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sábado, 15 de maio de 2021

Ficção e Teatro de Samuel Beckett / Procedimentos Comuns

 



Ficção e Teatro de Samuel Beckett: Procedimentos Comuns 


Ana Helena Souza
Florianópolis, 06 de junho de 2011
QORPUS
Edição N. 001

A primeira recepção mais ampla do trabalho de Samuel Beckett se deveu ao sucesso da peça “Esperando Godot”, que estreou num pequeno teatro de Paris em 5 de janeiro de 1953, suscitando polêmica e atraindo atenção. Os romances “Molloy”, “Malone Morre” e “O Inominável” já haviam sido todos publicados e também passaram a ter uma maior recepção crítica. Com esses textos, todos escritos em francês, Samuel Beckett se firmou como ficcionista e dramaturgo, fazendo mais tarde incursões no rádio, na televisão e no cinema.
Mais conhecido como dramaturgo, Beckett, no entanto, fez declarações que ressaltavam a importância de seu trabalho em prosa, ao mesmo tempo em que diminuiam a de sua obra teatral. Costumava dizer que recorria ao teatro como uma maneira de se afastar da tensão e dos problemas enfrentados ao escrever prosa ficcional, considerando-a seu “trabalho importante”. As relações entre as duas formas de expressão, porém, vão-se interpenetrando cada vez mais, e é possível – como tentarei fazer agora – encontrar procedimentos criativos comuns a uma ficção e uma peça. Tais procedimentos não se limitam a temas e características das personagens, embora essas semelhanças sejam logo notadas. Englobam toda a área mais específica de tratamento dos recursos disponíveis no meio de expressão escolhido: a prosa ou o teatro.
Tratarei aqui do texto “Mal vu mal dit/Ill Seen Ill Said” e da peça “Rockaby/Berceuse”, ambos escritos e traduzidos pelo autor entre 1979 e 1981. Vale a pena incluir uma palavra sobre o procedimento de autotradução que Beckett, a essa altura, já incorporara completamente ao seu processo criativo. Desde os anos 50, o escritor assumira a tradução de suas próprias obras, fossem elas escritas primeiro em francês ou em inglês. Pouco a pouco, a prática da autotradução vai sendo incorporada à própria criação. É famoso o caso do romance “Company/Compagnie”, escrito em 1977-79, cujo “original” inglês foi modificado a partir da “tradução” francesa. Portanto, não deixa de ser interessante notar que a composição primeira da prosa “Mal vu mal” dit foi em francês, mas a da peça, “Rockaby”, foi em inglês, aproximando-a assim da tradução daquela prosa: “Ill Seen Ill Said”.
Tanto o romance quanto a peça tratam de mulheres à espera da morte. A solidão é um tema marcante em ambos. Mas há muitas diferenças e variações. “Ill Seen Ill Said” é um texto complexo, cuja estrutura apenas resumirei aqui, a fim de identificar os traços de composição que o ligam à peça. A personagem que o narrador se esforça em apresentar é uma velha solitária. Mora numa cabana, cuja mobília se resume a uma cadeira, uma cama, uma arca e poucos objetos menores. Os campos que cercam a casa parecem pertencer a um cemitério que se vai cobrindo de túmulos. O passeio da mulher consiste em ir e voltar de um deles. Há doze enigmáticas figuras que a observam sempre a distância.
O texto se configura através do narrador que vai, aos poucos, se aproximando dessa personagem e desse, por assim dizer, cenário. Desde o início, ele a imagina/vê e estimula-se a continuar: “From where she lies she sees Venus rise. On. From where she lies when the skies are clear she sees Venus rise followed by the sun. Then she rails at the source of all life. On. At evening when the skies are clear she savours its star’s revenge. At the other window.” (“De onde ela se deita vê Vênus levantar-se. Adiante. De onde ela se deita quando o céu está claro vê Vênus levantar-se seguida pelo sol. Então ralha com a fonte de toda a vida. Adiante. Ao entardecer quando o céu está claro ela saboreia a vingança da estrela. Na outra janela.”)   Assim prossegue o narrador, em blocos maiores ou menores de texto que correspondem a algo visto, “mal visto”, e do mesmo modo dito, “mal dito”. A dificuldade da tarefa muitas vezes o leva às raias da desistência: “Already all confusion. Things and imaginings. As of always. Confusion amounting to nothing. Despite precautions. If only she could be pure figment. Unalloyed. This old so dying woman. So dead. In the madhouse of the skull and nowhere else.” (p.58) [“Tudo já uma confusão. Coisas e conjecturas. Como desde sempre. Confusão levando a nada. Apesar das precauções. Se pelo menos ela pudesse ser fingimento puro. Sem mistura. Esta velha tão moribunda mulher. Tão morta. No manicômio do crânio e em nenhum outro lugar.”]
