sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

 

O escritor brasileiro Jorge Amado e seu filho (quarto da esquerda para a direita) e o jornalista e dramaturgo tcheco Jan Drda (primeiro da esquerda para a direita), em Dobříš, castelo tcheco que serviu de residência para escritores tchecos e internacionais, em 1950. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.


Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

Antes da Covid-19, a cidade de Praga era visitada todos os anos por milhões de turistas em busca de cervejas baratas e arquiteturas espetaculares. Na década de 1950, por outro lado, a capital da então Tchecoslováquia atraiu uma multidão diferente de viajantes: intelectuais de esquerda de todo o mundo procurando ver como era a vida sob o regime socialista.

Muitos desses viajantes vieram da América Latina e dentre eles estavam gigantes da literatura, como Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Há muito esquecida, esta história compartilhada vem sendo aos poucos redescoberta e reavaliada na República Tcheca. 

Com o desenrolar da Guerra Fria, tanto o Ocidente quanto a União Soviética engajaram-se em intensos esforços publicitários a fim de demonstrar a superioridade de seus sistemas políticos e socioeconômicos, de modo geral, visando ao público na Ásia, África, Oriente Médio, e América Latina. E ambos os lados enxergaram na arte uma forma eficaz de transmitir essa mensagem.   

Na União Soviética, a Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros, ou VOKS na sigla em russo, tinha como missão convidar intelectuais e escritores de todo o mundo para os países da União Soviética e do Bloco Oriental, sobre o qual eles foram encorajados a escrever.

Tendo ingressado no Bloco Oriental em 1948, após seu partido comunista orquestrar um golpe, a Tchecoslováquia foi um desses destinos. Além de Jorge Amado e Gabriel García Márquez, o país recebeu escritores da Argentina (Raúl González Tuñón), do Brasil (Graciliano Ramos), do Chile (Ricardo Latcham, Pablo Neruda), de Cuba (Nicolás Guillén) e do México (Efraín Huerta, Luis Suárez). Alguns viajaram sozinhos, outros faziam parte de delegações maiores.  

Sendo assim, a partir dos anos 1950, Praga tornou-se um centro cultural da esquerda, reunindo escritores emergentes e estabelecidos nessa ideologia, como o turco Nazım Hikmet e o soviético Ilya Ehrenburg.

Na realidade, Pablo Neruda pode ter herdado seu nome artístico do escritor, poeta e jornalista tcheco do século 19, Jan Neruda (o poeta chileno nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto). Ele nunca admitiu essa suposição, contudo, fotos dele caminhando pela rua Neruda em Praga, ou posando diante de restaurantes e pubs sob o nome de “Neruda,” oferecem alguma base sólida para a especulação.

Michal Zourek, foto usada sob permissão.

A Global Voices conversou com Michal Zourek, acadêmico tcheco que enfoca os laços entre o Bloco Oriental e a América Latina. Zourek, autor do livro de 2018 “Československo očima latinskoamerických intelektuálů 1947-1959” (“Tchecoslováquia pelo olhar dos intelectuais latino-americanos de 1947 a 1959″, que também foi publicado em espanhol), explica o que motivou esses intelectuais a aceitarem tais convites:

Houve uma série de regimes autoritários na América Latina que, alegando a necessidade de suprimir forças subversivas de esquerda, reprimiram os direitos humanos de forma massiva. Essa é a razão pela qual artistas latino-americanos a favor da ideologia comunista conseguiriam apoio material e moral da Europa Oriental. A respeito dos testemunhos de suas viagens, os textos escritos nos anos de 1940 e 1950 são, em geral, cheios de entusiasmo. É claro que determinados aspectos das sociedades socialistas impressionaram bastante esses eruditos vindos de países em desenvolvimento, sobretudo, a posição da cena cultural no Leste Europeu. Há muitas referências à alta qualidade das peças teatrais, da infraestrutura das escolas e das bibliotecas públicas, e ao alto nível de escolaridade do povo.

