quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / Ele?


Guy de Maupassant
ELE?

A Pierre Decourelle



Meu caro amigo, não compreendes nada? Não admira. Achas que fiquei louco? Talvez eu o esteja um pouco, mas não pelas razões que imaginas..
Sim. Vou-me casar. 
E, no entanto, minhas idéias e minhas convicções não mudaram. Considero a coabitação legal uma tolice. Estou certo de que, entre dez maridos, oito são enganados. E não merecem menos, por terem tido a imbecilidade de amarrar sua vida, de renunciar ao amor livre, a única coisa boa e alegre no mundo, de cortar asas à fantasia que nos impele incessantemente para todas as mulheres, etc, etc. Mais do que nunca eu me sinto incapaz de amar uma mulher, porque sempre amarei demais as outras. Quisera ter mil braços, mil lábios e mil temperamentos para poder estreitar ao mesmo tempo um exército dessas criaturas deliciosas e sem importância.
E, contudo, eu me caso.
Devo acrescentar que não conheço minha mulher de amanhã. Só a vi umas quatro ou cinco vezes. Sei que ela não me desagrada; e isso me basta para o que quero. Ela é baixinha, loura e gorducha. Depois de amanhã, desejarei ardentemente uma mulher alta, morena e magra.
Não é rica. Pertence a uma família média. É uma rapariga como se encontram às centenas na burguesia comum, servindo para casar, sem qualidades nem defeitos aparentes. Diz-se dela: “A Senhorita Jajole é muito simpática”. Dir-se-á, amanhã: “É muito simpática, a Senhora Raymon”. Pertence, enfim, à legião de mocinhas honestas, que “a gente se sente feliz em tomar por esposa”, até o dia em que se descobre preferir justamente todas as outras mulheres àquela que se escolheu.
Então por que me casar, dirás tu?
Tenho dificuldades em confessar a estranha e inverossímil razão que me leva a essa insensatez.
Caso-me para não estar só!
Não sei como dizer isso, como fazer-me entender. Terás pena de mim, desprezar-me-á, tão miserável é meu estado de espírito.
Não quero mais ficar sozinho à noite. Quero sentir uma criatura perto de mim, contra mim, um ser que possa falar, dizer alguma coisa, seja o que for.
Quero poder interromper-lhe o sono; fazer-lhe bruscamente uma per­gunta, uma pergunta estúpida, para ouvir uma voz, sentir uma alma desperta, um raciocínio em ação, para ver, acendendo bruscamente minha vela, uma figura humana ao meu lado... porque. . . porque. . . (não ou­so confessar esta vergonha)... porque tenho medo de estar só.
Ah, ainda não me compreendes!
Não tenho medo de um perigo. Se um homem entrasse, eu o mata­ria sem titubear. Não tenho medo de assombrações; não creio no sobrena­tural. Não tenho medo dos mortos; creio no aniquilamento definitivo dos seres que desaparecem.
Então... sim! Então?... Pois bem! tenho medo de mim! tenho medo do medo; medo dos espasmos de meu espírito que enlouqueceu, medo dessa tremenda sensação do terror incompreensível.
Ri, se quiseres. Isto á horrível, incurável. Tenho medo das paredes, dos móveis, dos objetos familiares que ganham, para mim, uma espécie de vida animal. Tenho medo sobretudo da pavorosa perturbação do meu pen­samento, de minha razão que me foge, turvada, dispersada por uma invi­sível e misteriosa angústia.
Sinto ao começo uma vaga inquietação que me perpassa na alma e faz-me correr um estremecimento na pele. Olho em torno de mim. Nada! E eu desejaria que fosse alguma coisa! O quê? Alguma coisa compreensí­vel. Pois só tenho medo porque não compreendo o meu medo.
Falo, e tenho medo de minha voz. Ando, e tenho medo do desconhe­cido atrás da porta, atrás da cortina, dentro do armário, debaixo da cama. E no entanto sei que não há ninguém em parte alguma.
Viro-me bruscamente, porque tenho medo do que está atrás de mim, embora não haja nada e eu o saiba.
Agito-me, sinto crescer o meu pavor; fecho-me no meu quarto; meto-­me na cama e me escondo debaixo das cobertas; e encolho, enrolando co­mo bola, fecho desesperadamente os olhos e fico assim por um tempo in­finito, com o pensamento de que a vela contínua acesa na mesa de cabeceira e é preciso apagá-la. E não ouso.
Não é terrível ficar assim?
Antigamente, eu não sentia nada disso. Voltava tranqüilamente para casa. Ia e vinha, de um lado para outro, sem que nada me perturbasse a serenidade da alma. Se me dissessem a inverossímil, estúpida e pavoro­sa doença de medo que mais tarde tomaria conta de mim, eu teria rido. Abria as portas no escuro com segurança: deitava-me devagar, sem fe­char os trincos, e nunca me levantava no meio da noite para me certificar de que todas as entradas do meu quarto estavam fortemente trancadas.
