcionam numa partida. No meu caso, isso não era certo e eu decepcionava quase sempre, embora, de vez em quando, uma vez a cada seis meses, por exemplo, fazia uma ótima partida e recobrava uma parte, ao menos, do crédito perdido. Pelas noites, como é natural, antes de dormir, pensava e dava voltas a me lamentar a condição de jogador de futebol. E foi então quando tive o primeiro pressentimento quanto a minha dislexia. Eu chutava com a perna esquerda, mas escrevia com a direita. Isso era um fato. Teria gostado de escrever com a esquerda, mas fazia-o com a direita. E aí estava o problema. Por exemplo, quando o técnico dizia: venha para o seu lado direito, Bolaño, eu não sabia para que lado teria que passar a bola. E outras vezes, inclusive, jogando pela ponta esquerda, diante da voz rouca de meu treinador eu me parava e tinha que pensar: esquerda-direita. Direita era o campo de futebol, esquerda era chutar para fora: havia poucos espectadores, crianças como eu, que rodeavam os miseráveis gramados dos campos de futebol de Quilpué, o de Cauquenes, o da província de Bio-Bio. Com o tempo, supostamente, aprendi a ter uma referência cada vez que me perguntavam ou me informavam de uma rua que estava à direita ou à esquerda, e essa referência foi a mão com que escrevo, se não o pé com que eu chuto a bola. E com a Venezuala tive, mais ou menos pelas mesmas épocas, ou seja, até ontem mesmo, um problema parecido. O problema era sua capital. Para mim, o mais lógico era que a capital da Venezuela fosse Bogotá. E a capital da Colômbia, Caracas.

Por quê? Pois então, uma lógica verbal ou uma lógica das letras. A letra v do nome Venezuela é similar, para não dizer familiar, ao b de Bogotá. E o c de Colômbia é primo e irmão da letra c de Caracas. Isto parece intransigente e provavelmente o é, mas para mim se constituiu em um problema de primeira ordem, chegando em certa ocasião, no México, durante uma conferência sobre poetas urbanos da Colômbia, a falar da potência dos poetas de Caracas, e a gente, gente tão amável e educada como vocês, caiu calada a espera de que depois da fala sobre os poetas caraquenhos, passasse a falar dos poetas bogotanos, mas o que fiz foi seguir falando dos poetas caraquenhos, de sua estética da destruição, e inclusa a comparação com os futuristas italianos, resguardando as distâncias, é claro, e com os primeiros letrados, o grupo de Isidore Isou e Maurice Lemaître, o grupo de onde sairia o germe do situacionismo de Guy Debord e a gente que a essas alturas começou a fazer adivinhações. Não creio que pensavam que os bogotanos haviam migrado em massa para Caracas, já que os caraquenhos tiveram um papel determinante neste grupo de novos poetas bogotanos. Tanto que quando dei a conferência por terminada, com um final abrupto, tal como eu então gostava de acabar qualquer conferência, as pessoas se levantaram, aplaudiram timidamente e marcharam correndo para consultar o cartaz na entrada, e quando eu saí, acompanhado do poeta mexicano Mario Santiago, que sempre ia comigo e que seguramente se deu conta do meu erro embora não tenha me contado: para Mario os erros, os garranchos e os equívocos eram como as nuvens de Baudelaire que passam pelo céu, sabe que deve olhá-las, mas não corrigi-las. Ao sair, dizia, nos encontramos com um velho poeta venezuelano, e quando digo velho relembro esse momento e o poeta venezuelano mais jovem do que vou agora, que nos deixou com lágrimas nos olhos dizendo que devia haver um erro, que ele jamais havia ouvido nem uma palavra sobre esses poetas misteriosos de Caracas.

