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domingo, 28 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / Drama humilde

Cabeza de vieja
Pieter Brueguel el Viejo
Guy de Maupassant
DRAMA HUMILDE

Os encontros dão encanto às viagens. Quem nunca terá sentido a alegria de, a cinqüenta léguas do torrão natal, inesperadamente dar de rosto com um parisiense, um colega de colégio, um vizinho de campo? Quem não terá passado uma noite, de olhos abertos, na pequena diligência tilintante das regiões onde o vapor ainda não chegou, ao lado de uma desconhecida apenas vislumbrada à luz da lanterna, no momento em que subia no veículo, à porta de uma casa branca, numa cidadezinha qualquer?
E pela manhã, ainda com o espírito e os ouvidos entorpecidos pelo contínuo tilintar dos guizos ou pela trepidação sonora das vidraças, como é agradável ver a nossa bonita vizinha de cabelos alvoroçados descerrar as pálpebras, correr o olhar em torno e com a ponta dos dedos finos alisar os cabelos rebeldes, ajeitar o chapéu, verificar com mão experiente se o colete não saiu do lugar, se a cintura está firme e a saia não se amarrotou muito!
Ela também nos lança um olhar frio e curioso. Depois se aconchega a um canto e parece unicamente ocupada com a paisagem.
Contra a nossa vontade, não deixamos de observá-la, contra a nossa vontade continuamos a pensar nela. Quem será? De onde vem? Para onde irá? Relutantes, esboçamos mentalmente um pequeno romance. É bonita; parece encantadora! Feliz aquele que… Talvez a vida fosse deliciosa ao seu lado… Quem sabe? Seria talvez a mulher reclamada pelo nosso coração, nossos sonhos, nosso temperamento.
E como é delicioso, também, o despeito que sentimos ao vê-la descer diante da cancela de uma casa de campo! Um homem a espera, tendo ao lado duas crianças e duas criadas. Recebe-a nos braços, beija-a e coloca-a no chão. Ela se inclina, ergue os pequenos, que lhe estendem as mãos, acaricia-os ternamente; e enveredam por uma aléia, afastando-se, enquanto as criadas recebem as bagagens atiradas do toldo pelo cocheiro.
Adeus! É o fim. Nunca mais a veremos, nunca mais. Digamos adeus à moça que passou a noite ao nosso lado. Não a conhecemos mais, nem sequer lhe falamos; mesmo assim, a sua partida nos entristece um pouco. Adeus!
Conservo muitas dessas lembranças de viagem, algumas alegres, outras melancólicas.
Encontrava-me em Auvergne, vagando por entre aquelas encantadoras montanhas francesas, nem altas demais, nem escarpadas demais, íntimas, familiares. Havia subido ao monte Sancy e entrava num pequeno albergue, junto a uma capela de tomaria chamada Nossa Senhora de Vassivière, quando avistei uma senhora idosa, esquisita e ridícula, que almoçava sozinha a uma mesa, ao fundo.
Teria no mínimo setenta anos, alta, seca, angulosa, com cabelos brancos enrolados em caracóis nas têmporas, de acordo com modas já passadas. Vestida como uma inglesa errante, despreocupada e grotescamente, como se vestem as pessoas indiferentes à própria aparência, ela comia uma omelete e bebia água.
Tinha um aspecto singular, olhos inquietos, rosto de alguém a quem a vida maltratou. Involuntariamente eu a fitava, indagando comigo mesmo: “Quem será? Que espécie de vida terá essa mulher? Por que estará vagando sozinha por estas montanhas?”
Ela pagou a conta e depois se levantou para partir, ajeitando nos ombros um incrível xalezinho, cujas pontas lhe pendiam dos braços. Apanhou num canto um longo bastão de viagem recoberto de nomes gravados a ferro em brasa, e depois se afastou, ereta, tesa, com o passo de um carteiro que se põe a caminho.
Um guia esperava-a junto à porta. Afastaram-se. Acompanhei-os com o olhar enquanto desciam o vale, ao longo do caminho assinalado por uma fila de grandes cruzes de madeira. Ela era mais alta do que o companheiro e parecia andar mais depressa do que ele.
Duas horas mais tarde eu avançava pelos rebordos de um enorme funil, em cujo fundo, dentro de uma vasta e maravilhosa cova de verdura, se encontra o lago Pavin, tão redondo que parece traçado a compasso, tão claro e tão azul que se diria uma onda de anil tombada do céu, tão belo que desejaríamos viver numa choupana, lá na vertente do bosque que domina a cratera dentro da qual dorme a água tranqüila e fria.
Lá estava ela, de pé, imóvel, contemplando aquele lençol transparente no fundo do vulcão extinto. Fitava-o como se quisesse varar com o olhar as suas misteriosas profundezas, povoadas, segundo contavam, por trutas grandes como monstros, que devoram todos os outros peixes. Ao passar junto dela, tive a impressão de que duas lágrimas rolavam de seus olhos. Mas ela se afastou com largas passadas, a fim de reunir-se ao seu guia, que permanecera numa taverna, ao sopé da encosta, no caminho do lago. Não tornei a revê-la nesse dia.
No dia seguinte, ao cair da noite, cheguei ao Castelo de Murol. A velha fortaleza, gigantesca torre erigida no alto do pico do mesmo nome, ao centro de um amplo vale, no cruzamento de três pequenas várzeas, projeta-se contra o céu, escura, cheia de fendas e protuberâncias, mas toda redonda, da larga base circular aos arruinados torreões da cumeeira.
Impressiona, mais do que qualquer outra ruína, por causa da sua grandeza singela, da sua majestade, do seu ar de velhice, grave e imponente. Mantém-se de pé, sozinha, alta como uma montanha, rainha morta, mas ainda rainha dos vales desdobrados abaixo dela. Atingimo-la através da encosta de pinheiros que lhe dá acesso, penetramos no seu interior por uma porta estreita e estacamos junto às muralhas, no primeiro recinto, que domina a região inteira.
Dentro, salas em ruínas, escadas sem degraus, cavidades misteriosas, subterrâneos, masmorras, muros reduzidos à metade, abóbadas que continuam de pé não se sabe como, um labirinto de pedras, de fendas, onde cresce o mato e animais rastejam. Eu vagava, sozinho, por entre aqueles escombros.
De súbito, divisei, atrás de uns restos de muro, um ser, uma espécie de fantasma, como se fosse o espírito da velha e arruinada morada.
Tive um sobressalto de surpresa, quase de medo. Depois, reconheci a senhora idosa com quem já me encontrara por duas vezes. Chorava. Chorava grossas lágrimas e apertava o lenço na mão.
Voltei-me, decidido a ir embora. Então, vexada por haver sido surpreendida, ela se dirigiu a mim:
- É verdade, estou chorando… Não é coisa que me aconteça muitas vezes.
Balbuciei, confuso, não sabendo o que responder:
- Peço-lhe perdão por tê-la perturbado. Sem dúvida, a senhora sofreu algum grande desgosto.
Ela murmurou:
- Sim… Não… Sou igual a um cão sem dono.
E, levando o lenço aos olhos, pôs-se a soluçar.
Segurei-lhe as mãos, tentando acalmá-la, emocionado com aquelas lágrimas contagiantes.
E então ela me contou a sua história, como se não mais quisesse ser a única a suportar o peso da sua mágoa:
- Oh!… Oh!… Se o senhor soubesse… em que estado de angústia eu vivo… em que estado de angústia…