Zourek segue explicando sobre como Praga e Moscou eram um porto seguro para que esses intelectuais fizessem contatos e se encontrassem. “Era comum de intelectuais latino-americanos encontrarem-se pela primeira vez na Europa Oriental”, disse. “Em seus países de origem não era possível, porque os governos anticomunistas e autoritários em vigor não permitiriam”.

A Europa Oriental, diz Zourek, desempenhou um papel crucial na literatura latino-americana, é possível que a lendária geração de escritores da década de 1960 não tivesse sido tão influente, se não fosse pelo movimento internacional comunista, inclusive no ocidente. “As obras de autores engajados saíram em impressões de grande formato (em tcheco, polonês ou russo), bem maiores do que as de suas línguas maternas, e tudo isso aconteceu por trás da Cortina de Ferro”, disse.

Busto de Pablo Neruda no centro de Praga. Foto de Kenyh da Wikipedia, usada sob a licença CC BY-SA  3.0.

Uma terra farta?

Ao visitarem Praga ou outros lugares da Tchecoslováquia, os intelectuais de esquerda, homens em sua maioria, eram tratados como VIPs: hospedavam-se em hotéis luxuosos, tinham as despesas pagas e acesso a guias bilíngues, recebiam honorários pela escrita, e eventualmente, tinham as obras traduzidas para o tcheco ou eslovaco.

Aqueles que receberam residência para escrever permaneceriam por longos períodos, de maneira notável no castelo de Dobříš, o reduto da união dos escritores tchecoslovacos dos anos de 1940 aos anos de 1990. Alguns permaneceram ainda por mais tempo, devido ao asilo político que obtiveram. 

Conforme explica Zourek:

Suas despesas de viagem eram pagas, e durante o programa de viagem, que foi elaborado de forma cuidadosa, receberam a proposta de observar apenas os aspectos mais ideais da vida local. Em troca, os hóspedes estrangeiros espalhariam impressões positivas via relatos de viagem, artigos e conferências. Esse fenômeno de ‘turismo político’ era o componente chave da propaganda soviética, uma estratégia bem planejada que teve início logo após a Revolução Russa de 1917. Um importante papel foi designado aos intelectuais os quais a União Soviética queria ao seu lado, a fim de usá-los mais tarde em sua luta ideológica com o Ocidente.

Jorge Amado (à esquerda) e Nicolás Guillén (à direita) em uma estação de trem da URSS, a caminho da China, janeiro de 1952. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.

Uma exceção interessante nesta visão e descrição idealizada é o colombiano laureado com o Nobel da Literatura, Gabriel García Márques que visitou a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a União Soviética em 1955 e 1957. Viajou parcialmente por conta própria e, quando convidado de forma oficial, encontrou maneiras de escapar do programa oficial para averiguar por conta própria. Em seu livro, “De viaje por Europa del Este” (“Em viagem pela Europa de Leste”), suas descrições da Europa Oriental são muito mais diversificadas.

No primeiro capítulo, García Márquez descreve a Alemanha Oriental em termos nada lisonjeiros, como nesta cena em que o escritor entre em um restaurante para tomar café: “O que as pessoas tomam no café da manhã seria o equivalente a uma refeição completa no restante da Europa (Ocidental), e bem mais barato. Contudo, esses indivíduos aparentam estar destruídos e amargurados, comendo enormes porções de carne e ovos fritos sem nenhuma alegria”.

Em outro capítulo sobre Moscou, escreve sobre o tópico tabu do culto à personalidade de Stalin, citando seu guia russo que diz: “Se Stalin ainda estivesse vivo (estava morto desde 1953), teríamos um Terceiro Mundo. Stalin foi a figura mais sangrenta, mais rancorosa e mais egocêntrica da história russa”.