Por volta da metade do texto, vem quase a desistência total: “Such – such fiasco that folly takes a hand. Such bits and scraps. Seen no matter how and said as seen. (…) Not another word.” [“Tal – tal o fiasco que a loucura dá uma mão. Tais bocados e sobras. Vistos não importa como e ditos como vistos. (…) Nem uma outra palavra.”] Mas o narrador se recompõe no bloco seguinte: “Panic past pass on.” (p.66) [“Passado o pânico passar adiante.”].
Em “Mal visto mal dito”, Beckett lida, entre outras coisas, com a impotência do narrador em dominar seu material narrativo. A história vai-se delineando pouco a pouco. O controle do narrador sobre sua personagem, desde a percepção do lugar em que habita até a de seus traços fisionômicos, é bastante limitado. Citei acima o trecho em que ele quase desiste de sua tarefa, deseja que a personagem seja “fingimento puro”,  mas há uma confusão entre “Coisas e conjecturas.” A mistura de fingimento (fantasia/ficção) e realidade/memória se apresenta aqui na impossibilidade de o narrador perceber claramente a imagem que persegue – e pela qual é perseguido – e, conseqüentemente, transmiti- la com clareza.
Na peça “Rockaby”, que é bastante curta, vemos uma mulher em cena, precocemente envelhecida, sentada numa cadeira de balanço, com um vestido preto de festa. O balanço da cadeira é lento e mecanicamente controlado. A mulher não se move, seus olhos estão ora fechados, ora abertos. Quando abertos, fixos, sem piscar. Quando a peça começa, a cadeira está imóvel. A mulher emite uma única palavra “More” e o balanço começa ao mesmo tempo que se ouve uma voz vinda de um gravador, a contar, pouco a pouco, a história de como ela chegou até ali, naquela situação em que nos é apresentada. São quatro segmentos narrativos que vão formando, através de repetições e acréscimos, a história daquela personagem.  Todos os segmentos são iniciados pela voz da mulher pedindo “Mais”. Alguns trechos da fala gravada são ditos em uníssono pela mulher no palco, designada por W. O primeiro trecho fala sobre a decisão de W de interromper sua busca, no mundo exterior, por alguém como ela: “till in the end/the day came/in the end came/close of a long day/ when she said/ to herself/whom else/ time she stopped/ time she stopped/ going to and fro/ all eyes/all sides/ high and low/ for another/ another like herself/another creature like herself”  O segundo trecho, retoma a decisão de parar sua busca no mundo lá fora, reiterando-a através de uma frase que não estava no primeiro segmento e que indica que ela se recolheu ao “fim de um longo dia”: “so in the end/close of a long day/ went back in/ in the end went back in” (p.276). Assim, marca-se o fim de uma fase e começa a narrativa do início de outra, em que W continua sua busca, mas agora já dentro de casa, sentada à janela do andar superior. Na terceira parte, W passa a buscar tão somente outra janela aberta, que pudesse indicar a presença de outra “creature like herself”, até decidir abandonar também essa fase: “till the day came/ in the end came/ close of a long day/ when she said/ to herself/ whom else/ time she stopped/ time she stopped/ sitting at her window/ quiet at her window/ only window/ facing other windows/ other only windows” (p. 279). Finalmente, na quarta parte, ela toma a decisão de descer, fechar as persianas e sentar-se na velha cadeira de balanço, na qual sua mãe, louca diziam, sentara-se e balançara-se, vestida com sua melhor roupa, até morrer: “so in the end/ close of a long day/ went down/let down the blind and down/ right down/into the old rocker/ and rocked/ rocked/ saying to herself/ no/ done with that/ the rocker/ those arms at last/ saying to the rocker/ rock her off/ stop her eyes/ fuck life/ stop her eyes/ rock her off/ rock her off” (p.281-2). Aqui termina a peça, com a cadeira parando de balançar – o ritmo do balanço já havia diminuído gradativamente – e as luzes se apagando.
É importante mencionar, depois dessas citações, que Rockaby já foi classificada como uma peça-poema, devido aos recursos poéticos que emprega e ao seu ritmo, que marca o balanço da cadeira e que, como fica claro na tradução do título para o francês (Berceuse), nina W para sua loucura/morte. (A expressão “go off one’s rocker” quer dizer entrar num estado de extrema confusão ou de insanidade.) Billie Whitelaw, atriz preferida de Beckett, representava o final de modo a não deixar dúvidas quanto à morte de W. Todavia, o texto deixa ambígua a conclusão, e o “More” no começo de cada segmento sugere a recorrência da narrativa, a intervalos.