“Eu era feliz. . . Tenho uma casa lá. . . na minha terra. Não quero mais voltar, nunca mais voltarei, é por demais doloroso.
“Tenho um filho… É ele! É ele! Os filhos não sabem… É tão curto o tempo que temos para viver! Se eu o visse, agora, talvez nem o reconhecesse mais! Como eu amava meu filho! Mesmo antes de ter nascido, quando o sentia bulir dentro do meu corpo. E mais tarde, então! Como o beijei, como o acariciei, como lhe quis! Se o senhor soubesse quantas noites passei olhando-o dormir, quantas noites passei pensando nele! Amava-o loucamente. Quando fez oito anos, seu pai internou-o num colégio. Foi o fim. Não me pertencia mais. Óh, meu Deus! Ele vinha aos domingos, apenas, e mais nada.
“Depois foi para o colégio, em Paris. Só nos visitava quatro vezes por ano, e de cada vez eu me surpreendia diante das mudanças operadas na sua pessoa, surpreendia-me ao achá-lo mais alto sem tê-lo visto crescer. Roubaram-me sua infância, sua confiança, sua ternura, que de outra forma não se teria desprendido de mim, roubaram-me a alegria de vê-lo crescer, de vê-lo transformar-se em homenzinho.
“Só o via quatro vezes por ano! Imagine! A cada uma de suas visitas, seu corpo, seu olhar, seus gestos, sua voz, seu riso, não eram mais os mesmos, não eram mais meus. Uma criança muda depressa; e, se não estamos presentes para acompanhar suas transformações, é tão triste! Não a reencontramos mais!
“Houve um ano em que chegou com uma penugem no rosto! Ele, o meu filho! Fiquei estupefata… e triste, o senhor acredita? Mal ousava abraçá-lo. Seria ele meu filhinho, meu pequenino de cabelos louros e crespos de antigamente, meu querido, meu amado filho que eu tivera, ainda em cueiros, nos joelhos, que sugara meu leite com os pequenos lábios ávidos, aquele rapagão moreno, que não sabia mais acarinhar-me, que parecia amar-me como se cumprisse um dever, que me chamava ‘minha mãe’ convencionalmente, e que me beijava a testa quando eu teria querido esmagá-lo nos braços?
“Meu marido morreu. Depois foi a vez de meu pai, e em seguida perdi minhas duas irmãs. Quando a morte entra numa casa, é como se quisesse ceifar o máximo para não precisar voltar tão cedo. Só deixa vivas uma ou duas pessoas, para que chorem as outras.
“Fiquei sozinha. Nessa ocasião meu filho estudava direito. E eu esperava viver e morrer ao seu lado.
“Fui reunir-me a ele, a fim de vivermos juntos. Adotara hábitos de rapaz; fez-me compreender que o incomodava. Afastei-me. Fiz mal; porém, sofria demasiadamente por sentir-me importuna, eu, a mãe. Retornei à minha casa.
“Quase não o vi mais, quase.
“Casou-se. Que alegria! Finalmente nos reuniríamos para sempre. Teria netos. Ele desposara uma inglesa que tomou aversão por mim. Por quê? Será que percebeu que eu o amava demais?
“Mais uma vez fui obrigada a afastar-me. Vi-me sozinha. É verdade.
“Depois ele partiu para a Inglaterra. Ia morar com eles, os pais de sua mulher. 0 senhor compreende? Eles se apoderaram de meu filho! Roubaram-no de mim! Ele me escreve todos os meses. Nos primeiros tempos vinha visitar-me. Agora não vem mais.
“Faz quatro anos que o vi pela última vez! Tinha o rosto enrugado e cabelos brancos. Seria possível? Meu filho, aquele homem quase velho? Minha criancinha toda cor-de-rosa de outrora? Provavelmente nunca mais o reverei.
“E agora viajo o ano inteiro. Vou para a direita, vou para a esquerda, como o senhor vê, sem que ninguém me acompanhe.
“Sou igual a um cão sem dono. Adeus, senhor, não fique junto de mim, sinto-me perturbada por ter-lhe contado essas coisas todas.”


