Annie Ernaux |
Annie Ernaux enfrenta o passado em “O acontecimento”
Em “O acontecimento”, lançado agora pela Fósforo Editora, Annie Ernaux dá ordem e forma à sua trajetória solitária na busca pelo aborto. A autora venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 2022
Por Gabriel Pinheiro
6 de outubro de 2022
Annie Ernaux tinha 23 anos, em 1963, quando engravidou do namorado. Um relacionamento recente, sem muitas expectativas quanto ao futuro a dois. Jovem universitária, Annie se viu, de repente, em um turbilhão. Sem o apoio do companheiro e sem poder contar para sua família, ela tem apenas uma certeza: não terá este bebê.
Em “O acontecimento”, lançado agora pela Fósforo Editora, Annie Ernaux dá ordem e forma à própria trajetória solitária na busca pelo aborto – numa época em que este era ilegal na França. O livro tem tradução de Isadora de Araújo Pontes.
Em um momento histórico marcado por diferentes episódios definidores – na França e ao redor do globo – o peso deste acontecimento pessoal oblitera qualquer outro para Ernaux. “Uma semana depois, Kennedy foi assassinado em Dallas. Mas isso já não me despertava nenhum interesse”. O próprio curso universitário entra em uma espécie de hiato, o tema da monografia parece perder toda a sua importância. “Não escrevo mais. Não estudo mais. Como sair daqui”.
Escrever é um enfrentamento
Para Annie Ernaux, escrever é uma forma de enfrentar este acontecimento inesquecível. Sendo assim, a escrita ocorre apenas em 1999, mais de três décadas após o fato. “Faz uma semana que comecei esta narrativa, sem nenhuma certeza de continuá-la. Só queria testar meu desejo de escrever sobre isso”. Há o medo e a culpa de morrer sem ter feito nada a partir da experiência.
Para a escrita, além da própria memória, Ernaux tem como fonte sua agenda e diários da época. Todo o texto é marcado por entradas destes cadernos, onde acompanhamos anotações sobre o avanço da gravidez e o avanço de sua angústia. “No próximo mês de julho vai sair uma criança de mim. Mas eu não a sinto”. Além disso, registram os encontros e desencontros com médicos e colegas universitários na busca por alguém que realizasse o procedimento. A procura por um caminho que levasse ao acontecimento.
Contra a dominação masculina do mundo
Ao longo de suas páginas, “O acontecimento” expõe o peso de uma sociedade marcada pelo domínio masculino sobre o corpo feminino. O machismo que busca dominar a relação da mulher com seu próprio corpo e a sua autonomia. “Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”. Médicos tentam dissuadi-la da decisão – um deles chega a orientá-la a utilizar um medicamento que ela descobre, apenas depois, ser um antiabortivo. Na própria comunidade universitária, Annie é confrontada com um pensamento conservador a respeito do aborto e sua legalidade.
Em um texto que é cru, direto e, por vezes, brutal, a autora enfrenta um passado assombrado pelo medo e pela dor – emocional e física. “Tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”. Ela narra detalhadamente o seu encontro com a “fazedora de anjos” e o seu período na urgência de um hospital após o acontecimento. Ali, expõe a violência médica e o julgamento moral por sua decisão.
Reflexões sobre o ato da escrita
Além de seu caráter fortemente político naquilo que narra, “O acontecimento” ainda traz algumas das reflexões mais contundentes que li em tempos recentes sobre o próprio ato da escrita. Sobretudo a escrita de si, campo básico da literatura de Annie Ernaux. A autora nos apresenta uma relação radical entre o privado e o público: sua vida particular é a matéria primordial para a sua literatura.
Um gesto de coragem e força que não me lembro de encontrar um par semelhante no campo literário. Para ela, os fatos de sua existência acontecem para que sejam contados: “o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita”.
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