A esta altura do discurso, pressinto que Dom Rômulo deve estar revirando-se em sua tumba. Mas a quem deram o meu prêmio, estará pensando. Desculpe-me, Dom Rômulo. Mas é que inclusive Dona Bárbara, com b, suena a Venezuela e Bogotá, e também Bolívar suena a Venezuela e a Dona Bárbara; Bolívar e Bárbara, que bela dupla formariam, ainda que os outros dois romances de Dom Rômulo, Cantaclaro e Canaima, poderiam perfeitamente serem colombianas, o que me leva a pensar que talvez o sejam, e que sob minha dislexia se esconda um método semiótico bastardo, ou grafológico, ou metassintático, ou fonemático, ou simplesmente um método poético, e que a verdade das verdades é que Caracas é a capital da Venezuela, da mesma maneira que Bolívar, que é venezuelano, morreu na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile. Não sei se entendem aonde quero chegar. Pobre negro, por exemplo, de Dom Rômulo, é um romance eminentemente peruano. La casa Verde, de Vargas Llosa, é um romance colombiano-venezuelano. Terra nostra, de Fuentes, é um romance argentino e advirto que mais não me perguntem em que baseio esta afirmação porque a resposta será prolixa e fastidiosa. A academia patafísica ensina, de forma por demais misteriosa, a ciência das soluções imaginárias que é, como sabem, aquela que estuda as leis que regulam as exceções. E este sobressalto de letras, de alguma maneira, é uma solução imaginária que exige uma solução imaginária. Mas voltemos a Dom Rômulo antes de enfiar-nos em Jarry e notemos, de passagem, alguns estranhos sinais. Eu acabo de ganhar o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. O 11. Eu jogava com o 11 na camisa. Isto, a vocês, parece uma casualidade, mas a mim me deixa trêmulo. O 11 que não sabia distinguir a esquerda da direita e que portanto confundia Caracas com Bogotá, acaba de ganhar (e aproveito este parêntese para agradecer mais uma vez ao jurado desta distinção, principalmente Ángeles Mastretta) o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. Que pensaria Dom Rômulo disto? Outro dia, falando por telefone, Pere Gimferrer, que é um grande poeta e que além do mais sabe tudo e já leu tudo sobre ele, me disse que há duas placas comemorativas em Barcelona, nas casas onde viveu Dom Rômulo. Segundo Gimferrer, ainda que não tenha posto as mãos no fogo sobre o assunto, emuma destas casas o grande escritor venezuelano começou a escrever Canaima. A verdade é que 99,9% das coisas que Gimferrer disse, me jurou de pés juntos, e então, enquanto Gimferre falava (uma das casas em que havia uma placa não era uma casa, e sim um banco, o que plantava uma série de dúvidas, por exemplo se Dom Rômulo em sua estância em Barcelona — e digo estância, e não exílio, porque um latino-americano jamais está exilado na Espanha — havia trabalhado em um banco ou se o banco veio depois instalar-se na casa onde viveu o romancista), como dizia, enquanto o poeta catalão falava, eu me pus a pensar em minha já distante, mas não por isto menos desgastantes, sobre tudo que há na memória, passeios pelo Ensanche, e me vi outra vez ali, aos trancos em 1977, 1978, talvez 1982, e de repente acreditei ver rua ao entardecer, perto de Muntaner, e vi um número, vi o número 11 e logo caminhei um pouco mais, uns passos mais, e ali estava a placa. Isto é o que vi mentalmente. Mas também é provável que nos anos que vivi em Barcelona passei por esta rua, e vi a placa, uma placa que possivelmente dizia Aquí viveu Rômulo Gallegos, romancista e político, nascido em Caracas em 1884 e falecido em Caracas em 1969 e depois, em letras menores, outras coisas, os livros, os prêmios, etc., e é possível, que eu pensasse, sem deter-me: outro escritor colombiano famoso, e e isto só é possível que eu pensasse se eu não me detivesse, insisto, pois a verdade é que então já havia lido algo de Dom Rômulo como leitura obrigatória não sei se em um liceu chileno ou em uma escola mexicana e gostei de Dona Bárbara, ainda que segundo Gimferrer Canaima seja melhor, e, é claro, sabia que Dom Rômulo era venezuelano e não colombiano. O que realmente significa pouco, ser colombiano ou ser venezuelano, e neste ponto voltamos de rebote como um raio ao b de Bolívar, que não era dislexo e ao que não desgostaria ver uma América Latina unida, um gosto que compartilho com o Libertador, pois a mim dá no mesmo que digam que sou chileno, ainda que alguns colegas chilenos prefiram ver-me como mexicano, ou que digam que sou mexicano, ainda que alguns amigos mexicanos preferem considerar que sou espanhol, ou, plenamente, desaparecido em combate, e inclusive a mesma coisa que me chamem espanhol, ainda que alguns colegas espanhóis gritem aos céus e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em Caracas ou Bogotá, coisa que muito menos me desgosta, muito pelo contrário. O certo é que sou chileno e também sou muitas outras coisas.