E, ao tornar a descer a colina, voltando-me, avistei a velha senhora de pé no muro em ruínas, contemplando os montes, o amplo vale e o lago Chambon, perdido na distância.
E o vento fazia tremular, como se fossem bandeiras, a barra do seu vestido e o pequeno e estranho xale que usava aos ombros.

1883.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / Ele?


Guy de Maupassant
ELE?

A Pierre Decourelle



Meu caro amigo, não compreendes nada? Não admira. Achas que fiquei louco? Talvez eu o esteja um pouco, mas não pelas razões que imaginas..
Sim. Vou-me casar. 
E, no entanto, minhas idéias e minhas convicções não mudaram. Considero a coabitação legal uma tolice. Estou certo de que, entre dez maridos, oito são enganados. E não merecem menos, por terem tido a imbecilidade de amarrar sua vida, de renunciar ao amor livre, a única coisa boa e alegre no mundo, de cortar asas à fantasia que nos impele incessantemente para todas as mulheres, etc, etc. Mais do que nunca eu me sinto incapaz de amar uma mulher, porque sempre amarei demais as outras. Quisera ter mil braços, mil lábios e mil temperamentos para poder estreitar ao mesmo tempo um exército dessas criaturas deliciosas e sem importância.
E, contudo, eu me caso.
Devo acrescentar que não conheço minha mulher de amanhã. Só a vi umas quatro ou cinco vezes. Sei que ela não me desagrada; e isso me basta para o que quero. Ela é baixinha, loura e gorducha. Depois de amanhã, desejarei ardentemente uma mulher alta, morena e magra.
Não é rica. Pertence a uma família média. É uma rapariga como se encontram às centenas na burguesia comum, servindo para casar, sem qualidades nem defeitos aparentes. Diz-se dela: “A Senhorita Jajole é muito simpática”. Dir-se-á, amanhã: “É muito simpática, a Senhora Raymon”. Pertence, enfim, à legião de mocinhas honestas, que “a gente se sente feliz em tomar por esposa”, até o dia em que se descobre preferir justamente todas as outras mulheres àquela que se escolheu.
Então por que me casar, dirás tu?
Tenho dificuldades em confessar a estranha e inverossímil razão que me leva a essa insensatez.
Caso-me para não estar só!
Não sei como dizer isso, como fazer-me entender. Terás pena de mim, desprezar-me-á, tão miserável é meu estado de espírito.
Não quero mais ficar sozinho à noite. Quero sentir uma criatura perto de mim, contra mim, um ser que possa falar, dizer alguma coisa, seja o que for.
Quero poder interromper-lhe o sono; fazer-lhe bruscamente uma per­gunta, uma pergunta estúpida, para ouvir uma voz, sentir uma alma desperta, um raciocínio em ação, para ver, acendendo bruscamente minha vela, uma figura humana ao meu lado... porque. . . porque. . . (não ou­so confessar esta vergonha)... porque tenho medo de estar só.
Ah, ainda não me compreendes!
Não tenho medo de um perigo. Se um homem entrasse, eu o mata­ria sem titubear. Não tenho medo de assombrações; não creio no sobrena­tural. Não tenho medo dos mortos; creio no aniquilamento definitivo dos seres que desaparecem.
Então... sim! Então?... Pois bem! tenho medo de mim! tenho medo do medo; medo dos espasmos de meu espírito que enlouqueceu, medo dessa tremenda sensação do terror incompreensível.
Ri, se quiseres. Isto á horrível, incurável. Tenho medo das paredes, dos móveis, dos objetos familiares que ganham, para mim, uma espécie de vida animal. Tenho medo sobretudo da pavorosa perturbação do meu pen­samento, de minha razão que me foge, turvada, dispersada por uma invi­sível e misteriosa angústia.
Sinto ao começo uma vaga inquietação que me perpassa na alma e faz-me correr um estremecimento na pele. Olho em torno de mim. Nada! E eu desejaria que fosse alguma coisa! O quê? Alguma coisa compreensí­vel. Pois só tenho medo porque não compreendo o meu medo.
Falo, e tenho medo de minha voz. Ando, e tenho medo do desconhe­cido atrás da porta, atrás da cortina, dentro do armário, debaixo da cama. E no entanto sei que não há ninguém em parte alguma.
Viro-me bruscamente, porque tenho medo do que está atrás de mim, embora não haja nada e eu o saiba.
Agito-me, sinto crescer o meu pavor; fecho-me no meu quarto; meto-­me na cama e me escondo debaixo das cobertas; e encolho, enrolando co­mo bola, fecho desesperadamente os olhos e fico assim por um tempo in­finito, com o pensamento de que a vela contínua acesa na mesa de cabeceira e é preciso apagá-la. E não ouso.
Não é terrível ficar assim?