Gabriel García Márquez (primeiro da esquerda para a direita) na Praça Vermelha, em Moscou, em agosto de 1957. Foto do arquivo de Michal Zourek, usada sob permissão.

Para os tchecos, uma herança redescoberta

O comunismo terminou no outono de 1989 na Tchecoslováquia, e nos estados sucessores da Eslováquia e da República Tcheca, o passado socialista é, com frequência, considerado um período obscuro de violações dos direitos humanos, de restrições de viagens e de obediência forçada a Moscou.

Essa visão influencia a abordagem dos historiadores tchecos e eslovacos sobre os intelectuais de esquerda que visitaram o país durante aquele período. Segundo Zourek, que estudou na República Tcheca e Argentina, destaca:

Durante o tempo em que estudei na universidade, ouvi algumas menções a respeito da estadia de Pablo Neruda e Jorge Amado na Tchecoslováquia, mas não fazia ideia de que tratava-se de um grande fenômeno, de que ambas as regiões mantinham contato mesmo antes da Revolução Cubana, em 1959. É provável que isso tenha acontecido devido ao desprezo, pelo qual hoje esses autores são lembrados na República Tcheca e na Eslováquia: muitos os consideram idealistas ou idiotas inúteis que, ao visitarem o país, apoiaram regimes que incentivaram violências e perseguições. A questão é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.

Embora esses autores sejam celebrados há muito tempo em seus países de origem na América Latina, apenas agora seu legado ressurge no discurso histórico da República Tcheca. Os registros de viagens de García Márquez foi traduzido para o tcheco pela primeira vez em 2018 (“Devadesát dnů za železnou oponou“), enquanto os outros permanecem, em grande parte, desconhecidos.

Zourek compartilha sua experiência pessoal, a fim de explicar por que o processo de reavaliação é tão desafiador:

Visitei o Chile logo após o ensino médio, as universidades eram repletas de bandeiras soviéticas e retratos de Lenin, as livrarias vendiam as obras de Marx e Engels. Pensei que a ideologia estivesse morta, e não conseguia entender como alguém poderia admirar uma ideologia criminosa que impôs limites à liberdade de expressão, que impediu pessoas de entrarem nas universidades e realizarem seus sonhos. Essa posição antagônica de ambas as regiões acerca do comunismo deve-se, sobretudo, a experiências históricas bastante distintas. Por esse motivo, eu penso que, ao avaliar o comunismo, devemos nos distanciar da nossa experiência e história familiar, que muitas vezes nos impedem de enxergar esse fenômeno transnacional em toda a sua diversidade. Infelizmente, essa dissociação ainda não está ocorrendo para muitos historiadores tchecos. Não acho surpreendente que pessoas inseridas no mundo em desenvolvimento tenham mais interesse nas políticas da Tchecoslováquia comunista do que seus pares na República Tcheca. Houve alguma mudança nos últimos anos, e penso que isso se deve à gradual reavaliação do período comunista pela sociedade tcheca. Acredito que nos próximos anos veremos uma série de trabalhos mostrando como a Tchecoslováquia comunista realizou empreendimentos notáveis no mundo em desenvolvimento, os quais foram, em sua maior parte, abandonados após 1989, por exemplo na área da cultura.

GLOBAL VOICES


sábado, 22 de outubro de 2022

Rafael Freire / O fotógrafo do Aglomerado da Serra





Rafael Freire, o fotógrafo do Aglomerado da Serra

"Meu trabalho é uma forma de resistir"