E neste momento eu tenho que abandonar Jarry e Bolívar e tentar lembrar daquele escritor que dizia que a pátria de um escritor é a sua língua. Eu não me lembro o nome dele. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em espanhol. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em Inglês ou Francês. A pátria de um escritor, disse ele, é a sua língua. Parece um pouco demagógico, mas concordo plenamente com ele, e eu sei que às vezes não temos outro remédio, a não ser sermos demagógicos, e às vezes não temos escolha senão a dançar um bolero à luz de uma lanterna ou uma lua vermelha. Embora seja verdade que a pátria de um escritor não é a sua língua, não apenas a sua língua, mas as pessoas que queremos bem. E às vezes a pátria de um escritor não são as pessoas, mas a sua memória. E às vezes a única casa do escritor é a sua lealdade e seu valor. De fato, muitas podem ser as pátrias de um escritor, e às vezes a identidade desta pátria pode ser a terra natal do escritor, por vezes, a identidade deste país depende muito do que se está escrevendo naquele momento. Muitos podem ser os países de origem, ocorre-me agora, mas há apenas um passaporte e o passaporte é obviamente a qualidade da escrita. Isso não significa escrever bem, porque isso qualquer um pode fazer, mas escrever maravilhosamente bem, e nem sequer isto, pois escrever maravilhosamente bem também qualquer um pode. Então o que é uma escritura de qualidade? Pois, o que sempre foi: saber enfiar a a cabeça no escuro, saber pular no vazio, ou seja, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso. Correndo ao longo da borda do precipício: de um lado o abismo sem fundo, e do outro todas as faces que você quer, os rostos sorridentes que você quer, e livros, e amigos, e os alimentos. E aceitar esta evidência, ainda que às vezes nos pese mais que o sepulcro que cobre os restos de todos os escritores mortos. Literatura, como diria o folclore andaluz, é um perigo.

E agora volto, por fim, sobre o número 11, que é o número dos que correm por fora, e já que mencionei o pergio, me lembro daquele capítulo do Quixote onde se discute sobre os méritos da milícia e da poesia, e suponho que o fundo do que se está discutindo é sobre o grau de perigo que também é falar que envolve a natureza de ambos os ofícios. E Cervantes, que foi um soldado, faz o militar ganhar, faz o soldado ganhar ante o honroso ofício de poeta, e se lemos estas páginas bem (algo que agora, enquanto escrevo este discurso, eu não faço, apesar estar vendo da mesa onde escrevo as minhas duas edições de Don Quixote) percebemos nelas um forte aroma de melancolia, porque Cervantes ganha sua própria juventude, o fantasma de sua juventude perdida, diante da realidade do seu exercício de prosa e poesia, até então adversas. E isto me vem à cabeça porque em grande medida tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, aos que nascíamos na década de cinquenta e os que preferimos emum momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer a militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa em que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo, e que de certa forma o era, mas que na realidade não era.