Antigamente, eu não sentia nada disso. Voltava tranqüilamente para casa. Ia e vinha, de um lado para outro, sem que nada me perturbasse a serenidade da alma. Se me dissessem a inverossímil, estúpida e pavoro­sa doença de medo que mais tarde tomaria conta de mim, eu teria rido. Abria as portas no escuro com segurança: deitava-me devagar, sem fe­char os trincos, e nunca me levantava no meio da noite para me certificar de que todas as entradas do meu quarto estavam fortemente trancadas.
Isto começou o ano passado, de uma forma extraordinária.
Era uma noite de outono. Quando a empregada saiu, depois do meu jantar, pensei comigo mesmo o que havia de fazer. Andei algum tempo no meu quarto. Sentia-me cansado, abatido sem razão, incapaz de trabalhar, sem força sequer para ler. Uma chuva fina molhava as vidraças; eu estava triste, penetrado de uma dessas tristezas sem causa, que dão vontade de chorar, que fazem desejar qualquer coisa que seja, para sacudir o torpor do pensamento.
Sentia-me só. Minha casa me parecia vazia como nunca. Uma solidão infinita e pungente me cercava. Que lazer? Sentei-me. Então uma impa­ciência nervosa me correu pelas pernas. Ergui-me e continuei a caminhar. Talvez tivesse também um pouco de febre, pois minhas mãos, que eu se­gurava nas costas, como freqüentemente se faz quando se anda devagar, ardiam uma contra a outra, o que me não passou despercebido. De repen­te, um calafrio percorreu-me a espinha. Imaginei que a umidade de fora estivesse entrando em casa, a primeira vez no ano. E me sentei de novo, contemplando as chamas. Mas logo a impossibilidade de continuar no mesmo lugar fez-me levantar de novo, e senti que era preciso sair, sa­cudir-me, encontrar um amigo.
Saí. Fui à casa de três amigos, que não encontrei; em seguida, fui caminhando pelo bulevar, na esperança de dar com um conhecido.
Por toda a parte era a mesma tristeza. As calçadas molhadas brilha­vam. Uma tepidez de água, uma tepidez dessas que nos gelam em súbitos calafrios, uma tepidez pesada, de chuva impalpável, oprimia a rua, parecia fatigar e escurecer a chama do gás.
Ia num passo mole, repetindo com meus botões: “Não encontrarei ninguém com quem conversar”.
Inspecionei muitas vezes os cafés, da Madeleine ao faubourg Poissonière. Indivíduos melancólicos, curvados sobre os mesas, pareciam não ter  nem sequer força para terminar o que estavam tomando.
Vaguei assim durante muito tempo, e, por volta de meia-noite, dis­pus-me a voltar para casa. Estava muito calmo, mas muito cansado. O porteiro, que se deita antes das onze horas, abriu-me imediatamente a porta, contra os seus hábitos; e eu pensei: “Com certeza foi outro locatá­rio que acaba de subir”.
Quando saio de casa, sempre dou duas voltas à chave. Encontrei a porta apenas encostada, o que me chamou a atenção. Calculei que tivesse vindo trazer-me alguma carta durante a noite.
Entrei. O fogo ardia ainda, iluminando fracamente o apartamento. Apanhei uma vela para ir acende-la na lareira, quando, ao olhar diante de mim, vi alguém sentado em minha poltrona, esquentando os pés e dan­do-me as costas.
Não tive medo, oh não! absolutamente! Uma suposição muito veros­símil atravessou-me o espírito; algum dos meus amigos teria vindo visi­tar-me. O porteiro, prevenido por mim, à saída, dissera que eu ia voltar e lhe abrira a porta. E todas as circunstâncias da minha volta, num se­gundo, atravessaram-me a memória: o fio puxado imediatamente, minha porta apenas encostada.
Meu amigo, de quem eu só via os cabelos, adormecera diante do fogo enquanto me esperava. Encaminhei-me para acorda-lo. Via perfeitamente um dos seus braços, pendente à direita: os pés estavam cruzados um sobre o outro; sua cabeça um pouco inclinada para o lado esquerdo da poltro­na, bem indicava o sono. Perguntei a mim mesmo: Quem será? Aliás, enxergava-se mal no quarto. Avancei a mão para tocar-lhe o ombro... Esbarrei no forro da cadeira! Não havia mais ninguém! A poltrona estava vazia!
Que sobressalto, meu Deus!
Recuei, primeiro, como se um terrível perigo houvesse aparecido diante de mim.
Depois, voltei-me, sentindo alguém atrás; e logo, uma imperiosa ne­cessidade de ver de novo a poltrona me fez dar outra meia volta.
E fiquei de pé, arquejando de pavor, tão aterrado que só tinha uma idéia, prestes a cair.
Mas sou um homem de sangue-frio, e logo me volta a razão. Pensei: “Acabo de ter uma alucinação, só isso”. E refleti imediatamente sobre esse fenômeno. O pensamento anda depressa, em tais ocasiões.
