quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Yoani Sánchez / Conduta, com C de Cuba





Um dos cartazes cubanos do filme.
Um dos cartazes cubanos do filme. DIVULGAÇÃO

Conduta, com C de Cuba

Há décadas nenhum filme nacional era tão popular e provocava tantas opiniões


YOANI SÁNCHEZ
Havana 30 SET 2015 - 11:15 COT

Miguel ganhou muito dinheiro nessa semana. Conseguiu vender quase uma centena de cópias piratas do filme cubano Numa escola de Havana (Conducta, no original). Mesmo com o filme sendo exibido em vários cinemas do país, muitos preferem vê-lo em casa entre amigos e familiares. A história de um garoto de apelido Chala e de sua professora Carmela causa furor e longas filas do lado de fora das salas de exibição. Há décadas nenhuma produção nacional era tão popular e provocava tantas opiniões.
Por que a última obra do diretor Ernesto Daranas está se transformando em um fenômeno social? A resposta vai além das questões artísticas para entrar na força de seu drama. Apesar de contar com uma excelente fotografia e um magnífico trabalho de interpretação dos atores, é o realismo de seu roteiro a mais acabada conquista dessa produção. O filme gera uma empatia imediata com o público, ao refletir suas vidas como se fosse um espelho.
Nas salas escuras e diante da tela, os espectadores aplaudem, gritam e choram. Os momentos de maior emoção na plateia coincidem com os diálogos politicamente mais críticos. “Não estou há mais tempo do que aqueles que nos governam”, responde a professora Carmela quando querem aposentá-la porque está “há muito tempo” no magistério e uma ovação de apoio percorre a sala de cinema nesse instante. A penumbra exacerba o atrevimento e a cumplicidade.
O fenômeno Numa Escola de Havana se explica por sua capacidade de refletir a existência de muitos cubanos. Mas vai além de um simples retrato realista, para se transformar em uma radiografia que toca o âmago do assunto. Uma Cubaonde mal restam preceitos morais para um garoto a anos-luz desse entorno ideal para a infância narrado pela imprensa oficial. Com apenas 11 anos, Chala mantém sua mãe alcoólatra com o que ganha em brigas ilegais de cachorros, mora em uma cidade bruta, injusta, empobrecida até não mais poder.



Uma Cuba onde mal restam preceitos morais para um garoto a anos-luz desse entorno ideal para a infância narrado pela imprensa oficial"

Não é a primeira vez que o cinema cubano mostra o lado duro da realidade. O filme Morango e chocolate(1993) definiu pautas em relação à crítica social, especialmente a discriminação contra homossexuais e a censura artística. O custo de seu atrevimento foi alto, pois demorou 20 anos para ser transmitido pela televisão nacional. O filme Alicia en el pueblo de Maravillas (1991) teve pior sorte, a polícia política encheu as salas de exibição com militantes do partido que lançavam insultos à tela. Numa escola de Havana chegou em uma conjuntura diferente.
A extensão das novas tecnologias permitiu que muitos realizadores de audiovisual finalizassem seus projetos. Roteiros críticos, mordazes e contestadores apareceram nos últimos cinco anos por não precisarem da aprovação e dos recursos do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (ICAIC). Essa proliferação de curtas, documentários e filmes independentes foi uma conjuntura muito favorável para o filme de Ernesto Daranas. Os censores sabem que não vale a pena vetar esse tipo de filme nos circuitos estatais. As redes ilegais o teriam propagado como se fosse pólvora.



Não é a primeira vez que o cinema cubano mostra o lado duro da realidade, mas este filme chega em um momento diferente"

Uma breve conversa do lado de fora do cinema Yara evidencia a polêmica desatada pela história. “Existem muitas pessoas que vivem melhor do que Chala, é verdade, mas existem outros que vivem muito pior”, afirma um senhor por volta dos 60 anos. Uma jovem responde que se pergunta se o diretor não “exagerou na sordidez das situações narradas”. Outra moça também entra no debate para esclarecer “Você diz isso porque mora em Miramar, onde essas coisas não acontecem”.
Na noite de terça-feira, o jornalista oficial Randy Alonso também estava na fila do cinema para assistir ao filme na última sessão do dia. Atrás dele se escutavam risadinhas e frases como “O que ele está fazendo aqui?”, uma vez que seu rosto é associado a um jornalismo acrítico e adulador do poder. Já dentro da sala de cinema, aqueles que se sentaram perto de Randy não o viram participar do coro de gritos de apoio. Parecia afundar no assento a cada minuto que se passava, querendo passar desapercebido. O que ele via na tela era justamente o contrário do que explica em seu entediante programa Mesa Redonda.
Isso é Numa Escola de Havana, capaz de reunir em uma mesma sala os fabricantes do mito e os oprimidos pelo mito. Quando o projetor for desligado, as portas serão abertas e os espectadores sairão a uma realidade semelhante à do roteiro, mas onde já não poderão se manifestar sob a proteção da penumbra. Chala os aguarda em qualquer esquina.