Seria demais dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos líderes corruptos, covardes, uma máquina de propaganda que foi pior do que um leprosário, lutamos por partidos que por terem vencido nos mandaram de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos todas a nossa generosidade em um ideal que há mais de cinqüenta anos que estava morto, e alguns já sabíamos, e como nós não saberíamos se lemos Trótski ou éramos trotskistas, mas não fizemos igual, porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que tudo dão e não pedem nada em troca, e agora destes jovens não sobrou nada, os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E essa é a mola que move a Cervantes para escolher os militares em descrédito da poesia. Seus companheiros também estavam mortos. Ou velhos e abandonados, na miséria e na indiferença. Escolher era escolher a juventude e escolher os derrotados e os que não tinham nada. E isso faz Cervantes, escolhe a juventude. E mesmo nesta debilidade melancólica, neste vazio da alma, Cervantes é o mais lúcido, pois ele sabe que os escritores não precisavam de ninguém para lhes exaltar o ofício. Nós nos exaltamos a nós mesmos. Muitas vezes a nossa forma de exaltação é maldizer o momento em que decidimos ser escritores, mas no geral aplaudimos e dançamos quando estamos sozinhos, porque este é um ofício solitário, e recitamos a nós mesmos nossas páginas, que é a forma de nos exaltarmos, e não precisamos que ninguém nos diga o que precisamos fazer e muito menos que após um levantamento o nosso ofício é eleito o mais honroso de todos. Cervantes, que não era disléxico, mas que o exercício da milícia deixou aleijado, sabia perfeitamente o que dizia. Literatura é um ofício perigoso. O que nos leva diretamente ao Alfred Jarry, que tinha uma arma e gostava de disparar, e ao número 11, do lado esquerdo, olhando de lado enquanto passa como uma bala a placa e a casa onde morou Dom Rômulo, que a esta altura do discurso já não está tão zangado comigo, nem vai aparecer em sonhos a Domingo Miliani para perguntar por que eles me deram o prêmio que leva seu nome, um prêmio muito importante para mim, eu sou o primeiro chileno a obtê-lo, um prêmio que dobra o desafio, se isso for possível, se o desafio pela sua própria natureza, em prol da sua própria virtude, não foi anteriormente dobrado ou triplicado. Um prêmio, segundo este, seria um ato gratuito e agora que eu o penso, penso que é verdade, algo tem de ato gratuito. É um ato gratuito de não falar sobre o meu romance ou os seus méritos, mas da generosidade de um júri. (A propósito: até ontem não sabia de nada). Devemos ser claros, porque, como os veteranos de Lepanto, em Cervantes, e como os veteranos das guerras floridas na América Latina, minha única riqueza é a minha honra. Eu leio e não creio. Eu falando de honra. Pode ser que o espírito de Dom Rômulo apareça no domingo não a Miliani, mas a mim. Estas palavras são escritas em Caracas (Venezuela) e uma coisa é clara: Dom Rômulo não pode me aparecer em sonhos, pela simples razão de que eu não consigo dormir. Lá fora os grilos cantam. Calculo, de uma olhada, que sejam cerca de dez mil ou vinte mil. O canto de um desses grilos é, talvez, a voz de Dom Rômulo, confuso, ditosamente confuso, na noite venezuelana, na noite americana, na noite de todos nós, aqueles que dormem e aqueles que não conseguem dormir. Eu me sinto como Pinóquio.

LETRAS LIBRES

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Como se sobrevive na cidade mais perigosa do mundo




Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo. C. G. RAWLINS



Como se sobrevive na cidade mais perigosa do mundo

Venezuelanos se mantêm em estado de alerta permanente, num país onde a violência urbana se tornou uma epidemia incontrolável




CRISTINA MARCANO
3 DEZ 2016 - 17:00 CST
Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo. C. G. RAWLINS

Há cenas cotidianas em Caracas que nunca deixam de surpreender. Você está ao volante, preso num congestionamento na hora do almoço, e de repente sente batidas na janela. Um motociclista golpeia o vidro com o cano de uma pistola e exige: “O celular ou atiro”. Uma ameaça semelhante se repete, com uma faca cutucando as costelas da vítima, em meio ao alarido da saída do metrô.