Eu tivera uma alucinação — era um fato incontestável. Ora, meu espírito tinha permanecido lúcido durante todo o tempo, funcionando regularmente, logicamente. Não havia portanto nenhuma perturbação do cérebro. Só os olhos se haviam enganado, e enganado o meu pensamento. Os olhos tinham tido uma visão, uma dessas visões que fazem as pessoas ingênuas acreditarem nos milagres. Era um acidente nervoso do aparelho ótico, nada mais, um pouco de congestão, talvez.
E acendi minha vela. Percebi, ao baixar-me para o fogo, que estava tremendo, e me levantei com um sobressalto, como se me tivessem tocado por trás.
Não me sentia tranqüilo, não havia dúvida.
Dei alguns passos; falei alto. Cantei, a meia voz, uns estribilhos de canções.
Em seguida, fechei com duas voltas na chave a porta do meu quarto, e me senti mais confiante. Pelo menos ninguém poderia entrar.
Tornei a sentar e refleti muito tempo sobre minha aventura; depois, deitei-me e apaguei a luz.
Durante alguns minutos, tudo foi bem. Eu estava deitado de costas, calmamente. Mas, veio-me o desejo imperioso de olhar o quarto, e virei-me de lado.
No fogo, só havia urnas duas ou três brasas acesas que iluminavam apenas os pés da poltrona; e eu julguei ver de novo o homem sentado ali.
Acendi um fósforo num movimento rápido. Enganara-me, não via mais nada.
Levantei-me, entretanto, e pus a poltrona atrás da cama, longe dos meus olhos.
Depois, novamente no escuro, tratei de dormir. Pegara no sono havia cinco minutos no máximo quando percebi, em sonho, e nitidamente, como na realidade, toda a sena da noite. Acordei desesperado, e, tendo acendido a luz, fiquei sentado na cama, sem sequer tentar dormir outra vez.
Duas vezes, entretanto, o sono tomou conta de mim durante alguns segundos. Duas vezes revi a coisa. Julguei ter enlouquecido.
Quando veio o dia, senti-me curado e cochilei tranqüilamente até o meio-dia.
Estava acabado, inteiramente acabado. Eu tivera febre, um pesadelo, qualquer coisa. Estivera doente, enfim. Achei-me, de qualquer maneira, um grande idiota.
Senti-me muito alegre, nesse dia. Jantei num cabaré; fui ao teatro, depois, encaminhei-me para casa. Mas eis que, ao me aproximar, inva­diu-me uma estranha inquietação. Tinha medo de revê-lo, a ele. Não medo, não medo de sua presença, na qual eu não acreditava, mas medo de uma nova visão de meus olhos, medo de uma alucinação, medo do pavor que se apossaria de mim.
Durante mais de uma hora, andei de um lado para outro, na calçada. Afinal, achei-me imbecil demais, e entrei. Arquejava de tal maneira que não pude subir direito a escada. Parei ainda, durante mais de dez minu­tos, diante de minha porta; e então, bruscamente, tive um impulso de co­ragem, um resfriamento da vontade. Meti a chave; precipitei-me para den­tro, depois de acender uma vela, empurrei com um pontapé a porta entre­fechada do meu quarto e lancei um olhar aterrado para a lareira. Não vi nada.
— Ah...
Que alívio! Que alegria! Que libertação! Eu ia e vinha com um ar fanfarrão. Mas não me sentia tranqüilizado, de vez em quando me vol­tava, num susto; a sombra nos cantos inquietava-me.
Dormi mal, acordando a todo momento por barulhos imaginários. Mas não o vi, Estava acabado!
Depois desse dia, tenho medo quando estou sozinho, à noite. Sinto ali, perto de mim, em torno de mim, aquela visão. Ela não tornou a me aparecer. Oh, não! Que importa, aliás se não acredito nela, se sei que não é nada!
Entretanto, ela me perturba, porque penso nela incessantemente. Uma das mãos pendia, do lado esquerdo, como de um homem dormin­do... Ora, vamos, por todos os diabos, não quero mais pensar nisso!
E, no entanto, por que essa obsessão? Por que essa persistência? Os pés dele estavam pertinho do fogo...
Ele me persegue; é uma loucura, mas assim é. Quem é ele? Bem sei não existe, que não é nada. Ele só existe na minha apreensão, no meu temor, na minha angústia! Vamos, basta!...
É em vão que raciocino, que me rebelo: não posso mais ficar sozinho em casa, porque ele lá está. Não o verei mais, sei disso, nem ele se mostrará mais, está acabado. Mas ele continua no meu pensamento. Permanece invisível, mas isso não impede que lá esteja. Está atrás das portas, no armário fechado, debaixo da cama, em todos os cantos escuros, em todas as sombras. Se empurro a porta, se abro o armário, se chego a vela debaixo da cama, se ilumino os cantos, as sombras, ele não  está mais; porém, sinto-o atrás de mim. Quando me volto, no entanto, estou certo de não o ver, de não o ver mais. Isso não impede que ele continue atrás de mim.
É estúpido, mas atroz. Que queres? Nada posso fazer.