Rafael Freire,fotógrafo



Fred Gandra*

3 / 08 / 2020

Vidas negras importam – e muito. Determinado a valorizar o Aglomerado da Serra, a maior favela de Minas Gerais, Rafael Freire, de 27 anos, fotografa os moradores de sua comunidade. Quintais, becos e jardins são o cenário. Mais de 100 vizinhos já posaram para ele. “A ideia é dar voz a quem não tem”, explica o jovem fotógrafo, nascido e criado na comunidade localizada na Região Centro Sul de Belo Horizonte. “Algumas pessoas chegam a chorar quando veem o resultado”, revela.
Autodidata, Rafael começou a fotografar há 10 anos. A beleza e a sensibilidade das imagens atraíram 53,6 mil seguidores a seu perfil no Instagram – entre eles, o ator Babu Santana e o músico Pedro Calais, da banda Lagum. Ele também idealizou projeto Favela a Flor que se Aglomera, que já soma 2 mil fãs na mesma rede social. Junto das imagens, textos falam de racismo, negritude, ancestralidade e invisibilidade social.


DEPRESSÃO

Tudo começou na adolescência, quando Rafael enfrentou uma crise depressiva. Pediu emprestada a câmera fotográfica da irmã e decidiu fazer autorretratos. “Tentava, de alguma forma, enxergar beleza em mim”, conta. Para escapar da tristeza, também clicava a natureza. “Passava o dia tirando foto no Parque das Mangabeiras”, relembra.
Aos 17 anos, começou a trabalhar numa papelaria, onde conheceu Loris. “Ela perguntou qual era o meu maior sonho. Ninguém nunca havia me perguntado isso. Não sabia o que responder.” A colega insistiu, descobriu o hobby dele e sugeriu: “Por que você não vira fotógrafo?”.

“Respondi que era um sonho muito caro”, diz Rafael. A câmera havia estragado, mas Loris não se deu por vencida. Comprou outra, gastando economias que guardava para sua festa de casamento. Os dois assinaram um contrato informal, e o garoto se comprometeu a pagar a dívida, sem pressa. “Sou muito grato a esta moça”, confessa.

Em um ano e meio, Rafael quitou a dívida. E, claro, fotografou o casório de Loris. Não fez cursos, workshops ou oficinas. Ao pedir conselhos a fotógrafos profissionais, sempre ouvia: “Aprendi sozinho, você também aprende”. Dito e feito. Buscou ajuda em tutoriais na internet, treinou “brincadeiras com a câmera”. E se virou.

Em 2015, Rafael conseguiu emprego na Escola Municipal Senador Levindo Coelho, no Aglomerado da Serra. Logo depois, no início de 2016, conflitos envolvendo traficantes mudaram a rotina da região. “Tudo parou: escola, supermercado. Não dava para sair pra nenhum lugar.” Naquele momento, o jovem fotógrafo mirou suas lentes para a comunidade, em vez de árvores e flores. Registrou o morro, disposto a provar que a favela “não vive só de mazelas”.

Quando as aulas recomeçaram, ele pediu aos alunos que escrevessem textos com base naquelas fotografias. Um dos poemas dizia que não há flor na favela. “Fiquei triste com aquela frase”, conta Rafael. Então, decidiu espalhar mudas pelo Aglomerado. Dois anos depois, foi conferir o resultado. Comemora até hoje: “Tomei um susto, porque encontrei muitas flores.”

Assim surgiu o projeto Favela a Flor que se Aglomera, cuja filosofia é “plantar sementes” por meio da fotografia. Autoestima é o adubo da ação, valorizando os moradores da comunidade, transformados em modelos. Nas imagens, as flores surgem como adereços. A ideia de Rafael é também unir os negros.

Durante os ensaios, ele atua como uma espécie de terapeuta, buscando conhecer e destacar as qualidades de seus modelos. “Faço anotações para registrar o melhor de cada um”, comenta. Antes do clique, ouve sobre sonhos e sentimentos. “Tem todo um trabalho poético e terapêutico para que as pessoas se sintam melhor”, explica
A o longo do tempo, Rafael conquistou o reconhecimento da vizinhança. “Ando em qualquer lugar da Serra com a máquina na mão, sem ninguém perguntar aonde vou. Virei referência em fotografia na comunidade”, orgulha-se. Certa vez, o equipamento estragou e a vizinhança fez mutirão para comprar outra câmera. “Cheguei a chorar, porque não imaginava que meu trabalho tivesse tanto impacto assim”, confessa.