Eddie Redmayne / “Meu trabalho foi encontrar a mulher que há em mim”

Eddie Redmayne 

“Meu trabalho foi encontrar a mulher 

que há em mim”

Com ‘A garota dinamarquesa’, o nome de Eddie Redmayne está cotado para outro Oscar

No filme, o ator dá vida a Lili Elbe, a primeira transexual que foi operada

  • Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’
Eddie Redmayne
Eddie Redmayne, no festival de cinema de Toronto. /WIREIMAGE
Se Eddie Redmayne fala a primeira coisa que lhe passa pela cabeça a seu interlocutor é porque, dentro de alguns meses, ele pode estar com seu segundo Oscar nas mãos. O primeiro, o que ganhou como melhor ator com seu retrato de Stephen Hawking em A teoria de tudo, brilha reluzente em seu apartamento de Londres. “Está em uma mesinha junto ao Globo de Ouro, e sempre que chego em casa me surpreendo porque a experiência de vê-lo ali continua me parecendo irreal”, confessa.
E agora vai ganhar o segundo. É o que dizem no Festival de Veneza, em Toronto, em Hollywood... Sua candidatura é certa para todos menos para este britânico de 33 anos, pálido e sardento, em um estado perene de alegria, assombro e humildade. “Acabei de conhecer Johnny Depp em pessoa e ainda estou em estado de choque. Em A garota dinamarquesa trabalhei com Amber [Heath], esposa dele. Não a tinha conhecido até agora. Formam um belo casal”, diz. “E Stanley Tucci? O que me diz? É meu ser humano favorito! Ele e sua esposa Felicity. São demais. Adoráveis, adoráveis”, acrescenta falando de Spotlight.
Redmayne é um ser humano dos pés à cabeça e, no entanto, foi alçado em menos de dois anos ao Olimpo dos deuses de Hollywood.

Pergunta. De onde vem tanta humildade?
Resposta. Suponho que parte venha de meus pais, do que me ensinaram. Da segurança de que tudo que sobe precisa descer. Todos já vimos. Especialmente em nosso trabalho, tudo é tão efêmero. E tive sorte. Sorte que todos os que receberam o roteiro de A teoria de tudoantes disseram não.
P. E a beleza? Em A garota dinamarquesa todos admiram sua transformação em mulher para dar vida a Lili Elbe, o primeiro transexual que foi operado.
R. Tom [Hooper, diretor do filme] sempre fala de minha feminilidade e é interessante porque sou idêntico à minha mãe. Mas meu trabalho neste filme foi encontrar a mulher que há em mim.
Este ator nascido em berço de ouro – educado em Eaton ao lado do herdeiro do trono britânico, o príncipe William, antes de concluir seus estudos em Cambridge – está encantado de provocar um novo debate com a estreia de A garota dinamarquesa, algo que abre os olhos para uma possível fluidez sexual na qual “não há gêneros, apenas seres humanos”.


Eddie Redmayne exibe o Oscar de melhor ator, ao lado de sua esposa, Hannah Bagshawe. /VALERIE MACON (AFP)
P. O sr. está a ponto de completar seu primeiro aniversário de casamento com Hannah Bagshawe, outra mulher em sua vida...
R. Parece mentira como o tempo passa. Me dei conta quando Hannah me lembrou que só restam alguns meses para que ela se sente onde quiser na mesa, em vez de continuar a tradição que diz que durante o primeiro ano de casados a esposa deve se sentar à direita do marido (risos). E que ano! Que Oscar o quê! O melhor foi meu casamento.
P. Mas teve tempo de aproveitar com tanta filmagem?
R. Nos conhecemos desde pequenos e Hannah já me viu em todo tipo de confusão. Mesmo assim ainda me ama. Além disso, somos noivos há muito tempo. Com os preparativos do casamento, nossa vida acabou se transformando em uma maravilhosa montanha russa até o Oscar. Mas tivemos tempo para viajar de lua de mel para as Maldivas. Um paraíso absoluto, sem celulares, desconectados de tudo. Nunca tinha passado férias com areia branca e água turquesa. E, sem dúvida, proteção solar fator 500, até na sombra. Tão britânico!
P. Tudo soa cotidiano demais para uma estrela, especialmente uma que está entre as mais bem vestidas de Hollywood.
R. Foi o que disse um tabloide quando colocou o título Eddie Mundaine [jogo de palavras que significa Eddie, o mundano] em uma série de fotos de mim na tinturaria ou tomando um café vestido de maneira informal tiradas por um paparazzi. Mas essa é a realidade da minha vida quando não estou falando de algo que me apaixona ou no tapete vermelho.




