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terça-feira, 11 de outubro de 2016

Capacitados para o sexo



Capacitados para o sexo

Na Espanha, voluntários eróticos dão apoio a portadores de deficiência que não querem serem tratados como assexuados

Eles complementam outras alternativas, como associações que dão formação para que prostitutas lhes prestem assistência



JERÓNIMO ANDREU
Barcelona 22 MAR 2014 - 18:00 COT



Francesc Granja, presidente da Associação de Atenção Sexual a Portadores de Deficiência.MASSIMILIANO MINOCRI

Francesco Granja recebe as visitas na cama apertando um controle que abre a porta da sua casa. Mora num luminoso apartamento da Vila Olímpica de Barcelona adaptado para sua tetraplegia causada por um acidente de carro há 20 anos, quando voltava de uma reunião. Costuma se locomover numa cadeira de rodas, mas hoje umas feridas o detêm. Ao seu lado estão María Clemente, psicóloga especializada em neurorreabilitação, e Eva, assistente sexual, dois pilares fundamentais de Tandem Team, a associação sem fins lucrativos presidida por Granja, dedicada à assistência sexual para portadores de deficiência por meio de voluntários.

sábado, 3 de setembro de 2016

Eternamente jovens? / Uma droga capaz de postergar a morte transformará a sociedade XLISTO

Eternamente jovens?

A medicina busca frear o envelhecimento e alongar a vida

Uma droga capaz de postergar a morte transformará a sociedade


JAVIER SAMPEDRO
6 JUN 2015 - 17:00 COT

Qual é o maior fator de risco para contrair doenças mortais? O tabaco, a radiação ultravioleta do sol, o sedentarismo, encher-se de açúcar? Nada disso: é o envelhecimento. Por essa razão, e porque a expectativa média de vida está aumentando nos países ocidentais e nas potências emergentes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que o número de pessoas que sofrem das doenças da idade —infarto, câncer e neurodegeneração— vai dobrar nas próximas duas décadas. Que vantagem tem, então, viver cada vez mais?

terça-feira, 3 de maio de 2016

Por que algumas pessoas envelhecem antes das outras_link



Por que algumas pessoas envelhecem antes das outras

Um conjunto de fatores permite medir as diferenças entre a idade biológica e a cronológica


DANIEL MEDIAVILLA
7 JUL 2015 - 12:58 COT

O tempo não passa igualmente para todos. Quando se chega perto dos 40, alguns continuam parecendo estar na casa dos 20, enquanto outros parecem perto da idade da aposentadoria. Além do aspecto estético, numa sociedade cada vez mais longeva, medir a idade real e a velocidade do envelhecimento individual pode ser muito útil para contrabalançar os efeitos da passagem do tempo quando ainda não começaram a causar doenças. Até agora, contudo, não existem métodos para medir o processo de envelhecimento nos adultos jovens. É isso que uma equipe internacional de cientistas coordenada pela Universidade Duke (EUA) está tentando mudar.
Os pesquisadores usaram o Estudo de Dunedin, que reuniu informações sobre a saúde de mais de 1.000 pessoas da cidade neozelandesa de mesmo nome desde que nasceram, entre 1972 e 1973, até a atualidade. Por um lado, utilizando um algoritmo que inclui 10 indicadores biológicos, como a relação cintura-quadris, a saúde das gengivas, os níveis de colesterol e triglicérides e a pressão arterial, calcularam a idade biológica dos indivíduos que queriam estudar. Embora todos tivessem 38 anos, alguns deles correspondiam à idade biológica de 28 anos, enquanto outros chegavam aos 61.
Os cientistas mediram ainda o ritmo de envelhecimento dos voluntários tomando como referência a variação de 18 indicadores biológicos entre os 26 e os 38 anos. Dessa forma observaram que, enquanto a maior parte das pessoas envelhece um ano biológico a cada ano cronológico, alguns envelheciam até três anos biológicos por ano cronológico. No extremo oposto, três dos participantes do Estudo de Dunedin tiveram um ritmo de envelhecimento biológico inferior a zero, recuperando a juventude fisiológica na casa dos 30.
Os autores do trabalho, publicado agora na revista PNAS, também observaram que quem envelhecia mais rápido e tinha uma idade biológica maior sofria uma queda também mais rápida do quociente intelectual, maior risco de demência e pior equilíbrio. Além disso, os voluntários que acumulavam anos biológicos com maior velocidade tinham uma percepção pior sobre a própria saúde e pareciam mais velhos aos olhos de observadores independentes.
Os pesquisadores reconhecem que ainda devem refinar suas aferições para saber, por exemplo, se alguns fatores relacionados com o envelhecimento têm mais influência no acúmulo de anos biológicos do que outros, esses resultados mostram que é possível quantificar as diferenças na velocidade com que pessoas jovens envelhecem, criando as bases para medir a eficiência de tratamentos anti-idade aplicáveis antes que a deterioração física surja na forma de doenças.
Alguns indivíduos envelheceram até três anos biológicos por ano cronológico
“Nossa pesquisa pode impulsionar de duas maneiras os esforços para prevenir as doenças e incapacidades relacionadas com a idade. Em primeiro lugar, torna possíveis outros estudos que revelem de que maneira diferentes fatores de risco podem acelerar o envelhecimento. Esses estudos poderão identificar metas para o trabalho de prevenção”, explica Dan Belskey, pesquisador da Universidade Duke e autor principal do estudo. “Em segundo lugar, torna possível a avaliação de terapias de antienvelhecimento em pessoas jovens”, acrescenta.
“Antes, os estudos tinham que se concentrar em adultos mais velhos, porque os efeitos da idade costumeiramente são medidos por meio de patologias cognitivas ou físicas”, prossegue. “Tentar retardar o envelhecimento de pessoas que já desenvolveram doenças crônicas é uma corrida morro acima. As terapias para retardar o envelhecimento em pessoas jovens podem ser mais eficientes porque os processos relacionados com a doença ainda não estão em andamento”, conclui.
Para completar os resultados, no futuro os pesquisadores querem medir que parte do ritmo com que envelhecemos está relacionada com a genética e que parte com o estilo de vida. Além disso, tentarão compreender por que alguns dos indivíduos estudados mostravam traços fisiológicos indicadores de que, ao menos durante um certo período, tornavam-se mais jovens com a passagem do tempo.


