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quarta-feira, 6 de abril de 2016

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi






Primo Levi

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi

Escritor relatou sua experiência de Auschwitz em depoimentos para julgamentos de criminosos



Como ocorre com outros grandes escritores que relataram sua experiência de sobreviventes do Holocausto, como Elie Wiesel e Imre Kertèsz, o valor da obra do italiano Primo Levi vai muito mais além do literário (mesmo sendo imenso nesse terreno). A era dos que presenciaram a Shoah está prestes a acabar. Os últimos sobreviventes, e também os últimos carrascos, vão pouco a pouco se apagando e a memória desaparece com eles. Por isso obras com a Trilogia de Auschwitz são mais importantes do que nunca: somente através da leitura dos relatos dos que lá estiveram é possível tentar entender, mesmo remotamente, o horror incompreensível do nazismo e do Holocausto, cujo dia internacional se comemora nesta quarta-feira.

Primo Levi (1919-1987) escreveu também uma série de relatórios para diferentes instituições e para prestar depoimentos em processos penais contra criminosos de guerra, nos quais descreve sua passagem pelos campos da morte, que acabam de ser resgatados em um volume, Assim foi Auschwitz (Editora Península, na tradução ao espanhol de Carlos Gumpert; e traduzido ao português pela Companhia das Letras). Secos, quase sem adjetivos, carregados de horror, uma leitura que é difícil de esquecer.
Primo Levi

Químico de formação, o escritor de Turim foi membro da resistência italiana. Em um obscuro episódio resgatado recentemente por Sergio Luzzato em seu livro Partisanos, sua brigada executou dois homens acusados de roubo, mas tudo indica que Levi não participou diretamente. Em setembro de 1943 foi preso pela polícia fascista e, ao se declarar judeu, ao invés de ser imediatamente executado por ser guerrilheiro, foi deportado a Auschwitz. Sobreviveu graças ao seu ofício de químico e a grandes doses de força e sorte no campo satélite de Monowitz (Auschwitz III). Nesse local eram colocados os que, como relata o próprio Levi, estavam condenados a ser exterminados ao longo de vários meses com o trabalho escravo, não imediatamente nas câmaras de gás.
Ao voltar dos campos escreveu É isso um Homem?, um dos livros mais importantes do século XX que, entretanto, demorou muito tempo a encontrar um editor, talvez por ser ainda muito cedo para que a sociedade enfrentasse a magnitude do ocorrido durante a noite do terror nazista. A Trilogia de Auschwitzse completa com A trégua e Os afogados e os sobreviventes, apesar de Levi também ter escrito livros muito diferentes como A tabela periódica e Se não agora, quando? sobre um grupo de guerrilheiros. Em 11 de abril de 1987 se suicidou atirando-se da escada de sua casa em Turim.
A obra de Levi obteve um impacto gigantesco e pode-se dizer que passou a fazer parte da memória do horror da humanidade. Nunca deixou de ser traduzida, reeditada e, sobretudo, lida. Suas obras completas acabam de ser publicadas em inglês, com um prólogo de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel. Em uma das resenhas, publicada no The New York Review of Books, o tradutor, romancista e especialista em literatura italiana Tim Parks escreve que “Levi sempre quis colocar o leitor diante do Holocausto com toda a crueza, sem jamais lhe oferecer uma zona de conforto”. Este princípio se aplica especialmente aos documentos contidos em Assim foi Auschwitz, vários deles escritos em parceria com seu amigo, o médico Leonardo De Benedetti, com quem compartilhou o cativeiro.
Primo Levi

“Informe sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz”, o texto central do volume, escrito a pedido do Exército soviético, é um dos primeiros relatos que descrevem o sistema de funcionamento de Auschwitz, desde a atuação dos Sonderkommando, os internos obrigados a cuidar das câmaras de gás, e os crematórios que aparecem no impactante filme O filho de Saul, até a anulação da vontade dos prisioneiros, que se tornavam zumbis capazes apenas de esperar a morte, a fome e o castigo. Também é devastador quando descreve a procedência dos presos com quem compartilhou aquele campo satélite de Auschwitz: judeus de toda a Europa, de todos os ofícios e classes sociais, arrastados pelos nazistas até os confins da Polônia para serem assassinados.
São também muito interessantes seus testemunhos para diferentes processos, entre eles o de Adolf Eichmann, sobre o qual Hannah Arendt escreveu sua famosa teoria da banalidade do mal. Naqueles textos, alguns muito precoces, tanto De Benedetti como Levi já consideravam que a responsabilidade do horror “recai de forma coletiva sobre todos os soldados, suboficiais e oficiais das SS ali atuantes”. Nos últimos dois anos vários guardas de Auschwitz foram processados na Alemanha com base nesse mesmo princípio: o fato de terem trabalhado no campo de extermínio, independentemente do cargo ou da missão, já é um crime em si. Levi também denuncia um assunto crucial: o papel da indústria alemã no trabalho escravo. “Os campos não eram um fenômeno marginal: a indústria alemã se baseava neles; eram uma instituição fundamental da Europa marcada pelo fascismo e parte dos nazistas não escondia que o sistema se manteria, melhor dizendo, se estenderia e se aperfeiçoaria”. São textos que carecem da intensidade literária de É isso um homem?, mas que colocam o leitor diante do horror, sem concessões ou filtros, só com a memória de uma testemunha.