Num feriado tranquilo, você sai para comer um hambúrguer. Está a duas quadras da delegacia de um bairro nobre. Um carro com vidros escuros ultrapassa o seu veículo e para num sinal vermelho. Outro carro o bloqueia por trás. Dois homens descem e apontam armas. Em segundos, você se torna vítima de um sequestro-relâmpago, um dos crimes mais comuns e traumáticos no amplo repertório delitivo venezuelano.

sábado, 9 de abril de 2016

A tragédia de viver em Caracas, a cidade mais violenta do mundo



A tragédia de viver em Caracas, a cidade mais violenta do mundo

Brasil é o país que mais aparece em estudo, com 21 das 50 localidades no ranking



Após obter o título de economia mais inflacionária do mundo (141% entre setembro de 2014 e o mesmo mês de 2015, e uma previsão do Fundo Monetário Internacional de 720% para este ano), aVenezuela também passou a aparecer no topo do ranking de 50 cidades mais violentas do mundo do Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, do México. Essa organização não governamental elabora há vários anos o estudo, e Caracas, a capital do país sul-americano, ocupa o primeiro lugar do pódio com uma taxa de 119 homicídios para cada 100.000 habitantes. Outras cidades venezuelanas, Maturín e Valencia, também estão entre as sete primeiras da listagem. Já o Brasil é o país que mais aparece no estudo, com 21 das 50 cidades da lista, lideradas por Fortaleza na 12ª posição, com 60,77 homicídios por 100.000 habitantes.


A principal cidade da Venezuela supera a hondurenha San Pedro Sula (111,03) como a metrópole mais violenta do mundo, San Salvador (108,54) a capital de El Salvador, que ocupa a terceira posição, e Acapulco (104,73), no Estado mexicano de Guerrero, a quarta na classificação. Mas, além disso, a Venezuela conseguiu colocar outras duas de suas cidades no incômodo ranking. Maturín, principal cidade do Estado de Monagas (parte oriental do país) e Valencia, capital do Estado de Carabobo (centro), ocupam a quinta e a sétima posições, com 86,45 e 72,31 mortes para cada 100.000 habitantes, respectivamente.
O chavismo considera todas essas medições como parte de uma campanha de “forças imperiais” que busca derrubá-lo, e opõe a essas tragédias os números do investimento social — 62,5% do orçamento, segundo afirmação do presidente Nicolás Maduro em sua recente mensagem à Nação — e a vocação popular da chamada revolução bolivariana. Mas todos esses enunciados empalidecem diante dos acontecimentos violentos que ocorrem diariamente em todo o país.
O último deles foi a morte a tiros de El Conejo, líder da cadeia de San Antonio. O presídio está em Margarita, a paradisíaca ilha localizada no Caribe venezuelano e local de afluência de turistas venezuelanos e estrangeiros. Teófilo Cazorla Rodríguez, seu verdadeiro nome, havia sido condenado por tráfico de drogas em 2003 e cumpria a última parte de sua pena apresentando-se nos tribunais. Estava nas ruas desde o ano passado, mas continuava sendo o líder do presídio e comandava os crimes lá cometidos, confirmou no Twitter Douglas Rico, subdiretor do Corpo de Investigações Cientificas, Penais e Criminalísticas.
Na madrugada de domingo Cazorla Rodríguez e outros homens, identificados como seus seguranças, estavam em uma discoteca da ilha. Entraram depois em um carro e sofreram uma emboscada de homens ainda não identificados. A morte, presume-se, que para a polícia é algo que ainda deve ser analisado pela quantidade de tiros que o carro recebeu, se deve a uma disputa pelo controle de distribuição de drogas.
El Conejo está ligado às mais folclóricas histórias da ilha, algumas impossíveis de se comprovar. Outras podem ser verificadas. Em 2011, uma equipe de jornalismo do The New York Times entrou na prisão de San Antonio para entrevistar os internos, que em sua maioria cumprem penas por tráfico de drogas, e verificar o estado das instalações. Mais do que uma prisão com grades e horários estritos, as imagens mostram os detentos dançando ao ritmo da música caribenha colocada por um DJ, seus filhos brincando na piscina e um grupo de presos observando dois galos destroçando-se com suas esporas. El Conejo era o responsável pelo fato dos presos viverem sem o rigor das cadeias tradicionais, mas submetidos a regras medievais para sobreviver.