domingo, 27 de setembro de 2015

Danilo Venticinque / A tristeza de perder um escritor


João Ubaldo Ribeiro

A tristeza de perder 

um escritor

Os últimos dias têm sido difíceis para amantes da literatura

DANILO VENTICINQUE
24/07/2014 - 11h29 - Atualizado 24/07/2014 11h29


Perder um ídolo é como perder um amigo. Todo fã já sentiu essa dor, não importa do que e de quem sejamos fãs. Mas tenho a impressão de que os fãs de literatura sofrem mais. Talvez seja da natureza da atividade, que não nos dá tempo para nos prepararmos para a perda. Torcedores apaixonados começam a experimentar o luto quando seus ídolos no esporte se aposentam. Quem ama música está acostumado às turnês de despedida, uma forma humana e lucrativa de preparar fãs e ídolos para o fim. Não há nada parecido na literatura. São raríssimos os autores que fazem como Philip Roth e anunciam sua aposentadoria quando ainda têm plenas condições de produzir. Pelo contrário. Para nossa sorte, a maioria segue trabalhando e encantando leitores enquanto saúde permite, numa velhice cheia de eventos e projetos literários. Nossos heróis sempre morrem no auge.
Daí vem a nossa dificuldade para lidar com dias difíceis como esses. De uma hora para outra não temos mais João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e, agora, Ariano Suassuna. Nunca perdemos tanto em tão pouco tempo, e nunca estivemos preparados.
A literatura virou um assunto triste. Na internet, cada um busca a melhor maneira de homenagear seu escritor favorito. Frases, fotos e casos tentam resumir o irresumível e captar em poucas linhas a essência de quem deixou milhares de páginas para seus leitores.
Além de demonstrar o carinho dos leitores, essas homenagens ajudam a levar um pouquinho da obra desses escritores para quem nunca teve a sorte de conhecê-los em vida. É a única notícia boa nesses dias difíceis para a literatura brasileira. Nunca se falou tanto em João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Mesmo quem só leu meia dúzia de páginas vira fã, e divulga o trabalho do ídolo para quem não o conhecia nem de nome.
Há fãs antigos que se revoltam contra os recém-convertidos. Reclamam que basta um escritor morrer para que todos se tornem seus admiradores. Que os novos fãs são movidos não pelo amor à obra do autor, mas pela vontade de participar da comoção coletiva. Sentem que são um pouquinho "donos" do autor por tê-lo conhecido antes, e que, por isso, a dor deles é maior do que a da maioria.
Talvez estejam certos. Cada um lida com o luto à sua maneira. Mas talvez a melhor forma de homenagear o escritor seja acolher os novos fãs em vez de reprová-los. "Eu sei que vou morrer, mas meus personagens ficarão todos com vocês", disse Suassuna em sua última aula. Quanto mais pessoas conhecerem seus textos, mais vivo estará o autor. Para honrar a memória de um escritor, nada melhor do que consumi-lo e espalhá-lo. Ler sua obra e cuidar para que ela seja lida.
Além de demonstrar tristeza por perder um ídolo, é hora de lembrar por que eles merecem tantas homenagens. Reler nossos textos favoritos, descobrir livros que ainda não conhecíamos e compartilhar nossas descobertas com outros leitores. Por que não aproveitar o momento para finalmente criar coragem para enfrentarA pedra do reino, ou reencontrar o Sargento Getúlio? Quando um grande escritor morre, a leitura é a melhor homenagem possível. Talvez a única homenagem à sua altura.




sábado, 26 de setembro de 2015

Contos do russo Tolstói ganham edição no Brasil

Tolstói


Contos do russo Tolstói ganham edição no Brasil

"Contos completos", de Tolstói, tem três volumes. A obra ilustra a genialidade do escritor, considerado pelos críticos de sua época melhor do que Dostoiévski