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Morrer jovem, aos 140 anos


Morrer jovem, aos 140 anos

A aplicação da telomerase em camundongos demonstrou que é possível prolongar não só a vida, como também sua qualidade. Será que nós, humanos, poderíamos então viver até os 140 anos?


Silvia P. Carpallo
1 mai 2016


Se fizéssemos um estudo sobre os medos mais comuns, além do medo de aranhas ou do escuro, um que muitos de nós compartilharíamos seria o medo de envelhecer. Na verdade, nem é preciso pesquisar muito. Todos entramos em crise com nossos primeiros cabelos brancos, passamos o dia procurando tinturas ou cremes antirrugas e, às vezes, até nos vestimos tentando aparentar menos idade do que a que temos. Mas será que existe realmente alguma forma de escapar da velhice? Parece que a resposta não está no bisturi, que só nos permite “ficar mais jovens” em um nível mais superficial, e sim em nosso próprio DNA.
A diretora do Centro Nacional de Investigaciones Oncológicas da Espanha (CNIO), María Blasco, e a jornalista especializada em ciência e saúde Mónica G. Salomé lançaram o livro Morir Joven, a los 140 (“morrer jovem, aos 140”), uma obra de divulgação que pretende aproximar a ciência da população em geral, com conceitos que muitos de nós veem como ficção científica, mas parece que muito em breve se tornarão realidade.
O livro nasce da linha de pesquisa da cientista María Blasco sobre os telômeros, “estruturas protetoras que existem no final de nossos cromossomos”. A relação entre os telômeros e o envelhecimento se baseia, pelo que nos conta Blasco, no fato de que “eles se corroem cada vez que nossas células se dividem, e assim acabam se encurtando e causando danos ao nosso DNA com o passar do tempo − e é por isso que o encurtamento dos telômeros é uma das causas do envelhecimento molecular”. Para poder interferir nesse processo, Blasco tem passado grande parte de sua carreira pesquisando a chamada telomerase, “que é capaz de frear isso, embora ainda não haja nenhuma terapia aprovada que possa ativar a telomerase de forma potente e que possa ser usada na prevenção ou no tratamento de doenças associadas ao envelhecimento”.
Pode-se viver até os 140 anos?
O que María Blasco relara em seu livro e explica ao EL PAÍS é que suas pesquisas demonstraram que, em camundongos, a aplicação da telomerase conseguiu efetivamente retardar o aparecimento de doenças relacionadas ao envelhecimento, além de prevenir o câncer. “Vimos, além disso, que esses camundongos viviam significativamente mais”, o que levou à investigação das possibilidades dessa terapia em humanos. Mas será possível que vivamos até os 140 anos, como diz o título do livro? Sobre isso, Blasco explica que “a expectativa de vida ao nascer aumenta a cada década e faz isso numa velocidade que não tem diminuído − nem parece que tenda a diminuir em um futuro imediato. À medida que vamos entendendo como se produzem as doenças, em parte graças à compreensão de por que envelhecemos, tenho certeza de que teremos melhores maneiras de preveni-las e tratá-las”, o que, pela lógica, nos levaria a viver mais anos.
A Espanha já é um dos países com maior expectativa de vida, mas o que já se demonstrou é que ganhar anos de vida nem sempre significa ganhar qualidade de vida. A vantagem de trabalhar com a telomerase é que não só viveríamos mais, como faríamos isso justamente por ter menos doenças. “Em camundongos, vemos que quando se prolonga a vida é porque eles têm menos doenças e estão jovens em idades cronológicas avançadas”, insiste Blasco.
O que significa envelhecer?
Quando falamos de envelhecimento, não falamos apenas de cabelos brancos e rugas, mas também da própria vida de nossas células. Assim, de um ponto de vista científico, “o envelhecimento não é nada mais que a deterioração da capacidade de nossas células de se manter saudáveis e funcionais, algo que está associado ao fato de que os mecanismos que nos protegem do dano começam a decair quando termina a idade reprodutiva de nossa espécie”. Conseguir mudar esse mecanismo por meio da telomerase é, portanto, um novo objetivo.
Além da preocupação social com nossa aparência, com o fato de nos sentir excluídos de certas atividades e até mesmo com o fato de ver nossas capacidades se reduzirem, o medo de envelhecer, nas palavras de Blasco, “é uma preocupação lícita, e por isso também é lícito tentar entender quais são os processos moleculares responsáveis por esse decaimento da função das células, para assim poder prevenir o surgimento prematuro de doenças, mas também para ter maneiras, talvez mais eficientes, de tratar enfermidades como o Alzheimer e o infarto do miocárdio, entre muitas outras, cuja incidência aumenta dramaticamente à medida que envelhecemos”. Assim, a ideia que tanto a cientista como a jornalista querem deixar clara em seu livro é que não somos obrigados a envelhecer − e, além da estética, a ciência também está lidando com esse problema.
Nem tudo é DNA
Embora seja importante influir em nosso próprio DNA, para mudar as reações do nosso corpo a seu envelhecimento natural é preciso levar em conta que nem tudo está em nosso próprio genoma. Envelhecer também depende de nossos hábitos de vida − basta comparar uma pessoa fumante e sedentária com uma ativa, que cultiva um estilo de vida mais saudável. Nesse sentido, Blasco afirma: “Chegar saudável aos 70 anos tem um componente importante de hábitos de vida, e chegar aos 100 tem, sem dúvida, um componente genético importante”. Mas ela acrescenta que os problemas ambientais também podem afetar nossas células. Ou seja, enquanto não existe a fórmula perfeita da telomerase, podemos muito bem fazer coisas para cuidar de nossos telômeros, da mesma forma que cuidamos de nossa pele, por exemplo. “Há trabalhos que indicam que o estresse percebido encurta os telômeros. Além disso, também parecem ter efeitos negativos o fato de fumar ou ter sido fumante, assim como a obesidade. Por outro lado, o exercício parece estar associado a telômeros mais longos. O problema é que todos esses estudos são do tipo correlativo, e ainda desconhecemos os mecanismos moleculares pelos quais poderia estar ocorrendo isso”, reflete Blasco.
Resta então uma última pergunta por responder. Se parece que a ciência pode avançar para evitar o envelhecimento de nosso corpo, será que ela também pode evitar o envelhecimento de nossa mente? De uma perspectiva científica, a diretora do CNIO conclui que “o envelhecimento é um processo molecular e celular e ocorre em todo o nosso organismo ao mesmo tempo”, incluindo então o cérebro. O que acontece é que mente e cérebro não são exatamente sinônimos. Por isso, enquanto os cientistas continuam trabalhando para evitar que nossas células envelheçam, nós podemos continuar trabalhando para alcançar a eterna juventude de nossos pensamentos, de nossos sentimentos e de nossas ideias. Porque viver até os 140 anos depende dos cientistas, mas fazer isso sentindo-nos jovens depende de nós.





quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Eliane Brum / Morrendo na primeira pessoa

Oliver Sacks

Morrendo na primeira pessoa

Depois de se tornar interdita e silenciada no século 20, a morte ganha cada vez mais espaço em narrativas confessionais de notáveis e de anônimos

Em 24 de julho, Oliver Sacks, escritor, neurologista e um dos pensadores mais interessantes do nosso tempo, escreveu um novo artigo sobre o seu morrer, na página de Opinião do The New York Times. Em fevereiro, ele tinha anunciado que estava com câncer no fígado, sem possibilidade de cura, em um texto belíssimo sobre a vida, que foi traduzido e publicado no mundo inteiro. Agora, aos 82 anos, Sacks começa a se sentir nauseado e enfraquecido pela doença, mas não menos encantado e curioso com a existência. Ele segue esperando com alegria a chegada das revistas científicas, ansioso pelas descobertas sobre um universo que o fascina. Semanas atrás, ele estava no campo, longe das luzes da cidade, quando se deparou com a inteireza monumental do céu “polvilhado de estrelas”. Sacks concluiu: “Esse esplendor celeste de imediato me fez perceber o quão pouco era o tempo e a vida que me restava. Minha percepção da beleza do céu, da eternidade, era inseparável da minha percepção da transitoriedade – e da morte”. Contou então seu sentimentos aos amigos que o acompanhavam, Kate e Allen, dizendo: “Eu gostaria de ver esse céu novamente quando estiver morrendo”. E os amigos garantiram que fariam com que pudesse ver as estrelas uma vez mais.
Ao nos contar sobre o seu morrer, um morrer vivo, no qual a experiência de chegar ao fim é mais uma novidade para um homem curioso com o mundo e com a existência, Oliver Sacks tornou-se um dos sinalizadores de que algo fundamental está mudando na nossa época. E de forma bastante rápida, já que nosso tempo histórico é acelerado. Embora o silêncio sobre a morte, a doença e o luto ainda persista na vida cotidiana – e talvez seja ainda o que se impõe para a maioria das pessoas –, já não vivemos a morte “envergonhada” ou “clandestina” que se estabeleceu no século 20. O doente terminal que finge que não está morrendo, para não alarmar nem a família nem a equipe médica, pode estar começando a se tornar um espécime em extinção. A morte começa a ficar desavergonhada – e especialmente confessional, bem ao tom desse momento em que se narra tudo nas redes sociais.
A história humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em diferentes períodos históricos, olhou para a morte e lidou com ela. O trabalho mais completo sobre esse tema possivelmente ainda seja o do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), primeiro em um livro chamado História da morte no Ocidente e, depois, numa obra maior, intitulada O homem diante da morte. Nesta análise, o historiador mostra como, no século 20, a morte passou a ser escondida e calada. Não mais um evento público, mas uma espécie de não acontecimento. Na sociedade tecnicista era necessário que a morte fosse ocultada entre as paredes de um hospital, o mais asséptica possível, e imediatamente esquecida. Essa mentalidade ajuda a explicar por que, até hoje, alguém que perde aqueles que ama tem legalmente um tempo curtíssimo para se ausentar do trabalho e começar a elaborar o seu luto. Quando se espera que a ciência prolongue a vida a qualquer preço e a juventude torna-se um valor em si, a morte passa a ser um fracasso que deve ser escamoteado.
No século 20, o fim da vida tornou-se algo a ser ignorado e, assim, não precisava nem ser superado, já que o melhor seria fingir que nem mesmo tinha acontecido. “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras”, escreveu Philippe Ariès. A morte tornara-se quase contagiosa, e aquele que morria o portador de uma doença/má notícia cuja contaminação deveria ser evitada a todo custo pelos vivos.