INESGOTÁVEL HOLOCAUSTO


Em um de seus textos, Levi lamenta que “a dez anos da libertação dos campos de concentração é triste e significativo ver-se obrigado a constatar que, na Itália pelo menos, o tema dos campos de extermínio, longe de terem virado história, se encaminha ao mais absoluto esquecimento”. É uma das poucas coisas sobre as quais o escritor italiano se engana: 70 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Shoah continua sendo objeto de atenção constante em novos livros e filmes.
Em 2015, foram publicadas duas obras muito importantes, KL. A história dos campos de concentração (publicada na forma de e-book no Brasil), de Nikolaus Wachsmann, e Terra negra (Galaxia Gutenberg, ainda não editado no Brasil), enquanto em 15 de janeiro estreou na Espanha O filho de Saul, um filme do húngaro László Nemes que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes (estreia prevista para fevereiro de 2016). O filme acompanha um membro do Sonderkommando e tenta refletir o horror de Auschwitz aos olhos de um prisioneiro. O filme obteve um enorme impacto e revitalizou a interminável polêmica sobre a legitimidade de narrar o holocausto por meio da ficção.

EL PAÍS




domingo, 3 de abril de 2016

70º ANIVERSÁRIO AUSCHWITZ / A voz inesgotável dos sobreviventes de Auschwitz




70º ANIVERSÁRIO AUSCHWITZ

A voz inesgotável dos sobreviventes de Auschwitz

Primo Levi, Elie Wiesel, Imre Kertész e Odette Elina escreveram obras-primas


GUILLERMO ALTARES
Madri 27 JAN 2015 - 16:44 COT







Cerca de 1.500 sobreviventes estavam presentes no 60º aniversário da libertação de Auschwitz. Agora, uma década depois, foram apenas 300. Os historiadores calculam que, de 1,3 milhão de pessoas deportadas para lá, em torno de 200.000 sobreviveram à passagem por esse campo de extermínio. Setenta anos depois da entrada das tropas soviéticas no local, a era dos que lá estiveram vai chegando ao fim, pois as testemunhas oculares – tanto as vítimas quanto os carrascos – estão se extinguindo pouco a pouco. Há dez anos, quando publicou sua monumental pesquisa sobre o campo, o historiador britânico Laurence Rees já se sentia angustiado com a iminência dessa inevitável ausência. “Em pouco tempo, o último sobrevivente e o último criminoso se reunirão àqueles que foram assassinados no campo”, escreve em Auschwitz, livro (inédito no Brasil) que serviu de base para um documentário homônimo da BBC. “Então não restará ninguém neste mundo que tenha conhecido diretamente o que ocorreu nesse lugar. E existe o perigo de que, quando isso acontecer, a história se misture ao passado distante e se transforme apenas em um acontecimento terrível entre tantos outros.”
Existem centenas de depoimentos gravados, milhares de livros, museus de um rigor impressionante e fotos horripilantes por sua naturalidade – como a série de judeus húngaros, escolhidos para as câmaras de gás, que esperam sua vez conversando, sentados em um gramado, alheios ao terrível destino que lhes cabe. E, claro, resta o próprio campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco e que está sendo preparado para uma grande transformação, justamente pelo desaparecimento das testemunhas oculares. Os responsáveis pela gestão do antigo campo nazista encaram a sua complexa restauração e a adaptação do museu para gerações que não viveram a II Guerra Mundial. Também, e não é assunto fútil, para uma Europa que em algum momento julgou ter se livrado da sombra do fascismo e do antissemitismo, quando na realidade está demonstrano exatamente o contrário.