RUAN DE SOUSA GABRIEL
25/09/2015 - 14h04 - Atualizado 25/09/2015 14h06
QUEM É MELHOR? Fiódor Dostoiévski (à esq.) e Liev Tolstói (à dir.), cujos Contos Completos são editados no Brasil. Tolstói fazia coro com os críticos que reprovavam o estilo soturnode Dostoiévski (Foto: Fotos: Hulton Archive/Getty Images)
"Tolstói é o maior prosador russo". O autor do elogio é Vladimir Nabokov (1899-1977), outro grande prosador russo. Nabokov lecionou literatura russa em universidades americanas, onde apresentava a obra de Liev Nikoláievich Tolstói, o conde místico da vila de Iásnaia Poliana. Nabokov, um nobre que fugira dos revolucionários bolcheviques, encontrou a imagem da pátria perdida nos escritos do conde. Tolstói convida o leitor a passear por salões aristocráticos e a contemplar a natureza ao lado dos camponeses russos, os mujiques. Nesse passeio conduzido com mão de mestre, o convidado nem percebe em qual momento começou a pensar em temas como a vastidão e a fragilidade da vida. Agora, as páginas desse mundo estão abertas ao leitor brasileiro. O lançamento Contos completos (Cosac Naify, 2080 páginas, R$ 139) reúne, em três volumes, a produção do autor desde a década de 1850 ao início do século XX.
Contos completos, de Liev Tolstói (Foto: divulgação)
A linguagem exuberante e as detalhadas descrições de Tolstói davam a Nabokov um prazer que ele não encontrava na obra de outro escritor russo, hoje muito popular: Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Nabokov comparou os recursos estéticos de Dostoiévski a “porretadas”, enquanto os de Tolstói eram como “o toque suave dos dedos de um artista”. Tolstói e Dostoiévski nunca se encontraram. O conde fazia coro com os críticos que consideravam Dostoiévski um autor de romances mal-acabados e dono de um estilo rude.
Nas obras de Tolstói, em romances como Anna Kariênina e Guerra e paz, destacam-se personalidades monumentais, vigorosas, que afrontam o destino. Nas de Dostoiévski, como Crime e castigo e Os irmãos Karamázov, desfilam prostitutas, místicos e assassinos atormentados pela culpa. O próprio autor teve problemas com o jogo e a bebida. Na juventude, envolveu-se com socialistas e passou anos na cadeia. O século XX o redimiu. Foi apontado como o profeta que alertara sobre os riscos da influência das filosofias materialistas na alma russa. “Ele previu as tragédias do século XX, como o surgimento do terrorismo, tema de Os demônios”, diz Elena Vássina, professora do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo. Dostoiévski, diferente de Tolstói, escrevia contra o relógio, pois precisava do dinheiro dos editores para saldar dívidas. Pouco descrevia personagens e paisagens. Nabokov explicava aos alunos que os personagens de Dostoiévski, ao longo do livro, não se desenvolvem. “Nós os recebemos completos no começo da história”, disse Nabokov. Tolstói, um conde com tempo nas mãos, desenvolve os personagens ao longo de muitas páginas. Ele aprimorou a técnica que os críticos formalistas russos chamaram de “estranhamento”: fazer o leitor se sentir como se contemplasse algo pela primeira vez.
Nas histórias curtas, as oposições entre os dois gigantes continuam. Dostoiévski usava os personagens de suas narrativas menores para apresentar temas que seriam mais bem desenvolvidos em seus romances. Tolstói usava contos e romances com fins diferentes. “O conto foi o instrumento que Tolstói sempre teve à mão para questionar e fazer experimentos estéticos”, afirma Rubens Figueiredo, o tradutor.
O conto remetia às antigas narrativas orais dos camponeses, que viviam segundo os valores que Tolstói admirava. Ao transformá-los em personagens de seus contos, questionava a suposta superioridade dos padrões sociais que a Rússia importava da Europa. “Há três oposições que aparecem em toda a obra de Tolstói: servidão e liberdade, guerra e paz, natureza e civilização”, afirma Sonia Branco, professora de literatura russa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ele mergulha na alma do homem do campo para mergulhar na alma humana”.  Dostoiévski também mergulhava, mas por meio dos conflitos do homem urbano, às voltas com as ideias debatidas na Rússia da época.
Sorte nossa poder visitar esses recônditos da alma humana por dois caminhos tão diferentes e tão ricos. Tolstói concluiu, afinal, que esses mergulhos o isolavam da humanidade. “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”, afirmou. Já idoso, decidiu afastar-se da literatura. Sorte nossa que, volta e meia, ele caía em tentação, imergia na solidão criativa e escrevia obras-primas.





terça-feira, 22 de setembro de 2015

Christopher Hitchens / O contestador no espelho

Chirstopher Hitchens
Christopher Hitchens
O contestador no espelho


A relação entre pais e filhos na Inglaterra da década de 50 era muito formal. Eric Ernest Hitchens e seu filho, Christopher, não fugiam à regra. Avesso a conversas, Eric era um homem comum, que trabalhou por décadas na Marinha britânica, apegado à estabilidade e nada contestador. Totalmente diferente do filho. Christopher Hitchens é um dos mais sagazes colunistas do jornalismo americano. Contribui para as revistas Vanity Fair e Slate (esta, online), e seus textos são republicados quinzenalmente por ÉPOCA. Em 1978, ele lidou com a morte do pai, acometido por um ataque cardíaco pouco tempo depois de saber que sofria de câncer no esôfago. Em junho, Hitchens descobriu ter a mesma doença do pai. Para fazer as sessões de quimioterapia, teve de cancelar o tour que faria para promover sua autobiografia, Hitch-22, a memoir (Hitch-22, memórias, Twelve Books, 435 páginas, sem previsão de lançamento no Brasil). Uma relativa ironia, porque Hitchens dá mais destaque no livro às contribuições para sua formação intelectual, sem se apegar muito a questões pessoais. 


O gosto pela contestação permeia o livro, a começar pelo título. Trata-se de uma referência à obra Catch-22, escrita em 1961 por Joseph Heller, em que o autor faz uma sátira à burocracia militar americana na Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, “catch-22” tornou-se uma expressão para designar situações de difícil solução. Algo adequado para o modo de vida cético que Hitchens passou a ter com as frustrações ideológicas. Aos 15 anos, ele começou a demonstrar interesse por causas sociais – o que culminou na sua adesão à Internacional Socialista. Ele se via como um cara à frente do seu tempo, “uma daquelas pessoas da década de 60 com cara de década de 80”. “Eu vendia exemplares do 'Trabalhador Socialista', fazia grafite pró-vietcongs, discutia com os sociais-democratas, comunistas ou antitrotskistas”. Ao mesmo tempo, porém, sua racionalidade não o cegava. Ele sempre foi um crítico dos exageros do comunismo. A primeira grande decepção se deu em uma visita a Cuba, onde viu e viveu um regime totalitário que, segundo ele, controlava até seus horários para sair do hotel. 