No século 20, a morte se tornou tão obscena quanto o sexo na era vitoriana; e o luto, tão secreto quanto a masturbação
Outro pensador, o antropólogo britânico Geoffrey Gorer (1905-1985), escreveu um ensaio sobre o que chamou de Pornografia da Morte. “Hoje a morte e o luto são tratados com o mesmo pudor que os impulsos sexuais há um século”, afirmou. A interdição do sexo, na era vitoriana, tinha sido substituída pela interdição da morte, no século 20. A morte teria se tornado obscena e feia e, portanto, deveria ser escondida. E o luto, circunscrito ao âmbito privado, havia se tornado tão secreto e individual como a masturbação.
Como acontece tantas vezes, a arte antecipou a interpretação da sua época. Essa mudança no olhar sobre a morte consolidada no século 20 já podia ser detectada, no final do século 19, na pequena obra-prima de Tolstói: A morte de Ivan Ilitch. Em um seu livro Educação para a morte – Temas e reflexões, a psicóloga brasileira Maria Júlia Kovács assim analisa a novela do escritor russo: “Ninguém quer falar sobre o que está acontecendo com o doente, nem ele próprio, que sofre, geme, mas nada diz. Os familiares também sofrem, não sabem o que fazer, mas fingem que está tudo bem”. Apesar de todos tentarem banalizar o acontecimento, transformando-o num não acontecimento, o doente, embora nada diga, sabe o que vive.
O século 21, este que testemunhamos nascer, começa a engendrar um outro olhar sobre a morte, cujos sinais já podiam ser percebidos nas últimas décadas do anterior. A história, como se sabe, é movimento e conflito. O próprio surgimento do conceito de “Hospice” e da prática dos “cuidados paliativos”, nos anos 60 do século passado, com a ideia de que cuidar é mais importante do que curar e de que é preciso escutar aquele que vive o seu morrer, começou a colocar em xeque o silenciamento da morte.
Hoje, não são apenas as séries de TV e os filmes no cinema que passaram a abordar a morte, a doença e o envelhecimento com frequência cada vez maior. Neste novo olhar sobre o fim da vida, a internet, com as redes sociais, tem desempenhado um papel central e crescente. Se a literatura nunca deixou de ter a morte como tema, o morrer vem tornando-se uma narrativa confessional, de não ficção, escrita na primeira pessoa do singular.
Oliver Sacks não foi o primeiro a escrever sobre o fim da vida neste século. Longe disso. Em 2005, a jornalista Joan Didion publicou um livro, O ano do pensamento mágico, em que contava sobre a morte do marido e o seu luto. Logo no início faz uma síntese sobre a condição humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Essa mistura de narrativa confessional com investigação jornalística entrou para a lista dos mais vendidos em vários países, inclusive no Brasil. Mais tarde, em 2011, Didion lançaria Noites Azuis, sobre a morte da única filha, seu próprio envelhecimento e sua solidão. Este último livro é a história da mulher que restou, a narrativa de quem se descobriu sozinha para testemunhar o próprio fim. Portanto, um relato ainda mais duro e perturbador, que parece ter sido mais difícil para os seus leitores. Didion agora se vê às voltas com formulários de hospital, onde fazem a ela uma pergunta que não pode responder: quem chamar numa hora de emergência? Já não há.