São dezenas de fotos postadas no Instagram. O artista não tem uma favorita, mas conta a história do ensaio com seu primo Marcos Vinicius, de 4 anos. O menino se assustou ao ver a câmera apontada para ele – pensou que era uma arma. “Achou que ia doer”, diz Rafael. O garoto ficou feliz ao se ver clicado enquanto brincava com água. A foto “bombou”, com mais de 6 mil curtidas no Instagram. Comovidos, internautas doaram brinquedos para Marcos Vinicius.


ARCO-ÍRIS
O confinamento social imposto pela pandemia vem atrapalhando os planos de Rafael Freire, mas ele não desanima. Antes da quarentena, organizava encontros dos colaboradores de seu projeto – mais de 100 jovens. Teve de suspender as reuniões. Agora publica retratos nas redes sociais. E passou a inserir um arco-íris nas imagens. Explica que se trata do “símbolo da alegria depois da turbulência”, lembrando que o arco-íris só aparece depois da tempestade.

Rafael luta para se profissionalizar. Já fez palestra no congresso Wedding Brasil, atrai fãs entre internautas e participou do projeto Fotografias por Minas ao lado de 300 colegas, ação solidária com o propósito de arrecadar recursos para programas voltados para vítimas da pandemia. Batalhador, busca remuneração justa para seu trabalho – um desafio e tanto. Certa vez, ouviu de um possível cliente que seu preço “era muito caro para quem mora na favela”. Isso, depois de cobrar metade do valor de mercado. “A galera acha que por morarmos na favela, temos de ficar mendigando”, desabafa.

Mas Rafael não entrega os pontos. “Fico imaginando meus quadros pendurados nas paredes das pessoas”, comenta, empolgado. Enquanto isso, segura as pontas com o salário da Escola Levindo Coelho. “Acaba que não sobra nada para investir na fotografia”, admite.

No Instagram, ele criou a página Visto Preto, com o objetivo de vender fotos emolduradas, moletons e camisas estampadas com sua arte.
Outro sonho de Rafael é montar um projeto social para transmitir gratuitamente seu conhecimento nas áreas de fotografia, vídeo e moda. “Vou tentar me inscrever em algum edital para conseguir um espaço, aqui dentro da Serra, para dar aula”, conta. E avisa: “Meu trabalho é uma forma de resistir.”


* Estagiário sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria

RAFAEL FREIRE
Conheça o trabalho do fotógrafo no Instagram: 
@rafaelfreiiire, @aflorfavela e @vistopreto

ESTADO DE MINAS


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Angela Carter

 

“The Company of Wolves,” by Emily W. Martin


50 Fascinating Works of Angela Carter Fan Art

Cats & Keys, Blood & Breasts, Wolves & Women


“The Bloody Chamber” by Iro Tsavala, shortlisted in the Folio Society competition to illustrate The Bloody Chamber“The Company of Wolves, by Iro Tsavala, shortlisted in the Folio Society competition to illustrate The Bloody Chamber

terça-feira, 18 de outubro de 2022

César Vallejo / XXVIII

 



César Vallejo

XXVIII

Somente agora almocei, e não tive
mãe, nem súplica, nem serve-te, nem água,
nem pai que, no facundo ofertório
das chancas, pergunte para sua tardança
de imagem pelos broches maiores de som.

Como eu iria almoçar. Como me serviria
de tais pratos distantes essas coisas
quando se houvesse quebrado o próprio lar,
quando não surge nem mãe aos lábios.
Como eu iria almoçar nonada.

À mesa de um bom amigo almocei
com seu pais recém chegado do mundo,
com suas velhas tias que falam
em torto recinto de porcelana,
cochichando por todos seus viúvos alvéolos;
e com cobertos francos de alegres tiroliros,
porque estão em sua casa. Assim, que graça!
E me doeram as facas
desta mesa em todo o paladar.