Nos anos 80, Hitchens se muda para os EUA. Primeiramente, Washington. Depois, Nova York, que o fascina. “Como uma sociedade podia ser conservadora, liberal e revolucionária ao mesmo tempo?”. No fim daquela década, ele assiste à falência dos regimes comunistas, o que o torna ainda mais ácido sobre modelos políticos autoritários. Talvez a mudança de opinião mais radical tenha sido sobre o Iraque. Em sua juventude, na década de 70, Hitchens achava que Saddam Hussein se tornaria um socialista e traria progresso aos iraquianos. Trinta anos depois, para surpresa de muitos colegas, ele estava apoiando a guerra do Iraque, conduzida pelo ex-presidente George W. Bush com o argumento nunca provado de que Saddam tinha armas de destruição em massa. Durante visita ao país, em 2003, Hitchens diz ter ouvido de iraquianos que “sem o senhor Bush muitos deles já estariam mortos”. Mas seu aval à guerra causou uma perda humana, contada com detalhes em Hitch-22



Mark Daily, um jovem californiano de 23 anos, casou-se pouco tempo antes de ser enviado ao Iraque, onde ele morreu na explosão de uma granada, em janeiro de 2007. Até aí, nada demais. O que colocou Daily na vida de Hitchens, sem ele nem saber, foram seus próprios textos. Daily era contrário à guerra. Por meio de uma reportagem do jornal Los Angeles Times, Hitchens descobriu que a maneira como ele defendia e justificava a guerra no Iraque foi determinante para fazer Daily se alistar. O jovem contou à família que pretendia ser uma espécie de correspondente para Hitchens diretamente do front, mas o soldado, uma vez na guerra, não conseguiu contato com o autor. “Tanto lixo chega diariamente à minha caixa de emails, mas esse importante contato não me alcançou”, diz Hitchens. Quando teve conhecimento do caso, ele procurou a família de Daily, que o apresentou à história. Ele não se sentiu culpado, mas se deu conta da influência de suas opiniões. 



Alguns capítulos de Hitch-22 são dedicados a amigos de Hitchens que o influenciaram de alguma maneira. Um deles é James Fenton, poeta inglês, que dividiu casa com Hitchens em Oxford. Fenton foi o responsável por introduzir Hitchens nos vícios do cigarro e do álcool – sobre os quais ele evita falar durante o livro, embora assuma exageros. Fenton também ajudou Hitchens no começo de sua carreira como jornalista em Londres. Outro amigo antigo contemplado é o ensaísta britânico Martin Amis, de quem admira o sucesso com as mulheres. Foi Amis quem apresentou Hitchens a Margaret Thatcher, a Dama de Ferro. Ele a considerou “surpreendentemente sexy”. Em resposta, foi chamado de “garoto safado”. Com Salman Rushdie, autor dos Versos Satânicos – polêmico livro que provocou uma reação irada de líderes muçulmanos –, Hitchens compartilha opiniões contra o colonialismo. 



Nos poucos momentos em que fala da vida pessoal, Hitchens é sucinto. Narra rapidamente um relacionamento homossexual que teve com um garoto de sua idade, no colégio. Eles trocavam poemas e ficavam juntos, mas foram descobertos e obrigados a se afastar. Hitchens diz que a proibição o “matava”. Sobre a religião, também poucas palavras. Hitchens é ateu convicto (ele é autor do livro Deus Não é Grande) e nunca teve a religião como um assunto marcante dentro de casa. Sua mãe, Yvonne, a quem Hitchens agradece pelo interesse intelectual despertado nele, era judia, mas manteve isso em segredo até a morte, temendo as dificuldades que Hitchens e seu irmão, Peter, poderiam encontrar por serem de uma família. Ambos só souberam mais de dez anos depois de Yvonne morrer, por meio de uma tia. Hitchens classifica a religião como uma forma de imposição, pelo mais forte, de medo e amor. Logo, rezar pela saúde de alguém que não acredita em oração seria um grande paradoxo. O jornalista americano Jeffrey Goldberg, amigo de Hitchens, tocou justamente nesse assunto em um artigo no site da revista The Atlantic, com uma pergunta irônica. “Devemos orar por ele?”. Na semana passada, Goldberg entrevistou Hitchens, já bastante abatido pelo tratamento do câncer. Perguntou se ele se importava com as orações. “Não”. Mesmo que isso não mude nada, emendou Hitchens.