Susan Sontag, que morreu sem se reconciliar com a morte, escreveu sobre como o câncer foi a morte “suja” do século 20
Em 2008, o escritor e analista político David Rieff lançou um livro sobre como foi testemunhar o fim da vida da mãe, a pensadora americana Susan Sontag, morta pelo terceiro câncer de sua trajetória quatro anos antes, aos 71. David deu à obra um título pungente: Nadando em um mar de morte – memórias de um filho. Susan Sontag publicou livros fundamentais sobre o tema. Em Metáforas da doença, escrito quando ela já tinha lidado com um câncer no seio e o superado, Sontag analisa como a tuberculose foi a morte romântica, no século 19, e o câncer, doença-símbolo do século 20, a morte “suja”. Defende também que o câncer seja tratado como uma doença, loteria genética, e não como uma ideia que chegou a ser muito popular e ainda persiste em alguns meios, de que a pessoa teria “feito” o seu câncer ou o “atraído”, por repressões sexuais e questões psicológicas mal resolvidas.
Susan Sontag, nas palavras do filho, ao mesmo tempo sentia pavor da morte e obsessão pela morte. Morreu sem jamais se reconciliar com a ideia de morrer. Mesmo sendo informada pelos médicos que um transplante de medula teria escassas chances de êxito no seu caso, ela escolheu fazê-lo. Quando soube que a cirurgia fracassara, estava presa a 300 metros de tubos, por onde eram injetadas as substâncias que a mantinham viva, e perguntando o que mais os médicos podiam fazer por ela. Morreu coberta de hematomas e feridas, esperando “vencer” o câncer, sem se despedir de ninguém e sem permitir que se despedissem dela. Foi a sua escolha, só ela poderia fazê-la. “Era impossível até eu dizer que a amava, porque fazer isso teria significado dizer: ‘você está morrendo’”, escreveu David Rieff, num livro que enfrenta as perguntas espinhosas sobre o lugar de um filho diante do morrer da mãe, na singularidade de cada história, sempre particular e irrepetível.
Mortality, aqui no Brasil traduzido como Últimas palavras, é baseado nas colunas publicadas na revista americana Vanity Fair pelo escritor, jornalista e grande polemista Christopher Hitchens, um feroz defensor do ateísmo que se manteve fiel a suas ideias até o fim. Ele morreu de câncer em dezembro de 2011, aos 62 anos, e o livro foi lançado em 2012. Com o mesmo desassombro e a ironia que sempre caracterizaram seus artigos, Hitchens discorreu sobre a vida no que chamou causticamente de “Tumorlândia”.
No estilo que o fez angariar tanto admiradores quanto inimigos ao longo de uma extensa coleção de polêmicas, ele sugeriu a criação de um “Manual de Etiqueta do Câncer”, destinado “aos doentes e também aos simpatizantes”. Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”. É um livro tão vivo este em que Christopher Hitchens escreve sobre o seu morrer que, ao terminá-lo, sentimos imensa saudade do seu autor.

O livro de maior sucesso deste século 21 transformou seu autor numa “celebridade” antes de sua morte
Mas o marco deste início de século, na escrita sobre a morte e especialmente sobre o câncer, é possivelmente o livro de Randy Pausch. Nenhuma obra sobre o tema foi tão festejada e popular quanto A lição final. E não por acaso. Morto de câncer pancreático em 2008, o professor universitário Randy Pausch construiu uma narrativa bem ao gosto da cultura americana, marcada pela divisão entre losers(perdedores) e winners (vencedores). A sua era uma escrita de “superação” da adversidade, da “batalha” contra a doença, uma jornada do herói adaptada ao tão difundido discurso no senso comum e nos meios médicos do “guerreiro que lutou até o fim a guerra contra o câncer”. Randy morreu, mas como um “vencedor”, já que havia tornado seu câncer um “case” de sucesso. Não pôde “vencer” a doença, mas, naquilo que parecia essencial para ele e para a sociedade em que vivia, vencera. Naquele momento, era bastante revelador que, depois de tanto silêncio, a mais comentada era uma morte “bem-sucedida”, materializada num best-seller internacional que rendeu milhões de dólares e transformou seu autor numa celebridade.
Tudo indicava que esta poderia ser a linha narrativa preponderante do nosso tempo: a morte a serviço da superação e do sucesso, da indústria e do culto a celebridades. Falada, sim, mas apenas para mais uma vez encobrir a dor e os conflitos da condição humana. Não é o que tem acontecido, como provam a escrita de Christopher Hitchens, de Joan Didion e do próprio Oliver Sacks, entre vários outros. Não há uma forma “certa” nem “errada” de falar sobre a doença e a morte, seja a própria ou a de quem amamos. Do mesmo modo que não há nenhuma narrativa acima de um debate honesto sobre o que diz de sua época e sobre como a influencia, mesmo sendo seu autor alguém que está morrendo.
A morte é lambuzada de vida e de humanidades. Há tantas formas de pensar sobre ela quanto vivedores e morredores. A beleza, mesmo quando brutal, é quando essas narrativas são capazes de enfrentar a complexidade deste momento, com todos os sentimentos ambíguos e as contradições que o povoam. Seria uma pena, afinal, reduzir um momento tão abissal quanto inescapável a um manual pobre do “morrer bem”. Como na frase que adoro: “A morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.