O jantar destas mesas assim, em que se prova
amor alheio em vez do próprio amor,
torna terra o bocado que não brinda a
                                                           MÃE,
torna golpe a dura deglutição; o doce,
fel; azeite fúnebre, o café.

Quando já se quebrou o próprio lar,
e o serve-te não sai da
tumba,
a cozinha às escuras, a miséria de amor.


César Vallejo
Trilce

                

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Cesar Vallejo / Borra

 


César Vallejo
Borra

Esta tarde chove como nunca; e não
tenho ganas de viver, coração.

Esta tarde é doce. Por que não há de ser?
Veste graça e pena; veste de mulher.

Esta tarde em Lima chove. E lembro
as cavernas cruéis de minha ingratidão:
meu bloco de gelo sobre sua amapola,
mais forte que seu “Não sejas assim!”

Minhas violentas flores negras; e a bárbara
e enorme pedrada; e o trecho glacial.
E porá o silêncio de sua dignidade
com óleos ardentes o ponto final.

Por isso esta tarde, como nunca, vou
com este mocho, com este coração.

E outras passam; e vendo-me tão triste,
tomam um pouquinho de ti
na abrupta ruga de minha profunda dor.

Esta tarde chove, chove muito. E não
tenho ganas de viver, coração!



terça-feira, 11 de outubro de 2022

César Vallejo / Pedra negra sobre uma pedra branca




Morrerei em Paris com aguaceiro
numa tarde da qual já bem me lembro.
Morrerei em Paris — não vou embora —
Numa quinta, de outono, como agora.

Quinta será, pois hoje, quando proso
estes versos, meus úmeros pisei
e, nunca como hoje, me voltei,
com todo o meu caminho, a me ver só.

Morreu César Vallejo, que apanhava
de todo mundo a quem nunca fez nada;
batiam duro com um pau e duro

também com uma corda; assim confirmam
as quintas como hoje e os osso úmeros,
a solidão, a chuva e os caminhos...



segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A individuação de Annie Ernaux é O Acontecimento de todas nós

 

Annie Ernaux


A individuação de Annie Ernaux é O Acontecimento de todas nós

O mês de Julho foi marcado pela discussão acerca dos direitos reprodutivos das mulheres no Brasil e no mundo, e o Clube do Livro do Persona acompanhou o movimento com a escolha de leitura de O Acontecimento, de Annie Ernaux (Foto: Fósforo/Arte: Ana Clara Abbate)

Simplesmente isso não se vê. (…) Nos tomamos por pessoas, mas não somos pessoas. Somos, à nossa maneira, pequenos acontecimentos.

– Gilles Deleuze em aula ministrada no ano de 1980 no Centro Universitário de Vincennes, em Paris, na França.

Raquel Dutra

Quando, em 2000, Annie Ernaux intitulou o livro que abriria pela primeira vez ao mundo a sua experiência com uma gravidez indesejada e um aborto clandestino na França de 1960, ela com certeza estava ciente da referência filosófica que marcaria a sua obra, mas não imaginava com a mesma intensidade a dimensão da sua representação – e, por consequência, o rompimento que O Acontecimento provocaria com suas próprias conceituações. É que, enquanto o termo do título evoca a ideia de uma experiência de individuação (como o próprio detentor da “filosofia do acontecimento”definiu), todo o desenvolvimento do livro trata de uma história particular vivida a nível universal (mais precisamente, presente em quase metade das vivências em questão do mundo).