EPOCA





segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Christopher Hitchens / Um pensador sem amarras ideológicas

Christopher Hitchens
EM MEMÓRIA

Christopher Hitchens 

(1949-2011)

Um pensador sem amarras ideológicas


Por RODRIGO TURRER
16/12/2011 19h24 - Atualizado em 21/09/2012 19h53

São raros os intelectuais públicos sem amarras ideológicas, livres-pensadores guiados por uma bússola moral própria. Um deles se foi na última quinta-feira, dia 15, aos 62 anos. Radicado nos Estados Unidos, o jornalista e ensaísta britânico Christopher Hitchens morreu de pneumonia, provocada por uma complicação do câncer de esôfago contra o qual lutava desde 2010.
Colaborador das revistas americanas The AtlanticVanity Fair e Slate e colunista de ÉPOCA, Hitchens foi um intelectual franco-atirador. Dois de seus principais inimigos se encontram em polos opostos da política americana: Henry Kissinger e Bill Clinton. O primeiro, ex-secretário de Estado americano, mereceu um livro sobre seus “crimes de guerra”. Em O julgamento de Kissinger, Hitchens o chama de “mentiroso, assassino e pseudoacadêmico”. Contra Bill Clinton, seu contemporâneo na Universidade de Oxford, onde estudou filosofia, política e economia, as acusações são do mesmo calibre: “Clinton (...) é um testa-de-ferro subserviente de todo tipo de interesses corporativos”, escreveu Hitchens em sua autobiografia, Hitch 22.
A batalha mais notória de Hitchens, porém, foi contra Deus. Seu pai era cristão. Sua mãe escondeu da família até a morte que era judia. Ele era ateu convicto. No livro Deus não é grande(2007), ataca de forma erudita o fanatismo e o obscurantismo religiosos. As discrepâncias entre o discurso e os atos de líderes religiosos sempre serviram de argumento para suas críticas. Sobre o Dalai-Lama, prêmio Nobel da Paz em 1989, dizia que dominava de forma tirânica o povo tibetano. Madre Teresa de Calcutá (1910-1997), Nobel da Paz em 1979, foi chamada por Hitchens de “fraude católica”.
Em meio à agitação dos anos 1960, Hitchens se juntou a uma turma de promissores futuros intelectuais, entre eles os escritores Martin Amis, Ian McEwan, Julian Barnes e James Fenton. Aderiu ao trotskismo por ser contra a tirania totalitária de Stálin. Mas gradualmente migrou para a direita. “Troquei as ilusórias e contraproducentes utopias da juventude pela sofrida e realista sabedoria da meia-idade”, disse certa vez. No auge dessa metamorfose, tornou-se um dos maiores defensores da invasão do Iraque por George W. Bush.
A vida pessoal de Hitchens foi tão conturbada quanto a pública. Sua mãe se suicidou depois de fazer um pacto de morte com o amante. A relação com o pai, Eric, um rigoroso oficial da Marinha, era péssima – ironicamente, Hitchens morreu da mesma doença que ele. Foi casado duas vezes, teve três filhos e inúmeros casos amorosos com ambos os sexos. Tão folclóricos quanto seus romances eram os porres, interrompidos apenas com o diagnóstico do câncer. Em sua última aparição pública, disse que não se arrependia da vida regada a cigarros e bebedeiras. E arrancou aplausos com a seguinte frase: “Eu não vou desistir até que seja forçado a isso”.



domingo, 20 de setembro de 2015

Christopher Hitchens / "O dia em que minha voz falhou"


Christopher Hitchens

 "O dia em que minha voz falhou"


Com a ajuda de morfina e adrenalina, ainda conseguia “projetar” com sucesso minhas falas, até que fiz uma tentativa de chamar um táxi na frente de casa – e nada aconteceu



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Como tantas das experiências da vida, a novidade do diagnóstico de um câncer maligno tende a se dissipar. As coisas começam a ficar tediosas, até mesmo banais. É possível se acostumar ao espectro da morte como um velho entediado e letal, espreitando no corredor no final da noite, esperando uma oportunidade de me abordar. E não me oponho a ele segurar meu casaco daquele modo formal, como que me lembrando que é hora de seguir caminho. Não, é o risinho abafado que me deprime.
Christopher Hitchens
 (1949-2011) foi um jornalista britânico. Colaborador da revista Vanity Fair, do site Slate e colunista de ÉPOCA, consagrou-se como um dos maiores polemistas de seu tempo. Este texto faz parte do livro Últimas palavras (Globo Livros), em que o autor narra sua luta contra um câncer no esôfago
Com demasiada regularidade, a doença me serve um atrativo especial do dia, ou um sabor do mês. Podem ser feridas e úlceras aleatórias, na língua ou na boca. Por que não um toque de neuropatia periférica envolvendo pés dormentes e frios? A existência diária se torna uma coisa de bebê, medida não nas colheres de café do Prufrock de T.S. Elliot, mas em pequenas doses de alimento, acompanhadas de barulhos encorajadores dos espectadores ou de discussões solenes e em tom maternal com estranhos sobre as operações do sistema digestivo. Nos dias menos bons, me sinto como aquele leitão de perna de pau da família sadicamente sentimental, que só consegue comê-lo um pedaço de cada vez. Com a diferença de que o câncer não é tão... atencioso.