A separação entre narrador e personagem, em “Rockaby”, se dá através da voz gravada. Mesmo que a voz pertença a W – algo que não é especificado – a presença da atriz no palco, falando apenas algumas frases, consuma a distância entre ela e a voz que narra.  Mesmo que estejamos ouvindo o que se passa em sua consciência, a voz de W destaca-se dela como o balanço da cadeira acontece independentemente de qualquer impulso seu. Por outro lado, a voz se submete a W; é sempre ao seu comando que recomeça a narrativa. Mas, no final, fica a questão: é a voz ou W quem dá o fim e, portanto, investe de sentido a narrativa? W comanda a voz para chegar à sua morte/fim ou a voz a leva ao fim através da finalização da narrativa? Nesta pequena peça de Beckett, concentra-se toda uma preocupação do autor – longamente trabalhada em sua prosa ficcional – com o poder de controle da instância narrativa, ao lado do questionamento da autoridade do narrador.
Em “Rockaby”, a impossibilidade de W se livrar da história de sua mãe, balançando-se louca, em seu vestido de festa, até a morte, encena a falta de recursos da personagem, seja através da desistência da procura de um outro semelhante a ela, seja através da escolha de repetição do modelo materno. A aproximação com o narrador de “Ill Seen Ill Said” chega ao ápice na passagem citada, que corresponde ao meio da narrativa, na qual a impossibilidade de visualizar/narrar com clareza o leva ao pânico e quase à desistência. O recurso a um narrador sem domínio de seu material, bem como o recurso à voz duplicada (por meio de uma gravação ou de outra forma) é um dos procedimentos preferidos dos últimos textos e peças de Beckett.
Na verdade, desde os três primeiros romances escritos em francês, ainda que com narradores-protagonistas, Beckett introduzira a problemática de vozes que o narrador não controla. No teatro, ele só vai conseguir esta separação de forma mais cabal, a partir da peça televisiva “Eh Joe (1965), na qual se apresenta pela primeira vez a divisão entre a imagem física da personagem e a voz do que se passa em sua consciência, e o monólogo é definitivamente abandonado. Segundo Gontarski, “A forma do monólogo abarcava a ideologia de uma presença concreta, um ser único coerente (ou um ego unificado ou, em termos literários, um personagem unificado), uma idéia com a qual Beckett se sentia cada vez mais desconfortável […]”  É interessante notar que datam da mesma época da peça “Eh Joe” prosas curtas de Beckett que abandonam o recurso a um narrador-protagonista e passam a desenvolver um tipo de narrador limitado ao que vê, em geral, no “manicômio do crânio”, como o narrador de “Mal visto mal dito”.
Uma última palavra, aqui sobre diferenças, sobre o movimento inverso dos textos abordados. Enquanto W, em “Rockaby”, anseia por ver e ser vista por um semelhante (e a ironia está em que, na altura de sua desistência os olhos de toda a platéia convergem  para ela), a velha de “Mal visto mal dito”, furta-se todo o tempo ao olhar do narrador e ignora qualquer companhia. O narrador, por sua vez, consegue se libertar da visão que o atormenta: “And what if the eye could not? No more tear itself away from the remains of trace. Of what was never. Quick say it suddenly can and farewell say say farewell.” (p. 86) [“E se o olho não puder? Não mais arrancar-se dos restos de rastro. Do que nunca foi. Depressa dizer que de repente ele pode e adeus dizer dizer adeus.”]
Em “Mal visto mal dito”, depois de assumir o fracasso do olho em traçar seu objeto e da narrativa em fixá-lo, o narrador abandona-se ao vazio: “No. One moment more. One last. Grace to breathe that void. Know happiness.”(p.8) [“Não. Mais um momento. Um último. Graça para respirar esse vácuo. Conhecer a felicidade.”] O final da peça, por sua vez, concentra toda a amargura de W: “rock her off/ stop her eyes/ fuck life/ stop her eyes/ rock her off/ rock her off”.
Por mais irônico que pareça, é o reconhecimento do fracasso e da falta de controle de seu material que permite ao narrador de Mal visto mal dito terminar livre, “conhecer a felicidade”, enquanto W fica presa à repetição de seu drama, ao controlar a repetição de sua narrativa.