A morte de El Conejo


Todas essas comodidades fizeram com que a lenda de benfeitor de El Conejo crescesse e que sua morte fosse amplamente comentada e sentida pelos presos. Na tarde de segunda-feira um grupo subiu no telhado do prédio e o homenageou com uma salva de tiros de armas pesadas e leves. Os vídeos, gravados pelos próprios internos, circularam nas redes sociais e provocaram comentários indignados da sociedade e dos dirigentes políticos de oposição. O ex-candidato presidencial e governador do Estado de Miranda, Henrique Capriles, colocou uma das tantas sequências em sua conta do Twitter e repreendeu o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López. “Não se incomoda com isso?”, perguntou. “São armas das Forças Armadas”, afirmou.
O enterro do criminoso estava previsto para a tarde terça-feira na Venezuela. Usuários das redes sociais comunicaram ampla presença policial nas principais ruas de Porlamar, a principal cidade da ilha, e o fechamento de uma delas, por onde passaria o cortejo fúnebre. Sua morte não deixou ninguém indiferente e aviva o debate sobre a insegurança no país. Caracas, considerada a cidade mais violenta do mundo, é o exemplo disso.








AS CIDADES MAIS VIOLENTAS DO MUNDO


1° - Caracas (Venezuela) - 119.87 homicídios por 100.000 habitantes
2° - San Pedro Sula (Honduras) - 111.03
3° - San Salvador (El Salvador) - 108.54
4° - Acapulco (México) - 104.73
5° - Maturín (Venezuela) - 86.45
6° - Distrito Central (Honduras) - 73.51
7° - Valencia (Venezuela) - 72.31
8° - Palmira (Colômbia) - 70.88
9° - Cidade do Cabo (África do Sul) - 65.53
10° - Cali (Colômbia) - 64.27
11° - Ciudad Guayana (Venezuela) - 62.33
12° - Fortaleza (Brasil) - 60.77
13° - Natal (Brasil) - 60.66
14° - Salvador e região metropolitana (Brasil) - 60.63
15° - ST. Louis (Estados Unidos) - 59.23
16° - João Pessoa; conurbação (Brasil) - 58.40
17° - Culiacán (México) - 56.09
18° - Maceió (Brasil) - 55.63
19° - Baltimore (Estados Unidos) - 54.98
20° - Barquisimeto (Venezuela) - 54.96
21° - São Luís (Brasil) - 53.05
22° - Cuiabá (Brasil) - 48.52
23° - Manaus (Brasil) - 47.87
24° - Cumaná (Venezuela) - 47.77
25° - Guatemala (Guatemala) - 47.17
26° - Belém (Brasil) - 45.83
27° - Feira de Santana (Brasil) - 45.50
28° - Detroit (Estados Unidos) - 43.89
29° - Goiânia e Aparecida de Goiânia (Brasil) - 43.38
30° - Teresina (Brasil) - 42.64
31° - Vitória (Brasil) - 41.99
32° - Nova Orleans (Estados Unidos) - 41.44
33° - Kingston (Jamaica) - 41.14
34° - Gran Barcelona (Venezuela) - 40.08
35° - Tijuana (México) - 39.09
36° - Vitória da Conquista (Brasil) - 38.46
37° - Recife (Brasil) - 38.12
38° - Aracaju (Brasil) - 37.70
39° - Campos dos Goytacazes (Brasil) - 36.16
40° - Campina Grande (Brasil) - 36.04
41° - Durban (África do Sul) - 35.93
42° - Nelson Mandela Bay (África do Sul) - 35.85
43° - Porto Alegre (Brasil) - 34.73
44° - Curitiba (Brasil) - 34.71
45° - Pereira (Colômbia) - 32.58
46° - Victoria (México) - 30.50
47° - Johanesburgo (África do Sul) - 30.31
48° - Macapá (Brasil) - 30.25
49° - Maracaibo (Venezuela) - 28.85
50° - Obregón (México) - 28.29
EL PAÍS






terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A via crucis para comprar comida na Venezuela em meio à crise