O exercício de desenvolver as referências filosóficas e leituras sociais de O Acontecimento, no entanto, são ocorrências restritas ao lugar do leitor. Na linguagem da escritora e professora francesa nascida em 1940 e vista como uma das principais vozes feministas da contemporaneidade, não existe nenhuma pretensão. Seu instrumento como literata é a palavra direta e substantiva (como bem traduzem os títulos de seus livros), cujo objetivo é “resistir ao lirismo da cólera ou da dor” a fim de construir a verossimilhança da sua experiência, que ela transforma em livro quarenta anos depois. A partir de suas memórias do período registradas em seus diários, Ernaux retorna aos seus 23 anos, quando, depois de deixar um contexto familiar marcado pelo cotidiano interiorano da classe operária francesa do século XX, engravidou contra a sua vontade em meio aos seus estudos sobre Literatura Moderna na Universidade de Rouen, no auge de sua juventude. 

Nas palavras da autora, uma das mais importantes da França na atualidade, a história cria o pano de fundo para um texto que se aproxima de um ensaio, tratando sobre a onipresença da lei e os imperativos que regem o corpo das mulheres ao longo dos anos. Essa prática singular em analisar as relações que existem entre o público e o privado, o concreto e o abstrato, é só o primeiro dos muitos méritos do décimo livro de Annie, que como característica principal da sua Literatura, agraciada com o Prêmio Marguerite Duras em 2008, já tem até o seu nome próprio cunhado pelos estudiosos de sua obra: autosociobiografia. Em julho de 2022, cinco meses depois da publicação do livro no Brasil pela tradução de Isadora de Araújo Pontes, e quando o Clube do Livro Persona o escolheu como a sua décima leitura, nada se mostrou tão socialmente atual quanto as experiências de Ernaux em 1963.

No dia 24 de Junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos votou de maneira contrária à manutenção do entendimento do aborto como direito fundamental, até então definido pela lei nacional desde 1973. Na prática, isso quer dizer que o país não tem mais o compromisso de fornecer o método como serviço de saúde pública de maneira universal, o que significa que cada estado fica livre para criar sua própria legislação e entendimento para a questão – e segundo estudos, pelo menos metade deles deve retroceder no que diz respeito à legalização do aborto. 

É fato que as decisões na chamada “Terra da Liberdade” impactam os debates dos demais países do globo, mas no Brasil o assunto surgiu de maneira ainda mais urgente: por meio do jornal The Intercept Brasil, tornou-se público um caso de uma menina grávida em decorrência de um estupro aos 11 anos, que foi não só impedida de realizar um aborto legal (embora a atual legislação do país esteja sempre ameaçada), como também orientada pela juíza de seu próprio processo a desistir do procedimento.

Desta forma, quando a obra da autora foi colocada em foco diante do mundo novamente, especialmente por conta do sucesso da adaptação cinematográfica dirigida por Audrey Diwan, o intervalo de tempo e espaço entre a experiência particular de Ernaux e o aqui e agora não apresentava diferença. Mas antes de qualquer ocorrência de O Acontecimento se reproduzir na vida real, a voz do livro já identificava o tal fenômeno da atemporalidade através da permanência de suas próprias palavras.

Acabo de achar entre meus papéis essa cena, escrita há vários meses. Percebo que eu tinha usado as mesmas palavras (…). Essa impossibilidade de dizer as coisas com palavras diferentes, essa união definitiva da realidade passada e de uma imagem que exclui qualquer outra, me parecem a prova de que realmente vivi assim o acontecimento.

Como evidência da importância que a experiência tem para a história e obra autosociobiográfica de Annie Ernaux, existe a própria presença do assunto, que é debatido desde a primeira vez que a autora assinou um livro. Les Armoires Vides (Os Armários Vazios, numa tradução livre), seu romance de estreia publicado na França em 1974, já trazia uma narrativa autobiográfica que introduziu os temas de O Acontecimento com uma conjuração temporal impressionante: um ano antes da interrupção voluntária da gravidez ser legalizada no país.

