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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cristina Marcano / Un extravio chamado Venezuela


Confronto entre a Guarda Nacional e manifestantes em um bairro rico de Caracas, em 2014. 


Um extravio chamado Venezuela

Escritora narra, em primeira pessoa, a rotina dos que vivem entre o caos e o desafio de seguir adiante


CRISTINA MARCANO
Caracas 24 MAI 2016 - 14:19 CDT

“O caminho reto estava perdido”. Dante, Divina Comédia



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O momento em que seu olhar se depara pela primeira vez com um fuzil na entrada de um supermercado é inesquecível. Você está desprevenida pensando no almoço e, de repente, é surpreendia por esse longo cano preto tão fora de lugar. A minha primeira vez foi em uma manhã ensolarada de 2012. Talvez o soldado que exibia a arma também se lembre. Ele parecia estar desconfortável, como se estivesse estreando nessa missão. Franzia a testa em uma vã tentativa de endurecer o seu rosto de menino

Tinha sido enviado para lá para evitar tumultos. Os clientes se alinhavam em uma fila, como formigas, para comprar o produto mais comum de nossa dieta: farinha de milho para fazer arepas. Outro soldado, tão jovem como ele, cuidava da retaguarda naquele enorme mercado localizado em frente uma das estações de metrô mais movimentadas de Caracas (Venezuela).
Atravessei o parque do Leste, um oásis de 82 hectares de onde a vista do Ávila –uma montanha muito verde ao norte da capital venezuelana– é tão esplêndida que recarrega a energia e o otimismo.
Uma hora depois, ao retornar, a fila permanecia tão longa quanto, como se o tempo tivesse parado. Os soldados no mesmo lugar, na mesma posição. A fila estava do mesmo tamanho, enquanto alguns clientes saiam com sua carga de quatro quilos de farinha dentro de um saco plástico branco. À época, aquilo não era tão comum. Começava a acontecer esporadicamente.
Apesar da tensão política que nos agoniava há muito tempo, ainda levávamos uma vida bastante normal, dentro do padrão latino-americano. Nossa principal preocupação era a violência, essa epidemia implacável que nos encurrala. O maná venezuelano era vendido a quase 100 dólares por barril e 98% dos venezuelanos comiam três vezes ao dia, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Aquele encontro inesperado com o fuzil no mercado foi, no entanto, um mau presságio, o prólogo antecipado de um livro que estava por ser escrito. O presidente Hugo Chávez tinha vencido sua última reeleição há poucas semanas, mas perdia a batalha contra o câncer. Todos nós sabíamos que ele estava morrendo. Assim como morreria em breve a fantasia do petróleo. Assistíamos ao final de uma utopia.

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Meninos fantasiados no Carnaval de 2014, um ano depois da morte de Chávez. NATALIE KEYSSAR
É provável que tenha feito calor demais durante o Carnaval de 2014. Ou que os uniformes camuflados fossem daquele poliéster que raspa a pele. Ou, simplesmente, que os meninos de boina vermelha tenham ficado tempo demais na mesma posição, sobre a caminhonete cheia de balões vermelhos e fotos de quando Chávez era candidato presidencial. O fato é que esses pequenos, fantasiados como o herói de seus pais, estão entediados até a morte, alheios a seu papel na construção do mito.
O desfile transcorre ao ritmo do samba no Paseo de Los Próceres, em frente ao maior forte militar da Venezuela, e o ministro do Turismo celebra a operação do feriado –“a festa mais legal”–. A atmosfera é de tensão, desafio e medo.
O país está há duas semanas em ebulição. O barulho dos fogos de artifício se confunde com o dos tiros. O sol mais radiante, com a névoa mais escura. Os protestos contra a insegurança, a inflação e a escassez, iniciados pelos estudantes e liderados por um setor da oposição, estão no auge. Há uma batalha feroz em várias cidades. E se multiplicam –espontânea ou artificialmente– as queixas que nos dividem.
Enquanto se comemora em Los Próceres, não param de cair bombas de gás lacrimogêneo, balas e golpes contra os manifestantes. Nem pedras e coquetéis molotov contra a polícia e os soldados que chegam às zonas de combate com tanques e motocicletas, às vezes acompanhados de civis. Há ruas bloqueadas por lixo, paus e pneus. A lista de feridos ultrapassa 250. A de detidos supera mil.
Policial da tropa de choque nas manifestações de 2014, no bairro abastado de Altamira, em Caracas. NATALIE KEYSSAR
Ainda não se acabou de assentar a terra nas sepulturas de 18 vítimas. Jovens que estavam na linha de frente ou que fugiam da polícia, universitários de rostos apagados por espingardas, policiais e soldados baleados, algum passante com péssima sorte, uma grávida desprevenida, motoristas surpreendidos por barricadas. Pessoas que estavam a favor ou contra o governo, mas que nunca pensaram que isso lhes custaria a vida.
Em um dia passamos do Carnaval mais longo e delirante que já tínhamos vivido à comemoração do primeiro aniversário da morte do Comandante Supremo e Eterno, com um programa de 10 dias para lembrar o Cristo dos pobres. Assim é descrito por seu herdeiro, o presidente Nicolás Maduro.
A luta nas ruas não acaba e se prolonga por várias semanas. Até somar 43 mortos, mais de 800 feridos, 3.351 presos e dezenas de denúncias de tortura. A Procuradoria admite 183 violações de direitos humanos e 166 de tratamento cruel. Por esses dias, tudo parece preto e branco. Mas nada é tão uniforme como alguns querem fazer parecer. Enquanto um soldado bate ou atira para matar, outro aponta a arma e pisca um olho para que você fuja rapidamente.
Que tão perigosa é essa belíssima jovem que leva uma etiqueta de "estudante venezuelana" no coração? Que tão feroz é a agente de polícia que humaniza sua vestimenta de choque pintando os lábios de cereja? Quais são os seus antagonismos reais, suas diferenças irreconciliáveis? Será que as duas não compartilham esse estado perene de frustração e medo em que todos nós vivemos por causa dos grandes recordes registrados na Venezuela? Nada menos do que a maior inflação do mundo e a criminalidade mais mortal da América do Sul.