“Hello! Eu tenho câncer!”, disse a comediante Tig Notaro em um stand-up histórico
Minha expectativa de que estamos num novo momento no que se refere ao olhar sobre a morte aumentou ao acompanhar a história de Tig Notaro, 44 anos. Comediante destand-up, a americana Tig pensava em ter um filho, em 2012, quando primeiro foi atingida por uma infecção que quase a matou. Logo depois da alta do hospital, perdeu a mãe, que nas suas palavras era a pessoa que mais a enxergava, compreendia e incentivava. Tig descobriu-se sem chão. Mas não era tudo. Em seguida, ela soube que tinha câncer no seio.
Tig estava às vésperas de um show. E agora, deveria fazê-lo? A humorista pensou que, afinal, depois de tudo o que acabara de viver, era muito ridículo ter ainda por cima um câncer. Subiu ao palco e fez um espetáculo considerado histórico.
Hello, good evening, hello! Eu tenho câncer. Como vão vocês? Todo mundo se divertindo? Fui diagnosticada com um câncer...
Ainda que possa parecer apenas bizarro, quando aqui reproduzido, assistindo ao show percebemos que Tig conseguiu fazer algo sofisticado e profundo com o câncer e o medo de morrer: conseguiu fazer humor. Ela não negava a dor da sua condição, mas a usava para produzir arte, reflexão e... riso. Sem que tivesse planejado essa performance, sua carreira deu um salto. Logo Tig estava na capa de revistas, em talk shows na TV.
Neste ponto, eu temi que ela poderia se tornar uma espécie de “celebridade do câncer” e nunca mais pudesse falar de outra coisa. Mas, se o que fez com a doença a colocou num outro lugar, e este é um fato, o caminho de Tig parece ser o de colocar o câncer, o luto pela mãe, os fracassos reprodutivos e também o sucesso no contexto de uma vida com um pouco de tudo, às vezes bastante de alguma coisa, mas não monotemática.
Essa escolha, pelo menos, é o que aparece num documentário sobre o seu percurso, lançado em julho deste ano pelo Netflix, chamado apenas “Tig”. A dela é uma história em aberto, como qualquer outra, e a vimos frágil e confusa diante do futuro. Acompanhamos a artista em seu dilema sobre fazer ou não um tratamento reprodutivo, na tentativa de ter um filho, e arriscar-se a aumentar as chances de o câncer voltar por conta dos hormônios; compartilhamos sua ansiedade para que o embrião vingue numa barriga de aluguel, assim como o seu amor por uma outra mulher, que num primeiro momento a rejeita, porque até então só tinha tido relacionamentos heterossexuais. E testemunhamos também sua insegurança sobre com que material trabalhar em seus shows, depois de ter alcançado um nível tão paradigmático ao levar o câncer para o palco.
Mas talvez o momento-síntese da narrativa de Tig sobre o câncer e a possibilidade de morrer seja uma cena que não está no documentário, apesar de mencionada. Em novembro de 2014, Tig tirou a camisa no palco, mostrando a ausência do que a doença lhe arrancou, numa mastectomia dupla sem cirurgia de reconstrução, e as suas cicatrizes. Até aí, poderia ser apenas uma espécie de “performance de choque”, um truque para ganhar a plateia. Depois do impacto inicial, porém, o público acolheu e superou essa nudez assinalada pela doença e pela condição humana, graças ao talento de Tig.
Como disse o crítico Jason Zinoman: “Tig Notaro mostra que o humor não apenas consegue transformar tragédia em comédia, como também é capaz de desviar a atenção das pessoas da imagem mais vendida e objetificada da cultura popular: o corpo feminino nu”. Ali estava alguém dolorosa e alegremente viva que não negava suas marcas. Essa transcendência coletiva foi um grande momento de vida, com toda a incerteza e a fragilidade que é viver como um ser que se sabe para a morte.