O mais desalentador e alarmante, até agora, foi o momento em que minha voz de repente se transformou num agudo guincho infantil (ou talvez suíno). Ela, então, começou a variar bastante, de um sussurro rouco e rascante até um balido frágil e melancólico. Em certos momentos ameaçava, e agora ameaça todos os dias, desaparecer completamente. Eu tinha acabado de voltar de duas palestras na Califórnia, onde, com a ajuda de morfina e adrenalina, ainda conseguira “projetar” com sucesso minhas falas, até que fiz uma tentativa de chamar um táxi na frente de casa – e nada aconteceu. Fiquei de pé, paralisado, como um gato bobo que, de repente, perdeu seu miado. Eu costumava ser capaz de deter um táxi nova-iorquino a trinta passos de distância. Conseguia também, sem microfone, alcançar a última fila e a galeria de uma lotada sala de conferências. Pode não ser algo de que se vangloriar, mas as pessoas me diziam que, mesmo na sala ao lado, com o rádio ou o televisor ligados, elas sempre conseguiam identificar meu tom e saber que eu estava “no ar”.
LUTA Christopher Hitchens  em fevereiro de  2011, dez meses  antes de morrer.  Mesmo sob efeito  da quimioterapia,  ele continuou  a escrever enquanto enfrentava o câncer  (Foto: Brooks Kraft/Corbis)
Como a própria saúde, tal perda não pode ser imaginada até que acontece. Assim como todo mundo, brinquei de versões do jogo juvenil “o que você preferiria?”, no qual normalmente se debatia se o mais opressivo seria a cegueira ou a surdez. Não me lembro de ter especulado muito sobre de repente ficar mudo. A privação da capacidade de falar é mais como um ataque de impotência, ou a amputação de parte da personalidade. Em grande medida, em público e em particular, eu “era” minha voz. Todos os rituais e a etiqueta da conversa – desde pigarrear nos preparativos para contar uma piada longa e exigente até (nos dias de juven-tude) tentar tornar minhas propostas mais persuasivas, enquanto eu estrategicamente baixava o tom em uma oitava de constrangimento – eram inatos e essenciais para mim. Nunca fui capaz de cantar, mas podia recitar poesia e citar prosa, e algumas vezes era até mesmo convidado a fazê-lo. Timing é tudo na fala: há o momento preciso para arrematar uma história, para enfatizar um verso, para produzir riso ou para ridicularizar um oponente. Eu vivia para momentos assim. Agora, quando quero entrar numa conversa, tenho de chamar a atenção de outra forma, e suportar o fato terrível de que as pessoas então me escutarão “com compaixão”. Pelo menos, elas não precisam emprestar sua atenção por muito tempo: não consigo mantê-la e, de qualquer forma, não aguentaria fazê lo.



Quando você fica doente, as pessoas lhe dão CDs. Pela minha experiência, com frequência são de Leonard Cohen. Recentemente aprendi uma canção, intitulada “If it be your will”. É um pouquinho piegas, mas belamente interpretada. Começa assim: “If it be your will/that I speak no more/and my voice be still/as it was before...” (Se for seu desejo/que eu não fale mais/e minha voz ainda seja/como foi antes...). Acho melhor não ouvir isso tarde da noite. Leonard Cohen é inimaginável sem, e indissociável de, sua voz. (Duvido que quisesse, ou suportasse, ouvir essa canção com qualquer outro intérprete.) Digo a mim mesmo que, de certa forma, conseguiria me arrastar, me comunicando apenas por escrito. Mas só por causa de minha idade. Caso tivesse sido privado de minha voz antes, duvido que teria conseguido progredir no papel. Tenho uma enorme dívida para com Simon Hoggart, do Guardian, que, há trinta e cinco anos, me advertiu que um artigo meu era bem concebido mas tedioso – e me aconselhou rispidamente a escrever “mais do modo como você fala”. Na época, fiquei quase sem palavras com a acusação de ser tedioso. Jamais agradeci adequadamente.
Leonard Cohen (Foto: divulgação)
Mais tarde, ao dar minhas aulas de redação, começava dizendo que qualquer um capaz de falar também pode escrever. Depois de animar a turma com essa escada fácil, então a substituía por uma enorme cobra odiosa: “Quantas pessoas nesta turma vocês diriam que sabem falar? Quero dizer, falar de verdade?”. Tinha um efeito deprimente. Eu dizia a eles para ler seus textos em voz alta, preferencialmente para um amigo de confiança. As regras são quase as mesmas: fuja das frases feitas (como da peste, costumava dizer William Safire) e das repetições. Não diga que “quando garoto, sua avó costumava ler para você”, a não ser que, naquele estágio da vida, ela realmente tivesse sido um garoto, circunstância que, de qualquer forma, provavelmente exigiria de você uma introdução melhor. Se algo merece ser escutado, muito provavelmente merece ser lido. Então, descubra sua própria voz.
O cumprimento mais prazeroso que um leitor pode me fazer é dizer que sente que me dirijo a ele. Pense em seus autores preferidos e veja se essa não é uma das coisas que o cativam, sem que você tenha percebido. Uma boa conversa é o único equivalente humano: é quando você percebe que observações decentes são feitas e compreendidas, que há ironia envolvida, e elaboração, que um comentário tedioso ou óbvio seria quase fisicamente doloroso. Foi como a filosofia evoluiu nos simpósios, antes de ser escrita. A poesia começou com a voz como único instrumento de execução, e o ouvido, de registro. Não conheço nenhum escritor realmente bom que fosse surdo. Henry James e Joseph Conrad ditaram seus romances tardios, e Saul Bellow ditou muito de Humboldt’s Gift. Sem nossa correspondente compreensão do idioleto – a marca no modo como alguém fala e, portanto, escreve –, seríamos privados de um mundo de simpatia humana e de seus prazeres em tom menor de imitação e paródias.