A via crucis para comprar comida 

na Venezuela em meio à crise

Desabastecimento de produtos básicos nos supermercados aumenta a tensão




Fila em um supermercado de Caracas. / JORGE SILVA (REUTERS)
Os funcionários do supermercado Unicasa do bairro Cumbres de Curumo – área de classe média alta onde residem muitos militares da reserva e da ativa pela proximidade com Forte Tiuna, a principal fortaleza militar da Venezuela – viveram uma semana muito tensa. Na quarta-feira chegou o leite em pó, um produto que no país é tão escasso como água no deserto. Imediatamente, avisados pelo celular, clientes dessa e de outras regiões de Caracas formaram uma longa fila para comprar quatro pacotes, o máximo permitido.
Em um esforço para tentar garantir que os bens mais procurados – leite, café, arroz, papel higiênico, açúcar, sabão e óleo de milho – cheguem a todos, os supermercados regularam sua venda, mas a demanda supera qualquer previsão. Então, com a escassez, vem o desespero. Na quarta-feira uma senhora que levava os quatro pacotes de leite caiu no chão empurrada pela turba que corria para as prateleiras onde estava o insumo. Um homem aproveitou para tomar os pacotes dela. Uma moradora ria enquanto outros o recriminavam: “Mas acontece que isto é consequência da situação em que vivemos. E ainda vamos ver muita coisa”, defendia-se.

Cientos de personas esperan a las puertas del supermercado Bicentenario en Caracas. Los venezolanos han comenzado 2015 con un fuerte desabastecimiento y la tensión se siente a las puertas de los establecimientos. Foto de JORGE SILVA (REUTERS)
Em Catia, um bastião chavista da zona oeste de Caracas, uma multidão saqueou na quinta-feira um caminhão que transportava fraldas, outro produto muito procurado atualmente, enquanto esperava em fila para entrar em uma das lojas da rede atacadista mais importante do país. Na mesma quinta-feira, chegou ao supermercado de Cumbres de Curumo a farinha de milho pré-cozida – a base para preparar as arepas, o café da manhã tradicional venezuelano – e várias caixas de fraldas. Tampouco foi bastante para todos. Os que não tiveram sorte pensavam que o encarregado do supermercado tinha escondido os pacotes. A polícia do município aproximou-se para pedir a ele que, se as suspeitas estivessem certas, reiniciasse a venda. “Poderia dizer a eles que entrem no depósito para se certificarem de que não estamos escondendo nada”, disse. Depois de comprovarem que não havia mais produtos, os clientes partiram para outros locais de Caracas para continuar com a caça às mercadorias em falta.

Os bens mais procurados são: leite, café, arroz, papel higiênico, açúcar, sabão e azeite de milho
O desabastecimento sempre é mais acentuado no início do ano, mas as cenas de desespero e as longas filas nesta época do ano, que se repetem em quase todo o país durante várias horas por dia, são novidade. Dezembro costuma ser um mês de férias nas fábricas e a falta de produção é compensada com as reservas. Entretanto, desde 2013, para aliviar a escassez, o Governo obriga as empresas a usar todo seu estoque e considera as reservas uma forma de monopolizar. As leis aprovadas pelo governo punem o empresário com prisão ou eventual expropriação do negócio. Dessa maneira, a Venezuela chegou a 2015 em situação crítica e com um ambiente muito tenso nos supermercados.

Para evitar que la violencia campe las grandes cadenas distribuyen los alimentos escoltados por su propio personal de seguridad y la Guardia Nacional Bolivariana (GNB). JORGE SILVA (REUTERS)
Para evitar que a violência se espalhe, as grandes redes distribuem os alimentos escoltados por seguranças privados e pela Guarda Nacional Bolivariana (GNB). Ocorreu na quinta-feira em um supermercado do bairro Valle Arriba, uma colina onde estão edifícios de luxo e a Embaixada dos Estados Unidos em Caracas. Ao meio dia chegou o leite líquido e repetiram-se as cenas dos últimos dias: gente correndo desesperada para levar o máximo permitido (seis unidades), desespero e reclamações. Em menos de uma hora não havia mais leite. Dentro do local outras pessoas formaram uma fila para esperar a entrega de uma quantidade limitada de papel higiênico. Quatro oficiais da GNB, com armas longas, vigiavam os clientes.