Mas, se formos os dois a minha casa, tenho certeza, sim, tenho plena certeza de que ele não estará mais lá! Pois ele está só porque estou sozinho, unicamente porque estou sozinho!


sábado, 20 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / Um ardil



Guy de Maupassant
UM ARDIL
Tradução de Pietro Nassetti
      
 O velho médico e a jovem enferma conversavam no canto do fogo. Ela estava levemente afetada por uma dessas indisposições femininas que com frequência acometem as mulheres bonitas: um pouco de anemia, nervosismo, uma suspeita de fadiga, dessa fadiga que sentem por vezes os recém-casados, no fim do primeiro mês de união, quando fizeram um casamento por amor.    
        Ela estava deitada em um sofá e dizia:       
        - Não, doutor, jamais compreenderei que uma mulher engane o marido. Posso admitir que ela não o ame, que não leve em consideração nenhuma das próprias promessas, dos próprios juramentos! Mas como atrever-se a entregar a um outro homem? Como esconder isso de todo o mundo? Como poder amar, imersa na mentira e na traição?        
        O médico sorria.       
        - Quanto a isso é fácil, é fácil – disse – Asseguro-lhe que não se pensa em todas essas sutilezas, quando o desejo de errar invade as criaturas. Estou mesmo certo de que uma mulher não está madura para o amor verdadeiro a não ser depois de ter passado por todas as promiscuidades e todos os aborrecimentos do casamento, o qual, na opinião de um homem ilustre, nada mais é do que uma troca de maus humores durante o dia e de maus odores durante a noite. Nada é mais verdadeiro. Uma mulher não pode amar com paixão a não ser depois de ter sido casada. Se a pudesse comparar com uma casa, diria que ela só é habitável depois que um marido lhe secou o reboco. E quanto à dissimulação, todas as mulheres a têm para dar e vender nessas ocasiões. Mesmo as mais ingênuas são maravilhosas, e saem magistralmente das mais difíceis situações.         
        Mas a jovem senhora parecia incrédula...       
        - Não, doutor, só nos lembramos do que deveria ter sido feito nas situações perigosas, depois do caso passado; e as mulheres certamente têm mais propensão para perder a presença de espírito do que os homens.       
        O médico ergueu os braços.       
        - Depois do caso passado, diz a senhora! Nós, homens, é que só temos inspiração depois do caso passado. Mas as senhoras!... Escute, vou contar-lhe uma pequena história acontecida a uma das minhas clientes, a quem eu teria dado a comunhão sem confissão, como se costuma dizer.       
         Isto aconteceu em uma cidade de província.       
        Certa noite, eu dormia profundamente, com esse pesado primeiro sono tão difícil de interromper, quando, em um sonho obscuro me pareceu que os sinos da cidade badalavam, dando sinal de incêndio.       
        De repente, acordei: era a minha campainha, a da rua, que tilintava desesperadamente. Como meu criado parecia não responder, puxei por minha vez o cordão pendurado na minha cama, e, pouco depois, houve um barulho de portas batendo e de passos perturbando o silêncio da casa adormecida; depois, João surgiu trazendo uma carta que dizia: “A Sra. Lelièvre pede com insistência ao senhor Dr. Siméon que venha urgentemente à sua casa”.       
        Refleti por alguns instantes e conclui: uma crise de nervos, vapores, uma bobagem qualquer, e eu estou muito cansado. Respondi: “O Dr. Siméon, não se sentindo bem, pede à Sra. Lelièvre que tenha a bondade de chamar o colega Dr. Bonnet”.       
        Depois dei o bilhete dentro de um envelope e tornei a adormecer. Meia hora mais tarde, a sineta da rua soou novamente, e João veio dizer-me: “É alguém, um homem ou uma mulher (não consigo dizer com certeza), que desejava falar imediatamente com o senhor. Diz ele que se trata de uma questão de vida ou de morte para duas pessoas”.       
        Ergui-me do leito:         
        - Mande entrar.       
         Aguardei sentado na cama.       
        Apareceu-me uma espécie de fantasma negro e, logo que João saiu, descobriu-se. Era a a Sra. Lelièvre, uma criaturinha muito jovem, casada há três anos com um grande comerciante da cidade, o qual passava por ter desposado a mais bela jovem da província.       
        Estava terrivelmente pálida, trazendo no rosto aquele crispar das pessoas enlouquecidas; e suas mãos tremiam; por duas vezes tentou falar, sem que de seus lábios pudesse sair um som. Afinal balbuciou: “Depressa, depressa... depressa... doutor... Venha! Meu... meu amante morreu no meu quarto...”         
        Parou, sufocada, depois continuou: “Meu marido vai... vai... voltar do clube...”       
        Pulei da cama, sem mesmo me lembrar que estava em camisa, e vesti-me em poucos segundos. Depois perguntei: “Foi a senhora mesma que esteve aqui há pouco?” De pé, como estátua, petrificada pela angústia, ela murmurou: “Não, foi minha criada... ela sabe...” Depois de uma pausa: “Eu tinha ficado... perto dele”. Uma espécie de grito de dor terrível saiu-lhe dos lábios e, após uma sufocação que a fez estertorar, ela chorou, chorou desvairadamente com soluços e espasmos durante um ou dois minutos; depois suas lágrimas subitamente pararam, estancaram, como se tivessem sido enxugadas por dentro, com fogo; e, voltando a ser tragicamente calma, disse: “Vamos, depressa!”.       
        Eu estava pronto, mas exclamei: “Com os diabos, não dei ordem de atrelarem o cupê!” Ela respondeu: “Tenho um, tenho o dele, que o estava esperando”. Cobriu-se até a cabeça e partimos.       