Ana Helena Souza
Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, com estágio recém-doutor na UFMG, autora de “A tradução como um outro original: Como é de Samuel Beckett (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). De Samuel Beckett, traduziu os romances “Como é” (São Paulo: Iluminuras, 2003), “Molloy” (São Paulo: Globo, 2007) e “O Inominável” (São Paulo: Globo, 2009).







terça-feira, 20 de outubro de 2015

Frida e Diego discutem no teatro sua conturbada relação

Diego Rivera e Frida Kahlo

Frida e Diego discutem no teatro 

sua conturbada relação



Leona Cavalli e José Rubens Chachá caracterizados. /DIVULGAÇÃO
É comum encontrar quem adore Frida Kahlo e também Diego Rivera, dois grandes artistas do começo do século XX no México, assim, separados em sua personalidade e na genialidade que os caracteriza. Menos comum, pelo menos aqui no Brasil, é entender que da soma destes dois resulta uma terceira entidade: o casal.
Os dois foram retratados em uma biografia de Jean-Marie Gustave Le Clézio – o autor francês que é prêmio Nobel de literatura – que se detém pouco nas trajetórias individuais de cada um para se concentrar nas histórias conturbadas e nas experiências amorosas polêmicas da dupla. O livro se chama Diego e Frida e com uma leve diferença – o nome dela antes do dele – a peça Frida y Diego, em cartaz em São Paulo até 14 de dezembro no Teatro Raul Cortéz, cumpre a mesma missão.
Escrita pela dramaturga Maria Adelaide Amaral, nome forte do teatro e, de uns bons anos pra cá, também da televisão, e dirigida por Eduardo Figueiredo com cuidadosa direção artística de Guga Stroeter, a obra conta com as atuações despojadas de Leona Cavalli e José Rubens Chachá, caracterizados com toda a pompa e circunstância. Tem início em 1940, momento em que Frida reata seu casamento com Diego depois de um ano separados. Em seguida, faz um flashback para resgatar momentos importantes do dia a dia do casal, até chegar a 1953, um ano antes da morte da pintora em decorrência dos graves problemas de saúde com os quais lutou a vida inteira, principalmente depois de ter sofrido um acidente em um bonde. Ela tinha somente 16 anos, e, no choque, uma barra de ferro “a partiu pelo meio”, prejudicando para sempre sua coluna e seu aparelho reprodutor.
Está tudo lá: amor desmedido, traições constantes, separações e reconciliações, vontade incontrolável de Frida de ter um filho, visões políticas e a certeza de ambos de que o comunismo era a resposta para as mazelas do mundo em épocas de miséria e guerra. Mas nada na montagem toma o lugar de uma intensa discussão da relação, em que tanto Frida como Diego demonstram que mais impossível do que viver juntos era viver separados. Por isso, a única solução que encontraram foi manter um relacionamento aberto, em que ele seguia adiante com suas amantes, assim como Frida, que foi abertamente bissexual, passou a fazer.
Maria Adelaide Amaral conta que partiu de pesquisas em livros – certamente uma referência central na peça é a biografia de Le Clézio –, cartas e leituras para escrever o texto. Em todo esse vasto material disponível aí, para todos os curiosos, o interessante é que a autora tenha feito certa homenagem a ela, Frida, usando para isso inclusive a própria boca de Diego: "Você é melhor que eu, meu amor", diz Rivera em um dos trechos, referindo-se ao talento artístico de Frida. "O gênio é você, sou só sua sombra", responde ela.
Chamam a atenção, na composição geral do espetáculo, a aposta pela trilha sonora ao vivo, feita especialmente para ele pelos músicos Mauro Domenech e Wilson Feitosa, que intervêm 37 vezes entre trocas de cenário e figurino. A plateia vibra sempre que um dos personagens aparece de um canto inesperado do palco, e principalmente quando Frida entra em cena deitada em sua famosa cama, disposta, apesar de convalescente, a participar de sua primeira exposição individual no México, justamente um ano antes de morrer.