O Governo obriga as empresas a usar todo seu estoque e considera as reservas uma forma de monopolizar. As leis punem o empresário com prisão ou eventual expropriação
No início da semana o Governo pareceu minimizar as filas, mas por volta do final da semana preferiu reconhecer o desabastecimento e salvar sua responsabilidade argumentando que o setor produtivo nacional trava “uma guerra econômica” contra os governantes com o objetivo de provocar desordens que levem a sua eventual renúncia. O chefe de Governo de Caracas, Ernesto Villegas, acrescentou mais polêmica ao assegurar que os “filhinhos de papai” infiltraram pessoas para incitar os saques.

Los que esperan apuntan su número de la fila en los brazos. La imagen es de una cola en las puertas de Bicentenario en Maracaibo. STRINGER (REUTERS)
Na sexta-feira, o vice-presidente de Segurança e Soberania Alimentar, Carlos Osorio, recordou no palácio de Miraflores que as leis venezuelanas impedem a suspensão de operações de produtores e distribuidores de alimentos. “Se não quererem trabalhar, entreguem a fábrica a quem quer”, disse.
Enquanto isso, pelas redes sociais começaram a circular rumores de uma convocatória para uma paralização nacional a partir de hoje, mas a coalizão oposicionista Mesa de la Unidad não aderiu. “É um plano arquitetado pelo Governo para desviar a atenção do drama da escassez”, disse seu secretário geral, Jesús Torrealba.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

CRISE ECONÔMICA DA VENEZUELA / A escassez e a inflação reduzem a alimentação básica na Venezuela

Nicolás Maduro

CRISE ECONÔMICA DA VENEZUELA

A escassez e a inflação 

reduzem a alimentação básica 

O Instituto de Estatística constata que no segundo semestre de 2013 houve uma queda na aquisição de produtos alimentícios. As vendas de farinha de milho, base da dieta cotidiana, caíram 16,5%



Operadora de caixa conta dinheiro em um supermercado de Caracas. / C. G. RAWLINS (REUTERS)
Instituto Nacional de Estatística da Venezuela impôs o segundo golpe duro ao Governo em menos de um mês. Em maio, a entidade havia revelado que 737.000 venezuelanos caíram para a pobreza extrema. E, neste mês, a Pesquisa de Acompanhamento do Consumo de Mantimentos concluiu que, entre o segundo semestre de 2012 e o mesmo período de 2013, houve uma queda generalizada no consumo diário de mantimentos básicos. Dos 43 itens incluídos no estudo, 41 tiveram redução do consumo. Em alguns casos, houve um desabamento notável, como no da farinha de milho (-16,55%), a base para o preparo das arepas – comida tradicional venezuelana no café da manhã e no jantar.
Por tabela, o INE desmentiu a nomenklatura chavista, cujos integrantes asseguraram, em diversas ocasiões, desde 2013, que a escassez e o desabastecimento crônicos se explicavam pelo fato de os venezuelanos agora poderem consumir mais. Já era um argumento difícil de acreditar, dada a queda brutal do poder aquisitivo, segundo analistas e comentaristas. A inflação anualizada entre maio de 2013 e o mesmo mês de 2014 ficou em 60,9%, apesar de o Governo ter aumentado o salário mínimo em 40% no período de um ano, a maior expansão de toda a era chavista até março, num esforço para tentar compensar a redução da renda. Esse salário mal cobre o custo da cesta básica de alimentos, que em janeiro de 2014 era estimada oficialmente pelo INE em 3.641 bolívares (162 reais, segundo a taxa mais alta do câmbio oficial).