        Quando a meu lado, na escuridão do carro, ela tomou-me bruscamente a mão e, esmagando-a entre seus dedos finos, balbuciou com abalos na voz, abalos que lhe vinham do coração dilacerado: “Oh! Se soubesse, se soubesse o quanto sofro! Eu o amava, eu o amava perdidamente, como uma insensata, fazia seis meses”.       
        Perguntei: “Estão acordados em sua casa?” Ela respondeu: “Não, ninguém, salvo Rosa, que sabe de tudo”.       
        Paramos defronte à casa dela; de fato todos dormiam; entramos sem fazer barulho, com uma chave de trinco, subindo na ponta dos pés. A criada, apavorada, sentara-se no chão no alto da escada, com uma vela acesa ao lado; não se atrevera a ficar junto ao morto.        
        Entrei no quarto. Estava desarrumado, como após uma luta. A cama desfeita, abarrotada, ficara como à espera de alguém; um dos lençóis estava caído até o tapete; toalhas molhadas, com as quais haviam batido as têmporas do rapaz, estavam no chão, ao lado de uma bacia e de um copo. E um cheiro singular de vinagre de cozinha, misturado a vaporizações de 'Lubin', enjoava-nos desde a porta.       
        De costas, estendido no meio do quarto, estava o cadáver. Aproximei-me; contemplei-o; apalpei-o; abri-lhes os olhos; toquei-lhe as mãos, depois, voltando-me para as duas mulheres, que tremiam, como se estivessem geladas, eu lhe disse: “Ajudem-me a levá-lo para a cama”. E o deitamos suavemente. Auscultei-lhe então o coração e pus-lhe um espelho em frente da boca; depois murmurei: “Acabou-se, vamos vesti-lo o mais depressa possível”. Foi uma cena terrível de ver!          
        Eu pegava sucessivamente os membros do rapaz como os de uma enorme boneca e os apresentava às roupas que as mulheres traziam. Calçaram as meias, vestiram as ceroulas, as calças, o colete, a seguir o casado, cujas mangas nos deram bastante trabalho para enfiar.        
       Quando foi preciso abotoar as botinas, as duas mulheres se ajoelharam, enquanto eu as iluminava; porém, como os pés haviam inchado um pouco, foi espantosamente difícil. Não tendo achado o abotoador, fizeram o serviço com os próprios grampos.         
        Logo que a terrível toalete terminou, analisei a nossa obra e disse: “É preciso penteá-lo um pouco”. A empregada foi buscar um pente e a escova da patroa; mas como tremesse e arrancasse os cabelos compridos e emaranhados em movimentos involuntários, a Sra. Lelièvre apoderou-se do pente com violência e penteou a cabeleira suavemente, como se a acariciasse. Refez a risca, passou a escova na barba, depois enrolou lentamente os bigodes no dedo, como certamente costumava fazer, nas intimidades do amor.         
       E, subitamente, soltando o que tinha nas mãos, segurou a cabeça inerte do amante e olhou demoradamente, desesperadamente, aquela face morta, que não mais lhe sorriria; depois, caindo sobre ele, apertou-o nos braços e beijou-o com violência. Seus beijos caiam como pancadas, na boca fechada, nos olhos extintos, nas têmporas, na fronte. Em seguida, aproximando-se da orelha dele – como se ainda a pudesse ouvir, para balbuciar a palavra que torna mais ardente os abraços – repetiu dez vezes seguidas com voz dilacerante: “Adeus, querido”.        
        Mas o relógio deu meia-noite.       
        Tive um pressentimento: “Raios! Meia-noite! É a hora em que fecham o clube. Vamos, minha senhora, força!”      
        Ela se aprumou. Ordenei: “Vamos levá-lo ao salão”. Pegamo-lo nós três, e, tendo-o levado, sentei-o em um sofá; depois acendi os candelabros.       
        A porta da rua abriu-se e fechou-se pesadamente. Já era ele. Ordenei: “Rosa, rápido, traga-me as toalhas e a bacia e arrume o quarto; por Deus, apresse-se” Eis o Sr. Lelièvre, que vem chegando”.       
        Ouvi os passos subirem e aproximaram-se. Mãos no escuro apalpavam as paredes. Chamei então: “Por aqui, meu caro; tivemos um acidente”.       
       E o marido, espantado, surgiu no umbral, com um charuto na boca. Perguntou: “Que há? Que aconteceu? Que é isso?”        
        Encaminhei-me para ele: “Meu velho, estamos em um penoso embaraço. Eu havia ficado até tarde a tagarelar aqui, com a Sra. Lelièvre e nosso amigo, que me trouxe no seu carro. Subitamente, ele caiu desmaiado, e há duas horas que, não obstante meus cuidados, não consigo fazer voltá-lo a si. Não quis chamar estranhos. Ajude-me a fazê-lo descer; poderei tratá-lo melhor em sua casa”.       
        O marido, surpreso mas sem desconfiar, tirou o chapéu; depois pegou por baixo dos braços o rival doravante inofensivo. Eu me atrelei entre as pernas do rapaz, como um cavalo entre os varais de um carro; e eis-nos a descer a escada, iluminados agora pela mulher.       
        Quando chegamos enfrente da porta, pus o cadáver de pé e falei-lhe, animando-o para enganar o cocheiro: “Vamos, meu caro, isso não há de ser nada; já se sente melhor, não é? Vamos, coragem... um pouco de coragem... faça um pequeno esforço e está pronto”.       
        Sentindo que ele se ia abater, que estava escorregando de minhas mãos, meti-lhe o ombro, o que o projetou para a frente e o fez cair dentro do carro; subi então atrás dele.       
        O marido, inquieto, perguntava-me: “Acredita que seja grave?” Respondi sorrindo: “Oh! Não!” e olhei para a mulher. Ela passara o braço por baixo do braço do esposo legítimo, e mergulhava o olhar fixo no fundo escuro do carro.       
         Apertei-lhes as mãos ordenei que partíssemos. Durante todo o caminho o morto me caía sobre a orelha direita.       
        Ao chegarmos a sua casa, declarei ter ele perdido os sentidos no caminho. Ajudei a levá-lo para o quarto, depois constatei o falecimento; representei uma nova comédia diante da família desesperada. Finalmente, fui para minha cama, não sem praguejar contra os amantes.    