No entanto Auschwitz – e em sentido mais amplo a Shoah (Holocausto, em hebraico – oferece uma forma ímpar de memória, indelével, que adia até certo ponto, e talvez para sempre, a desaparição das testemunhas: um punhado de obras literárias inesquecíveis, testemunhos vivos do horror, que conseguem narrar o inenarrável. Os livros dos que estiveram lá, alguns já mortos, outros ainda vivos: Primo Levi (1919-1987) com sua trilogia sobre Auschwitz, que começa com É Isto Um Homem? (Rocco); Elie Wiesel (1928) com a trilogia NightDawn e Day (do qual o primeiro foi lançado no Brasil pela Ediouro como A Noite); Imre Kertész (1929) com Sem Destino (Planeta); e Odette Elina (1910-1991), menos conhecida, embora não menos importante que os anteriores, porque só escreveu um livro,Sans Fleurs Ni Couronnes (“sem flores nem coroas”, inédito no Brasil). São obras que atingem os píncaros da literatura universal e, ao mesmo tempo, servem como testemunhos imprescindíveis da “noite mais negra da humanidade, quando milhões de pessoas sofriam e morriam sob o terror nazista”, como escreveu William Styron, autor de um notável romance sobre o campo, A Escolha de Sofia.
Entretanto, por mais que O Menino do Pijama Listrado tenha vendido milhões de exemplares (mostrando o inesgotável interesse do leitor pelo Holocausto), a ficção não pode ser o veículo para entrar na memória do campo. À lista anterior seria preciso acrescentar O Diário de Anne Frank, a menina holandesa morta em Bergen-Belsen após passar por Auschwitz, e cujas memórias são um dos poucos livros que podem ser considerados universais; Maus(Companhia das Letras), HQ de Art Spiegelman que relata a história do seu pai e que é uma indelével reflexão sobre os sobreviventes do Holocausto; as memórias do psiquiatra Viktor Frankl,Em Busca de Sentido (Vozes), e Shoah, documentário de Claude Lanzmann que relata o conjunto dos campos de extermínio.
“Que este testemunho possa despertar neles o horror do nazismo, mas também a esperança no futuro do homem”, escreve Odette Elina, judia francesa, deportada também como resistente, que consegue capturar o inexprimível em menos de 100 páginas. Entretanto, seu livro, como os de Primo Levi, Kertész (prêmio Nobel de Literatura) e Wiesel (prêmio Nobel da Paz) tem um fundo profundo de desesperança porque gira em torno do grande tema colocado pela Shoah: a sobrevivência e a desumanização, a destruição dos seres humanos sob o terror máximo do extermínio.
“O ódio entre os detidos, aquele ódio surgido da luta pela vida”, afirma Elina. “As bestas querem nos arrebatar o que nos resta de dignidade, querem deixar em nós apenas os instintos animais”, prossegue. Wiesel relata como, quando tratava de salvar o pai, muito doente, o chefe do barracão lhe diz: “Ouça-me bem, pequeno. Não esqueça que está em um campo de concentração. Aqui cada um deve lutar por si mesmo e não pensar nos outros. Nem sequer em seu pai. Aqui não há pai que valha, nem irmão, nem amigo. Cada um vive e morre para si, sozinho. Ofereço-te um conselho: não dê mais sua ração de pão e sopa a seu velho pai. Não pode fazer nada por ele. E você se mata a si mesmo. Ao contrário, deveria receber a ração dele”. Primo Levi o diz assim: “É homem quem mata, é homem quem comete ou sofre injustiças; não é homem quem, perdido todo o recato, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho terminasse de morrer para lhe tirar um quarto de pão, está, embora sem culpa, mais distante do homem pensante do que o sádico mais atroz”.
São apenas pequenos fragmentos de obras literárias imensas e ao mesmo tempo testemunhos documentais inesgotáveis que nunca acabaremos de ler porque nunca terminaremos de entender. Como disse Elie Wiesel em uma entrevista a este jornal: “Existem na humanidade forças tenebrosas, destruidoras; dado que essas forças estão vivas e atuam, é aí onde o desafio se apresenta ao homem. Mas não basta com a vigilância. O acontecimento é ontológico, transcendente. Não podemos dizer que há somente uma lição. Há mil lições e não há nenhuma. Ainda não conseguimos abordar esse tema. Ele está fora de todo entendimento, de toda percepção. Podemos comunicar alguns retalhos, alguns fragmentos; mas não a experiência. O que vivemos ninguém o conhecerá, ninguém o compreenderá”