Se a História e a biografia já são esferas inicialmente distintas aproximadas pela Literatura de Ernaux, não é desafio nenhum para a autora mesclar um caráter metalinguístico ao livro a fim de refletir sobre seu ofício. Nesse sentido, O Acontecimento parte de maneira nada linear de um lugar de observação das relações que as mulheres mantêm sobre si mesmas para analisar a dimensão de poder que a escritora constrói com seu próprio texto – pois essa é a identidade singular de Annie Ernaux, muito influenciada pelas suas formadoras francesas: observar a si mesma para melhor observar o mundo ao seu redor.

A consciência direta disso vem junto das suas tomadas de conclusão mais profundas. No nível radical que o texto de Ernaux atinge com O Acontecimento, a autora não só relembra com criticidade a terrível prática da Arte de seguir o hábito da sociedade de não ver valor de representação e legitimidade em determinadas histórias, como coloca toda a relevância de seu ofício justamente nesse lugar. A personagem principal é ela mesma, uma jovem em um processo de exercício profundo de suas liberdades, que vive em um embate com as restrições impostas a ela no mundo externo. Assim, Annie toma como trabalho o reportar essa vida de uma mulher que não corresponde aos padrões socialmente impostos ao seu gênero, desde suas motivações até seus arrependimentos.  

Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento – que ele tenha acontecido e que eu não tenha feito nada dele. (…) Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.

É no ínterim de O Acontecimento que Ernaux verbaliza e nomeia de maneira objetiva a sua própria identidade literária, mas foi em seu quarto livro que a autora consolidou sua órbita ao redor de ideais de emancipação e rompimento. O Lugar, obra vencedora do prêmio Renaudot em 1983, que traz sua família para o centro da história, firmou o nome de Annie em seu lugar de relevância para a Literatura contemporânea com uma narrativa firme de distanciamento de suas raízes, um processo realizado em prol de se tornar quem se almeja ser. 

No entanto, nenhum símbolo pode dizer mais sobre emancipação e liberdade do que o que marca a narrativa de O Acontecimento – não à toa, ele é nomeado assim, de maneira um pouco mais subjetiva do que os títulos costumeiros de Annie Ernaux. Muito mais do que um processo concreto que confere a uma mulher o poder sobre o seu próprio corpo, a autora insere mais uma camada à sua mistura de biografia, história e sociologia, entendo o aborto a partir de uma ótica quase filosófica: uma experiência plenamente humana, que permite acesso ao ciclo e aos extremos completo da vida, desde seu início, até o seu fim. 

Sei que hoje eu precisava dessa provação e desse sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar essa violência da reprodução no meu corpo e me tornar, por minha vez, lugar de passagem das gerações.

Terminei de pôr em palavras isso que se revela para mim como uma experiência humana total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo.

Entre aspirações, significações e conclusões tão amplas sobre a sua experiência, a autora não deixa de sentir o que lhe foi particularmente marcante daquela época: a solidão e o desamparo, em nível legal, social, institucional e cultural. O choque vem da simples dificuldade da jovem Annie em enxergar as diferenças de gênero através de seu olhar tão livre e independente, que não vê outro lugar para si mesma se não aquele de completa igualdade com os demais. Nada disso, no entanto, define O Acontecimento, uma vez que a obra não existe de maneira a transformar a vida de Annie Ernaux em – literalmente – um livro aberto.

Inevitavelmente, é o que acontece, mas seus relatos íntimos, reflexões metalinguísticas e críticas sociais estão na obra com um objetivo bem definido: destacar a maneira como, além de tudo, essa experiência universal de desapropriação de si mesma causa uma uniformização violenta das nossas identidades – o que vai na direção contrária do nosso movimento de emancipação individual e coletivo. No mundo em que vivemos, nenhuma história sobre aborto é só uma história sobre aborto, e nenhuma experiência de violência de gênero é individualizada em seu alvo da vez. E as palavras de Annie Ernaux parecem ser as únicas possíveis para compreender que O Acontecimento dela nunca foi – e nunca será – só dela.

PERSONA