De modo mais solene: “Tudo o que tenho é uma voz”, escreveu W.H. Auden em “September 1, 1939”, sua tentativa agoniada de compreender o – e se opor ao – triunfo do mal radical. “Quem pode alcançar o surdo?”, perguntou ele, desesperadamente. “Quem pode falar pelo mudo?” Mais ou menos na mesma época, a judia alemã Nelly Sachs, futura ganhadora do Nobel, descobriu que o surgimento de Hitler a deixara literalmente sem fala: roubara dela sua voz pela total negação de todos os valores. Nosso próprio idioma cotidiano preserva a ideia, embora amenizada: quando uma figura pública morre, os obituários com frequência dizem que ela foi “uma voz” para os não ouvidos.
Da garganta humana também podem emergir terríveis venenos: pranto, monotonia, queixumes, gritos, incitação (“o lixo militante mais vazio”, como Auden definiu no mesmo poema) e mesmo risinhos abafados. É a chance de erguer pequenas vozes serenas contra essa torrente de falatório e ruído, as vozes de perspicácia e contenção. Todas as melhores lembranças de sabedoria e amizade, da Apologia de Sócrates, por Platão, ao Life of Johnson, de James Boswell, vibram com os momentos não ditos, não programados, de interrelação, razão e especulação. É em embates como esse, competindo e se comparando a outros, que se pode esperar descobrir o fugidio e mágico mot juste, a palavra certa. Para mim, lembrar amizade é lembrar conversas que parecia um pecado interromper, aquelas que transformavam o sacrifício do dia seguinte em algo banal. Foi o modo pelo qual Calímaco escolheu lembrar seu amado Heráclito: “Eles me contaram, Heráclito; eles me contaram que você estava morto. Eles me levaram notícias amargas de ouvir, e lágrimas amargas a derramar. Chorei quando lembrei com que frequência você e eu havíamos cansado o sol conversando”. Ele sustenta a imortalidade do amigo na doçura de seus tons: “Ainda estão tuas vozes agradáveis, teus rouxinóis despertos; pois a Morte leva tudo, mas elas, não pode levar.” Talvez meio exaltado demais no verso final...


Na literatura médica, a corda vocal é uma mera “prega”, um pedaço de cartilagem que se esforça para se esticar e tocar sua gêmea, criando efeitos sonoros. Mas sinto que tem de haver uma relação profunda com a palavra “corda”: a vibração ressoante que pode despertar lembranças, produzir música, evocar amor, gerar lágrimas, conduzir multidões à piedade e turbas à paixão. Podemos não ser, como costumávamos nos vangloriar, os únicos animais capazes de falar. Mas somos os únicos que podem usar a comunicação verbal por prazer e diversão, combinando isso com razão e humor para produzir sínteses mais elevadas. Perder essa habilidade é ser privado de uma gama de capacidades: certamente é morrer mais que um pouco.
Meu maior consolo neste ano vivendo moribundo tem sido a presença de amigos. Já não consigo comer ou beber por prazer, então, quando eles se oferecem para vir, é só pela abençoada oportunidade de conversar. Alguns desses camaradas podem facilmente encher um auditório de pagantes ávidos para ouvi-los. São falantes com quem é um privilégio simplesmente estar. Agora eu, pelo menos, posso escutar de graça. Eles podem vir e me ver? Sim, mas só eles falam, eu escuto. Então, agora, todo dia vou para uma sala de espera e vejo as notícias terríveis sobre o Japão na TV a cabo (frequentemente em closed caption, apenas para me torturar), e espero impaciente que uma grande dose de prótons seja disparada para dentro do meu corpo a dois terços da velocidade da luz. O que espero? Se não uma cura, uma remissão. E o que quero de volta? Na mais bela composição de duas das palavras mais simples do idioma, freedom of speech*.
* Liberdade de expressão (literalmente, liberdade de fala)