“E o meu direito de não querer viver?”, pergunta a leitora
Minha aposta é de que o mais fascinante deste novo olhar sobre a finitude humana possivelmente ainda virá. E virá não por aqueles que já têm um lugar de escuta, mas pelos anônimos que começam a produzir narrativas na internet sobre o envelhecimento, a doença e a morte. Assim como as redes sociais vêm produzindo tanto sobre tudo – e não só discursos de ódio –, também autorizaram um dizer que revela como cada um se coloca diante da mortalidade. Se a internet permitiu que aqueles que comungam de desejos sexuais considerados fora dos padrões se encontrassem e pudessem viver sua expressão de forma consensual, entre adultos, também começa a se estabelecer como um lugar de confissão e de troca sobre luto, perdas e morte. Um espaço para narrativas múltiplas, para viveres múltiplos do morrer. Quando uso a palavra “fascinante”, não estabeleço se é bom ou mau, apenas que estamos diante de algo instigante e talvez surpreendente, exatamente porque contraditório.
Meses atrás, a carta de uma leitora de 78 anos no Painel do Leitor daFolha de S. Paulo me impactou. Ao discordar da abordagem de um artigo sobre o desejo e o envelhecimento, ela assim se colocou: “Quem leu Simone de Beauvoir vai me entender. São inócuas as ‘cenouras’, surpresas ou prazeres externos quando você tem a noção de que, por dentro, está apodrecendo aos poucos. Chegar a esta constatação é de uma crueldade ímpar. Não há sorriso de neto que consiga esvanecê-la. Acima de tudo, não quero mais lidar com essas mazelas e, para isso, estou em plena e ocupada fase de desapego. Para mim, chega. E o meu direito de não mais querer viver? Onde fica?”.
O que importa aqui não é concordar ou discordar, até porque cada um sabe de sua dor e de suas escolhas. O fato é que já é possível dizer e já existe espaço para ser escutado, mesmo que o que você tenha para dizer esteja fora do senso comum e da publicidade sobre a “terceira idade”, fora do manual e dos discursos edificantes ou das “lições de vida” bem comportadas.
Em um artigo interessante sobre esse fenômeno das narrativas de morte em tempo real, o jornalista Lee Siegel lembra do depoimento de uma mulher na coluna Private Lives (Vidas Privadas), do The New York Times, marcado por uma crueza sem qualquer pudor: “Por falar de perdas, não perdi somente meu marido e minha vida, perdi também os meus cabelos. Recentemente um policial me mandou encostar o carro por ficar parada. O tráfego estava sendo redirecionado, mas eu havia congelado e retinha uma longa fila. Levantei as mãos, esperando ser algemada, dizendo que não há nada que você possa fazer comigo que seja pior do que já foi feito. Ele disse: ‘Que história é essa, madame?’. Eu disse: ‘Não tenho marido, não tenho amigos, não tenho cabelo’”.

“Vamos falar sobre o luto?” é uma das plataformas lançadas na internet em 2015
O mesmo Times tem um outro espaço, The End, com depoimentos sobre o morrer, o luto e sobre o cuidar de quem tem uma doença. No Brasil, a Folha de S. Paulo criou, em outubro de 2014, um blog chamado Morte Sem Tabu, produzido pela dramaturga Camila Appel. Por todo o país, usando as redes sociais, surgiram e surgem grupos para compartilhar experiências de perda, como o Mães Sem Nome, que reúne pessoas de diferentes classes sociais e histórias de vida: “Quando um (a) filho (a) perde seus pais fica órfão (ã). Quando perdemos o marido/esposa ficamos viúvos (as). Quando a mãe perde seu filhos, não tem nome”. Em junho deste ano, sete amigas que perderam pessoas que amavam lançaram uma plataforma na internet para a escuta deste momento tão profundo e em geral solitário: “Vamos falar sobre o luto?”. Os muros de silenciamento rompem-se por todos os lados.
Em 2008, acompanhei como repórter os últimos 115 dias de vida de uma mulher com um câncer incurável. Também testemunhei por meses a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos de São Paulo, liderada por uma médica especialíssima, Maria Goretti Maciel, na qual se acreditava mais na largura da vida do que no seu comprimento: mais importante do que prolongar a vida a qualquer preço, em geral um preço alto, era garantir a qualidade da vida que restava. Assim como mostrava-se fundamental respeitar e acolher o modo como cada um escolhe viver esse momento, sem dogmas nem julgamentos. Não era um lugar em que a humanidade era dividida entre “perdedores” e “vencedores”, nem o tratamento da doença, em geral câncer, era encarado como uma “guerra”. O fundamental era garantir as condições para que cada um pudesse escolher como viver o tempo que tinha, sem tratamentos inúteis, dolorosos e invasivos, cercados por quem amava ou mesmo solitário, caso este fosse o seu desejo. Do como viver a sua morte, só sabe aquele que a vive.
Naquela ocasião, ao decidir contar a morte em geral silenciada, aquela causada pela doença e pela velhice, calada exatamente por ser a da maioria – e não a morte violenta, provocada por crimes, acidentes e catástrofes, mais comum à narrativa jornalística –, fui seguidas vezes acusada de “mórbida”. Eu retrucava, dizendo que era o contrário. Mórbido era aquilo que nos paralisava, o medo que não podia ser nomeado ou pronunciado.
Ao calarmos sobre o envelhecimento, a doença e a morte, perdíamos uma oportunidade insubstituível para pensar sobre a vida – e em especial sobre o tempo. Eu tinha sido transformada para sempre por uma frase de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que me permitiu contar o seu morrer, num enorme ato de confiança. Logo no nosso primeiro encontro, ela, que acabara de se aposentar e tinha começado a viver aventuras até então adiadas, disse: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Sou imensamente grata por esta frase, que multiplicou a largura da minha vida.
Hoje, passados menos de dez anos, acredito que não seria mais acusada de “mórbida”. Não tanto, pelo menos. Homens e mulheres anônimos começaram a dizer de si de forma desassombrada. Não sei o que escutaremos nem o quanto esses tantos dizeres vão influenciar nossa forma de encarar a finitude de nossa condição. Mas essa possibilidade de falar e de ser escutado também sobre o envelhecimento, a doença, a perda e a morte me encanta. Espero apenas que continue existindo espaço não para o silenciamento, esse ato que nos reprime e aniquila, mas para o silêncio daqueles que preferem se recolher dentro de si e da casa e nada dizer. Que falar e “confessar” não vire um novo imperativo ou dogma. Que exista espaço para todas as formas de ser, viver e morrer.
Mas a interrogação que mais me move neste momento é: o que diremos agora que podemos dizer?
Escutar o outro é arriscar-se ao outro. É viver.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Paraguai impede o aborto de uma menina violada de 10 anos e 34 quilos