Ambos eram politicamente ativos e ligados ao Partido Comunista. /DIVULGAÇÃO
Ficam o tempo todo evidentes para o espectador as dores físicas e emocionais dela, mas, mais do que isso, o que ela desejava que o mundo registrasse de sua passagem pela Terra: sua disposição de viver e a paixão desmedida por Diego Rivera. Assim, quem sai do teatro Raul Cortez fica às voltas com a lição ensinada pelo casal: o amor é imperfeito, mas quando de fato existe, se faz maior do que a vida. E não deixa outra saída que vivê-lo até a morte.




sábado, 21 de março de 2015

Vargas Llosa / A piedade dos morcegos

Mario Vargas Llosa

A piedade dos morcegos

Em sua última obra, Tom Stoppard nos confronta com um tremendo dilema de decidir se os valores resultam de uma fatídica operação química neurológica do cérebro, ou se por trás de tudo há um agir deliberado


FERNANDO VICENTE
Você sabia que os morcegos que saem para caçar à noite voltam à gruta com a boca cheia de um sangrento alimento para dar de comer a seus congêneres incapazes de se valerem por si mesmos? Pergunte-se então, depois de ficar sabendo desse fato objetivo, se tal conduta desses roedores voadores, silenciosos e cegos poderia ser chamada de “consciência” ou “piedade” e ser, portanto, algo equivalente ao que faz em As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, a personagem apelidada como Rose of Sharon, que amamenta com o leite de seu filho (que nasceu morto) um ancião agonizante. Esse é o dilema que se coloca e coloca para nós, os espectadores – The Hard Problem –, a simpática e inteligente Hilary, personagem principal da última peça de Tom Stoppard, que acaba de estrear no National Theatre, de Londres.
Talvez Stoppard, provavelmente o mais original e ousado dramaturgo moderno, seja o único autor contemporâneo capaz de levar ao palco uma história com uma temática que combina a neurobiologia, a química, a psicologia e a teologia, além de manter os espectadores durante uma hora e 45 minutos imóveis em suas cadeiras, estupefatos e enfeitiçados, enquanto, sem compreender totalmente o que está acontecendo, seguem as peripécias intelectuais e morais que vive a indócil Hilary durante a preparação de sua tese de doutorado no Instituto Krohl. Ela está rodeada de cientistas descrentes que, como seu orientador Spike, zombam de sua fé e de suas orações antes de dormir e creem, grosso modo, que a chamada consciência humana não constitui uma dimensão espiritual independente do corpo, e sim que não é nada mais – e nada menos – do que um produto resultante dos cruzamentos, descruzamentos, conformações e até confusões dos cem bilhões, aproximadamente, de neurônios que formam o cérebro humano.
A obra não pretende nos educar, propondo uma solução materialistaou idealista à indagação que tira o sono das noites de Hilary; ela simplesmente, depois de nos apresentar as razões e provas que os partidários das duas teses esgrimem, nos abandona na encruzilhada para decidirmos por nossa conta se optamos, como Hilary, por acreditar que o humano não se esgota no físico, e sim que consta também de uma dimensão não física – alma, espírito, consciência ou como se queira chamá-la –, ou, então, se optamos por alguma das sutis e complicadas fórmulas dos sábios ou sofistas que sustentam o oposto, ou seja, que somos apenas o que temos no corpo. O grande mérito da obra de Stoppard é mostrar que não existe uma resposta racional e objetiva para The Hard Problem:que, qualquer que seja a solução pela qual optemos, será sempre não uma fórmula lógica irrefutável, mas sim um ato de fé. Como se Deus existe ou não, se existe outra vida além desta, e se uma religião verdadeira prevalece entre as existentes ou são todas falsas. Nada disso poderá ser provado cientificamente, como pensam os arrogantes pesquisadores microbiológicos do Instituto Krohl, e, portanto, o debate não terminará nunca e continuará perturbando a espécie humana para sempre.