   
        O doutor calou-se, sempre sorrindo.       
        A jovem senhora, inquieta, perguntou: “por que me contou essa história espantosa?”       
        Ele se inclinou galhardamente:       
        Para oferecer-lhe os meus serviços em caso de necessidade.


Guy de Maupassant
Bola de Sebo e Outros contos
São Paulo, Ed. Martin Claret, 2001, p. 155-159.



terça-feira, 16 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / O medo


Guy de Maupassant
O MEDO

Depois de jantarmos, retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo refletia uma lua tranqüila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas, parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a luz da lua estava fervendo.
Seis ou sete homens permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:
— Sim, naquele dia eu tive medo. Meu navio permaneceu seis horas açoitado pelas ondas, com um penhasco encravado no ventre. Por sorte, à noite passou um navio mercante inglês, que nos viu e nos recolheu.
Então um dos presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto, de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.
— Capitão, o Sr. diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.
— Discordo! Asseguro-vos que tive medo!
— Permita-me que lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve experimentar o medo em todo seu espantoso horror.


Eu descobri o que de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.
Observem, senhores, que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes o que me aconteceu na África.
Percorria eu as grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo. Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das surpreendentes colinas.
Éramos dois amigos, escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros. Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos outros. Um deles disse:
— A morte vem para cima de nós.
De repente meu companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços, mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos, diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor. Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que compreendi melhor ainda...
— Perdão, senhor, mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.
— Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho. Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.
Agora vou lhes contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa roupa de lã.
Tínhamos que chegar à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante, e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos. O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados, moravam com ele.
A escuridão era profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores, ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou, a porta se abriu e entramos.
A cena que vimos é impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações. As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano, ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por isso estamos todos intranqüilos”.
Procurei tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por completo.
Perto da lareira, um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já o estou ouvindo!”
As duas mulheres voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os seus paus. Já ia eu tentar novamente tranqüilizá-los, quando o cachorro despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas, como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível, desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido, o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente aí, quando o matei!”
As mulheres, como loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se. Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e simplesmente.
Permanecemos imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.
O cachorro se calou logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu apalpar com mãos trêmulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como de quem se lamenta.
Nesse momento se ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos, disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das madeiras.
Ao lado do muro, junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.



Naquela noite eu não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.