Paraguai impede o aborto 

de uma menina violada de 10 anos e 34 quilos




No país, só é legal interromper a gravidez se houver risco para a vida da mãe

    Protesto no México para exigir a despenalização do aborto na América Latina. / EFE
    Ela tem 10 anos, pesa apenas 34 quilos e mede 1,39m, mas está grávida de cinco meses e vai ser mãe. Uma menina estuprada pelo padrasto em Luque, localidade vizinha a Assunção, capital do Paraguai, será forçada a dar à luz se a pressão internacional não impedir. No Paraguai não há aborto, a não ser quando a vida da mãe corre perigo, algo que só foi aplicado uma vez, em 2009, por uma gravidez ectópica e depois de muita pressão. Diversas organizações humanitárias tentam convencer o Governo paraguaio de que a vida da menina corre perigo, mas até o momento o Executivo rechaça veementemente o aborto e pretende obrigar a menina, separada agora da família, a ter o filho.
    “É um atentado contra os direitos humanos”, queixa-se Elba Núñez, da ONG CLADEM. “Formalmente este é um Estado laico, mas há muita pressão de setores conservadores”, afirma María José Garcete, da Anistia Internacional do Paraguai, ambas por telefone desde Assunção. As duas organizações apoiam a mãe, que foi presa por suposta cumplicidade com o padrasto, agora foragido, nos abusos à menina. A mãe, entretanto, denunciou no ano passado os abusos à filha, que então só eram toques íntimos, mas ninguém os cessou.
    O ministro da Saúde, Antonio Bairros, que antes de passar à política era médico pessoal do presidente, o conservador Horacio Cartes, descartou por completo o aborto. “Se era preciso abortar, isso deveria ter sido feito antes da vigésima semana. A gravidez não será interrompida. Descartamos por completo o aborto”, respondeu à imprensa local. O caso não é novo. Segundo as estatísticas do hospital de Clínica, no ano passado houve quase 700 casos de meninas entre 10 e 14 anos que deram à luz. A maioria, segundo as ONGs consultadas, são vítimas de violações. A nenhuma delas foi permitido abortar, ao menos não oficialmente. Nunca se aplicou com uma menina grávida o artigo 109.4, que permite interromper a gravidez em caso de risco para a vida da mãe. A economia paraguaia cresceu muito nos últimos anos, mas a pobreza está muito disseminada e as gestações em meninas e adolescentes continuam sendo algo muito habitual.
    A juíza encarregada do caso e que se ocupa da custódia da menina, Pili Rodríguez, do tribunal de infância de Luque, afirmou por telefone ao EL PAÍS: “Nossa Constituição protege a vida desde a concepção. Não se conhecem no Paraguai casos de médicos que tenham interrompido uma gravidez de meninas. Até agora os informes médicos não falam de risco para a saúde da menina. São os médicos que decidirão, não o tribunal. Nós devemos proteger a menina, posto que seu pai está ausente há muito tempo, a mãe está na cadeia e o padrasto foragido. Nos ocupamos disso. O que temos de fazer é rever o sistema de prevenção para que isso não volte a ocorrer”, explica. O aborto não parece estar em cima de nenhuma mesa.

    A pressão internacional é muito forte, mas o Governo paraguaio não parece disposto a ceder
    A pressão internacional, uma vez que o caso foi divulgado, é muito forte, mas o Governo paraguaio não parece disposto a ceder. As ONGs reclamam que se crie uma junta médica independente que avalie os riscos para a vida da menina, que elas estimam evidentes por sua escassa compleição, com um corpo para nada preparado para dar à luz. A gravidez já está avançada (cinco meses), por isso os ativistas reclamam que se estabeleça um protocolo para proteger a vida da mãe.
    “O Estado paraguaio falhou. A mãe foi até quatro vezes denunciar possíveis abusos à filha. E foi ela quem, há 13 dias, levou a menina ao médico. O primeiro que a viu falou dos riscos para a vida e por isso ela reclamou a interrupção da gestação para salvar a vida da filha. A reação do Estado foi criminalizá-la e colocá-la na prisão, onde teme por sua vida porque as demais presas a culpam. Todo mundo se pergunta por que continuava vivendo com aquele homem, mas ela também é vítima de abusos e sabemos como são estas situações. A menina agora está separada da família, só pode ver suas tias por duas horas, é uma tortura tremenda”, se indigna Elba Núñez.
    “Deixaram passar 13 dias e agora dizem que é tarde demais. Responsabilizamos o governo paraguaio por qualquer coisa que possa acontecer à menina, ela é muito frágil, isso atenta contra a convenção dos direitos da criança que o Paraguai assinou”, insiste a ativista. No momento, a pressão cresce e tudo indica que essa junta independente que as ONGs reclamam será criada, mas ninguém aposta que o resultado será aceitar um aborto que no Paraguai continua sendo um anátema absoluto, inclusive em casos tão extremos como esse.