sábado, 19 de setembro de 2015

Vargas Llosa / Menino morto na praia





Menino morto na praia

É bom que os países mais ricos e livres do mundo tomem consciência da encruzilhada moral representada pelas migrações maciças e espontâneas. Mas uma solução real e duradoura depende dos países de origem


19 SEP 2015

A fotografia de Aylan Kurdi, um menino sírio de três anos de idade morto em uma praia da Turquia quando sua família tentava emigrar para a Europa, comoveu o mundo inteiro. E serviu para que vários países europeus –nem todos, registre-se– aumentassem a sua cota de refugiados e para que a opinião pública internacional tomasse consciência da dimensão do problema representado pelas centenas de milhares, talvez alguns milhões, de famílias que buscam fugir da África e do Oriente Médio em direção ao mundo ocidental, onde acreditam que encontrarão trabalho, segurança e, em suma, a vida digna e decente que seus países não podem lhes oferecer.
Aylan Kurdi 
Foto de Nilufer Demir 

É bom que haja, agora, nos países mais ricos e livres do mundo, uma consciência ampla da encruzilhada moral representada pelo problema dessas migrações maciças e espontâneas, mas seria necessário que, por mais positivo que seja o esforço realizado pelos países avançados para receber mais refugiados em seu território, estes não se iludissem achando que, com isso, o problema estará solucionado. Nada mais falso. Mesmo que os países ocidentais adotassem a política de fronteiras abertas que os liberais radicais defendem –defendemos–, jamais haveria neles infraestrutura e trabalho suficientes para todos os que quisessem escapar da miséria e da violência que assolam algumas regiões do mundo. O problema está nelas, e só nelas mesmas é que se poderá encontrar uma solução real e duradoura. Lamentavelmente, tal como se apresentam as coisas na África e no Oriente Médio, isso ainda levará algum tempo. Mas os países desenvolvidos poderiam abreviar o processo se orientassem os seus esforços nessa direção, sem se deixar desviar por paliativos momentâneos de eficácia duvidosa.
A raiz do problema está na pobreza e na insegurança terríveis em que vive a maioria das populações africanas e do Oriente Médio, seja por responsabilidade de regimes despóticos, ineptos e corruptos, seja pelos fanatismos religiosos e políticos –por exemplo, o Estado Islâmico ou a Al Qaeda—gerados por guerras como as da Síria e do Iêmen, seja pelo terrorismo que acaba com vidas humanas diariamente, destrói moradias e submete milhões de pessoas a uma situação de pânico, desemprego e fome, como ocorre no Iraque, um país que vem se desintegrando lentamente. Não se trata de países pobres, pois, hoje em dia, qualquer país, mesmo sendo carente em termos de recursos naturais, pode prosperar, como demonstram os casos extraordinários de Hong Kong e Cingapura, mas sim de países empobrecidos pela cobiça suicida de pequenas elites dominantes que exploram com cinismo e brutalidade essas massas populacionais que antes se resignavam à sua sorte.
Isso já não é mais assim, graças à globalização e, sobretudo, à grande revolução das comunicações, que abre os olhos dos mais desvalidos e marginalizados para aquilo que acontece no restante do planeta. Essas multidões exploradas e sem esperança sabem agora que em outras regiões do mundo existe paz, coexistência pacífica, níveis de qualidade de vida elevados, seguridade social, liberdade, legalidade, oportunidades de trabalho e de progresso. E, com toda razão, dispõem-se a fazer todos os sacrifícios, inclusive o de arriscar a vida, para tentar chegar a esses países. Essa emigração jamais será contida à base de muros ou cercas de arame farpado, como as que foram ingenuamente erguidas ou se pretendem erguer na Hungria e em outras nações. Ela passará por baixo ou por cima destes e sempre encontrará máfias que facilitem a passagem, mesmo que estas às vezes enganem os migrantes e os levem não ao paraíso, e sim à morte, como no caso dos 71 infelizes que morreram semanas atrás asfixiados em um caminhão frigorífico nas estradas da Áustria.




A emigração jamais será contida à base de muros como os da Hungria

A capacidade de um país desenvolvido de receber refugiados possui um limite que não se deve ultrapassar, pois isso pode se tornar contraproducente e, em vez de resolver um problema, gerar outro, qual seja, reforçar movimentos xenófobos e racistas, como a Frente Nacional na França. Isso está ocorrendo inclusive em países mais avançados, como a Suécia, onde uma recente pesquisa de opinião aponta um partido anti-imigrantes como o mais popular. Não há nenhuma dúvida de que a imigração é algo indispensável para os países desenvolvidos, os quais, sem ela, não conseguiriam jamais manter no futuro os seus elevados níveis de qualidade de vida. Mas, para ser eficaz, essa imigração precisa ser organizada e orientada a partir de uma política comum inteligente e realista, como a que propõe a chanceler Angela Merkel, a qual, nesse caso, merece ser parabenizada pela lucidez e energia com que tem enfrentado o problema.
Na verdade, porém, este só poderá ser resolvido ali onde nasceu, ou seja, na África e no Oriente Médio. E isso não é impossível. Há duas regiões do mundo que antes eram, como essas agora, grandes geradoras de emigrações clandestinas para o Ocidente: boa parte da Ásia e a América Latina. Essa corrente migratória se reduziu visivelmente nas duas áreas à medida que a democracia e políticas econômicas sensatas abriam caminho, que Estados de Direito substituíam ditaduras, e suas economias começavam a crescer e a criar novas oportunidades e trabalho para a população local.
A maneira mais efetiva com a qual o Ocidente pode contribuir para diminuir a imigração ilegal é colaborando com aqueles que, nos países africanos e no Oriente Médio, lutam para acabar com as satrapias que os governam e instituir regimes representativos, democráticos e modernos, que criem condições favoráveis ao investimento e atraiam os capitais (bastante fartos) que circulam pelo mundo buscando lugares para fincar raízes.




Essas massas que vêm a Europa rendem, sem o saber, uma homenagem à cultura da liberdade

Quando eu era estudante universitário, lembro de ter lido, no Peru, uma pesquisa que me fez entender por que milhões de famílias indígenas migravam do campo para a cidade. Questionava-se que tipo de atração poderia ser exercida sobre elas a ponto de levá-las a deixar aquelas aldeias andinas tão glorificadas pelo indigenismo literário e artístico para viver na promiscuidade insalubre das favelas marginalizadas de Lima. A resposta era clara: por mais triste e imunda que a vida fosse nessas favelas, aqueles camponeses viviam ali melhor do que no campo, onde o isolamento, a pobreza e a insegurança pareciam inescapáveis. A cidade, ao menos, lhes oferecia uma esperança.
Qual pessoa, sofrendo a ditadura assassina de um Robert Mugabe no Zimbábue ou o inferno das bombas e do machismo patológico dos talibãs do Afeganistão, ou o horror cotidiano que eu mesmo presenciei no Congo, não tentaria fugir dali, atravessando florestas, montanhas, mares, expondo-se a todos os perigos, para chegar a um lugar onde pelo menos seja possível alguma esperança? Essas massas que afluem à Europa, denotando um heroísmo extraordinário, prestam, na maioria dos casos sem saber, uma grande homenagem à cultura da liberdade, dos direitos humanos e da coexistência na diversidade, que tem trazido desenvolvimento e prosperidade ao Ocidente. Quando essa cultura se expandir também –como já começou a acontecer na América Latina e na Ásia— para a África e o Oriente Médio, o problema da imigração clandestina acabará aos poucos se diluindo, até atingir níveis controláveis.
EL PAÍS


PESSOA

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