Isto começou o ano passado, de uma forma extraordinária.
Era uma noite de outono. Quando a empregada saiu, depois do meu jantar, pensei comigo mesmo o que havia de fazer. Andei algum tempo no meu quarto. Sentia-me cansado, abatido sem razão, incapaz de trabalhar, sem força sequer para ler. Uma chuva fina molhava as vidraças; eu estava triste, penetrado de uma dessas tristezas sem causa, que dão vontade de chorar, que fazem desejar qualquer coisa que seja, para sacudir o torpor do pensamento.
Sentia-me só. Minha casa me parecia vazia como nunca. Uma solidão infinita e pungente me cercava. Que lazer? Sentei-me. Então uma impa­ciência nervosa me correu pelas pernas. Ergui-me e continuei a caminhar. Talvez tivesse também um pouco de febre, pois minhas mãos, que eu se­gurava nas costas, como freqüentemente se faz quando se anda devagar, ardiam uma contra a outra, o que me não passou despercebido. De repen­te, um calafrio percorreu-me a espinha. Imaginei que a umidade de fora estivesse entrando em casa, a primeira vez no ano. E me sentei de novo, contemplando as chamas. Mas logo a impossibilidade de continuar no mesmo lugar fez-me levantar de novo, e senti que era preciso sair, sa­cudir-me, encontrar um amigo.
Saí. Fui à casa de três amigos, que não encontrei; em seguida, fui caminhando pelo bulevar, na esperança de dar com um conhecido.
Por toda a parte era a mesma tristeza. As calçadas molhadas brilha­vam. Uma tepidez de água, uma tepidez dessas que nos gelam em súbitos calafrios, uma tepidez pesada, de chuva impalpável, oprimia a rua, parecia fatigar e escurecer a chama do gás.
Ia num passo mole, repetindo com meus botões: “Não encontrarei ninguém com quem conversar”.
Inspecionei muitas vezes os cafés, da Madeleine ao faubourg Poissonière. Indivíduos melancólicos, curvados sobre os mesas, pareciam não ter  nem sequer força para terminar o que estavam tomando.
Vaguei assim durante muito tempo, e, por volta de meia-noite, dis­pus-me a voltar para casa. Estava muito calmo, mas muito cansado. O porteiro, que se deita antes das onze horas, abriu-me imediatamente a porta, contra os seus hábitos; e eu pensei: “Com certeza foi outro locatá­rio que acaba de subir”.
Quando saio de casa, sempre dou duas voltas à chave. Encontrei a porta apenas encostada, o que me chamou a atenção. Calculei que tivesse vindo trazer-me alguma carta durante a noite.
Entrei. O fogo ardia ainda, iluminando fracamente o apartamento. Apanhei uma vela para ir acende-la na lareira, quando, ao olhar diante de mim, vi alguém sentado em minha poltrona, esquentando os pés e dan­do-me as costas.
Não tive medo, oh não! absolutamente! Uma suposição muito veros­símil atravessou-me o espírito; algum dos meus amigos teria vindo visi­tar-me. O porteiro, prevenido por mim, à saída, dissera que eu ia voltar e lhe abrira a porta. E todas as circunstâncias da minha volta, num se­gundo, atravessaram-me a memória: o fio puxado imediatamente, minha porta apenas encostada.
Meu amigo, de quem eu só via os cabelos, adormecera diante do fogo enquanto me esperava. Encaminhei-me para acorda-lo. Via perfeitamente um dos seus braços, pendente à direita: os pés estavam cruzados um sobre o outro; sua cabeça um pouco inclinada para o lado esquerdo da poltro­na, bem indicava o sono. Perguntei a mim mesmo: Quem será? Aliás, enxergava-se mal no quarto. Avancei a mão para tocar-lhe o ombro... Esbarrei no forro da cadeira! Não havia mais ninguém! A poltrona estava vazia!
Que sobressalto, meu Deus!
Recuei, primeiro, como se um terrível perigo houvesse aparecido diante de mim.
Depois, voltei-me, sentindo alguém atrás; e logo, uma imperiosa ne­cessidade de ver de novo a poltrona me fez dar outra meia volta.
E fiquei de pé, arquejando de pavor, tão aterrado que só tinha uma idéia, prestes a cair.
Mas sou um homem de sangue-frio, e logo me volta a razão. Pensei: “Acabo de ter uma alucinação, só isso”. E refleti imediatamente sobre esse fenômeno. O pensamento anda depressa, em tais ocasiões.
Eu tivera uma alucinação — era um fato incontestável. Ora, meu espírito tinha permanecido lúcido durante todo o tempo, funcionando regularmente, logicamente. Não havia portanto nenhuma perturbação do cérebro. Só os olhos se haviam enganado, e enganado o meu pensamento. Os olhos tinham tido uma visão, uma dessas visões que fazem as pessoas ingênuas acreditarem nos milagres. Era um acidente nervoso do aparelho ótico, nada mais, um pouco de congestão, talvez.