Sempre admirei nele seu desprezo pela facilidade e pelas modas e a insolência com que sempre escreveu as histórias que eram importantes para ele
Em algumas das críticas que The Hard Problem recebeu, pergunta-se se não acaba sendo temerário colocar no palco uma problemática tão abstrata e distante dos conflitos cotidianos que costumam divertir, intrigar ou comover os espectadores. Claro que têm razão. A obra não é nada fácil, exige um grande esforço de concentração para não se extraviar entre os raciocínios, referências científicas ou delirantes sofismas que, disfarçados com uma pretensiosa retórica acadêmica, chovem sobre a valente Hilary. Mas o teatro de Stoppard não foi sempre assim, escorregadio e exigente? Desde que vi, nos anos sessenta londrinos, sua maravilhosa Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, até a última, Rock’nRoll, sempre admirei nele seu desprezo pela facilidade e pelas modas e a insolência com que sempre escreveu as histórias que eram importantes para ele, algumas tão delirantes como as dos filósofos acrobatas deJumpersou do ancião arteriosclerótico de Travesties que, entre as remelas da sua memória, tenta lembrar se naquela Zurique onde foi empregado do consulado britânico alguma vez chegou a esbarrar nos três ilustres exilados que coincidiram com ele naquela cidade: Joyce,Lênin e Tristan Tzara.
Seu grande mérito é ter conseguido que esse seu teatro de assuntos complexos e difíceis – um teatro de ideias nestes tempos de frenética frivolidade! – tenha chegado a conquistar um vasto público, subornando-o graças a seu humor centro-europeu e ao mesmo tempo britânico (uma herança de seus ascendentes checos), no qual há ironia, sarcasmo, grandiloquência, delírio e, sempre, uma ternura compassiva para com todas as extravagâncias e excessos dos bípedes humanos. Em The Hard Problem o humor está muito menos presente que em outras peças, e talvez por isso ela vença com menos facilidade as resistências de um público acostumado a ir ao teatro só para espairecer e se divertir, não para embrulhar o cérebro com perguntas sobre se isto que estamos vivendo aqui é nossa única vida, e se somos um mero produto das casualidades astrais ou filhos de uma criação transcendental, do capricho ou da sabedoria ininteligível de uma divindade arbitrária, o que indicaria que existe outra vida, mais esquiva e permanente, e muito mais difícil de imaginar do que esta que vai escapando das nossas mãos a cada dia.

Seu grande mérito é ter conseguido que esse seu teatro de assuntos complexos tenha chegado a um vasto público
Por que saímos desta última obra de Stoppard incomodados e até angustiados? Os atores são magníficos, a montagem está impecável, e o que acontece no palco é inquietante. Talvez por este último. Não estamos acostumados a obras de teatro – ou romances – que nos imponham a responsabilidade de ter a última palavra, de decidir qual é a conclusão daquilo que acabamos de ler ou ver representado e, sobretudo, no caso de The Hard Problem, enfrentar o tremendo dilema de decidir se os valores, a generosidade, a bondade, o amor e a amizade que existem em nós, ou se a maldade, o egoísmo, a mesquinharia, o rancoroso e o perverso que também nos habitam, resultam de uma fatídica operação química neurológica de nosso cérebro, ou se por trás de tudo isso existe aquilo que os existencialistas chamavam de escolha, um agir deliberado, decidido por uma consciência não condicionada biologicamente, que é livre e, por isso, nos torna responsáveis por aquilo que fazemos ou deixamos de fazer.
A noite está fria em Londres depois do teatro, mas não chove, e é agradável caminhar às margens do Tâmisa, vendo as luzes e as pessoas animadas nas mesas das calçadas e a multidão de jovens que saem da cinemateca onde está acontecendo um festival de filmes escandinavos. Somos, quando agimos de uma maneira nobre e desinteressada, idênticos aos repelentes morcegos cujo instinto de sobrevivência da espécie incita a levar sangue na boca a seus congêneres inválidos? Ou existe, na Rose of Sharon inventada por John Steinbeck, que dá de mamar de seus peitos ao velho faminto, algo além de um processo químico biológico que faria dela uma autômata, um robô que imita a caridade? É algo impossível de averiguar, é algo que devemos decidir e atuar de forma consequente. Pois o que está em jogo, no fundo desse duro problema, não é se Deus existe ou não, mas se somos livres ou não. Se os cem milhões de neurônios que, pelo visto, vibram em nosso cérebro decidem nossos afetos e defeitos, nossas virtudes e vícios, não somos livres; aparentamos uma liberdade que não temos, pois nossa conduta está dirigida fatidicamente por aqueles microscópicos organismos que pululam por nosso corpo. Não nos convém que seja assim, mesmo que seja. A liberdade, embora às vezes pareça apenas uma mímica nossa, termina por se emancipar de toda forma de behaviorismo e, embora dito desta forma acabe sendo uma cacofonia, praticá-la nos torna livres. A longa história da humanidade não seria, por acaso, uma teimosa luta para escapar desses condicionamentos físicos, naturais, nos quais ficaram presos os animais e dos quais nós, seres humanos, fomos nos liberando depois de inumeráveis aventuras, quedas e reerguimentos? Como todas as boas obras de teatro, The Hard Problem, de Tom Stoppard, começa realmente só depois que o espetáculo termina.

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