E acendi minha vela. Percebi, ao baixar-me para o fogo, que estava tremendo, e me levantei com um sobressalto, como se me tivessem tocado por trás.
Não me sentia tranqüilo, não havia dúvida.
Dei alguns passos; falei alto. Cantei, a meia voz, uns estribilhos de canções.
Em seguida, fechei com duas voltas na chave a porta do meu quarto, e me senti mais confiante. Pelo menos ninguém poderia entrar.
Tornei a sentar e refleti muito tempo sobre minha aventura; depois, deitei-me e apaguei a luz.
Durante alguns minutos, tudo foi bem. Eu estava deitado de costas, calmamente. Mas, veio-me o desejo imperioso de olhar o quarto, e virei-me de lado.
No fogo, só havia urnas duas ou três brasas acesas que iluminavam apenas os pés da poltrona; e eu julguei ver de novo o homem sentado ali.
Acendi um fósforo num movimento rápido. Enganara-me, não via mais nada.
Levantei-me, entretanto, e pus a poltrona atrás da cama, longe dos meus olhos.
Depois, novamente no escuro, tratei de dormir. Pegara no sono havia cinco minutos no máximo quando percebi, em sonho, e nitidamente, como na realidade, toda a sena da noite. Acordei desesperado, e, tendo acendido a luz, fiquei sentado na cama, sem sequer tentar dormir outra vez.
Duas vezes, entretanto, o sono tomou conta de mim durante alguns segundos. Duas vezes revi a coisa. Julguei ter enlouquecido.
Quando veio o dia, senti-me curado e cochilei tranqüilamente até o meio-dia.
Estava acabado, inteiramente acabado. Eu tivera febre, um pesadelo, qualquer coisa. Estivera doente, enfim. Achei-me, de qualquer maneira, um grande idiota.
Senti-me muito alegre, nesse dia. Jantei num cabaré; fui ao teatro, depois, encaminhei-me para casa. Mas eis que, ao me aproximar, inva­diu-me uma estranha inquietação. Tinha medo de revê-lo, a ele. Não medo, não medo de sua presença, na qual eu não acreditava, mas medo de uma nova visão de meus olhos, medo de uma alucinação, medo do pavor que se apossaria de mim.
Durante mais de uma hora, andei de um lado para outro, na calçada. Afinal, achei-me imbecil demais, e entrei. Arquejava de tal maneira que não pude subir direito a escada. Parei ainda, durante mais de dez minu­tos, diante de minha porta; e então, bruscamente, tive um impulso de co­ragem, um resfriamento da vontade. Meti a chave; precipitei-me para den­tro, depois de acender uma vela, empurrei com um pontapé a porta entre­fechada do meu quarto e lancei um olhar aterrado para a lareira. Não vi nada.
— Ah...
Que alívio! Que alegria! Que libertação! Eu ia e vinha com um ar fanfarrão. Mas não me sentia tranqüilizado, de vez em quando me vol­tava, num susto; a sombra nos cantos inquietava-me.
Dormi mal, acordando a todo momento por barulhos imaginários. Mas não o vi, Estava acabado!
Depois desse dia, tenho medo quando estou sozinho, à noite. Sinto ali, perto de mim, em torno de mim, aquela visão. Ela não tornou a me aparecer. Oh, não! Que importa, aliás se não acredito nela, se sei que não é nada!
Entretanto, ela me perturba, porque penso nela incessantemente. Uma das mãos pendia, do lado esquerdo, como de um homem dormin­do... Ora, vamos, por todos os diabos, não quero mais pensar nisso!
E, no entanto, por que essa obsessão? Por que essa persistência? Os pés dele estavam pertinho do fogo...
Ele me persegue; é uma loucura, mas assim é. Quem é ele? Bem sei não existe, que não é nada. Ele só existe na minha apreensão, no meu temor, na minha angústia! Vamos, basta!...
É em vão que raciocino, que me rebelo: não posso mais ficar sozinho em casa, porque ele lá está. Não o verei mais, sei disso, nem ele se mostrará mais, está acabado. Mas ele continua no meu pensamento. Permanece invisível, mas isso não impede que lá esteja. Está atrás das portas, no armário fechado, debaixo da cama, em todos os cantos escuros, em todas as sombras. Se empurro a porta, se abro o armário, se chego a vela debaixo da cama, se ilumino os cantos, as sombras, ele não  está mais; porém, sinto-o atrás de mim. Quando me volto, no entanto, estou certo de não o ver, de não o ver mais. Isso não impede que ele continue atrás de mim.
É estúpido, mas atroz. Que queres? Nada posso fazer.

Mas, se formos os dois a minha casa, tenho certeza, sim, tenho plena certeza de que ele não estará mais lá! Pois ele está só porque estou sozinho, unicamente porque estou sozinho!


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