3

Amarelis López desperta na escuridão, acende a luz e se veste rapidamente. Hoje é o seu dia. Às 4h da manhã, quando chega ao supermercado, outros caçadores esperam no estacionamento. A visão de um fuzil não surpreende ninguém. Faz parte da paisagem. A enfermeira, com paciência evangélica, se dispõe a esperar de pé enquanto for necessário.
Uma estudante em uma manifestação na cidade de San Cristóbal, durante os protestos de 2014. NATALIE KEYSSAR
O Governo estabeleceu turnos, de acordo com o último número da carteira de identidade, para a compra de 50 produtos básicos que são subsidiados e cuja distribuição é controlada pelos militares. Na sexta-feira, por exemplo, é o dia daqueles que têm documentos terminados em 8 e 9. Além disso, antes de pagar, é preciso colocar o dedo sobre uma máquina de leitura de impressões digitais, como na imigração dos Estados Unidos, para confirmar que você realmente é você.
Fazer uma compra de produtos básicos se tornou um pesadelo, mas se pode facilmente comprar 453 variedades de vinho, 28 de uísque escocês e 20 de champanhe se você tem muito dinheiro. Ou uma mostarda Dijon com geleia de laranja da La Grande Épicerie de Paris.
Passaram-se três anos da morte de Chávez. Algumas pessoas carregam seu rosto ou sua assinatura tatuados no corpo. O conflito não acaba. Seus fiéis sentam a falta dele mais do que nunca.
Quem diria que debaixo dessa superfície maltratada, onde as pessoas esperam horas para comprar farinha, onde se rouba a comida das crianças de uma escola primária, há um verdadeiro oceano de petróleo? As maiores reservas do planeta Terra: 296,5 bilhões de barris. E a quarta maior de gás. Minas de ouro suficientes para que até mesmo as Forças Armadas explorem uma parte. E diamantes e coltan.
Somos um paradoxo amargo: o país rico mais pobre do mundo. Cegado por essa sorte que caiu do céu, sempre acreditando que as vacas gordas são eternas. O boom desinflou. A chuva de petrodólares cessou. Outra vez. Como nos anos 1980, quando um presidente assumiu o cargo alertando que recebia "um país hipotecado". Estamos tão arruinados que dá raiva. Na pior falência que já experimentamos.
Menino brinca em um parque no dia das últimas eleições. NATALIE KEYSSAR
As receitas –96 de cada 100 dólares provêm da exportação de petróleo– já não são suficientes para continuar importando 70% do que comemos, a grande maioria dos medicamentos e milhares de outras coisas. Passamos da abundância à tragédia de ter que vagar de comércio em comércio farejando alguma presa, às vezes deixando a farmácia com um nó na garganta e de mãos vazias.
Cinco horas depois de chegar, Amarelis sai chateada, com dois quilos de leite em pó. Nada mais. Na sexta-feira passada não conseguiu nada regulado. "Não tenho arroz, nem farinha, nem pão, nem café. Estamos tomando café da manhã com cazabe [biscoito de farinha de mandioca]. Você acha que isso é justo?", exclama explosivamente, ignorando as lições de seu Senhor. Ele entenderá que sua ovelha está há muitos meses nesse suplício.

4

O Governo atribui a escassez e a inflação, que em 2015 atingiu o recorde histórico de 180,9%, a uma guerra econômica do imperialismo. E a oposição culpa o governo. Mas mesmo as explicações mais intelectualizadas dos economistas não servem de alívio para a maioria dos 30 milhões de venezuelanos que empobrecem vertiginosamente.
Belkys Márquez tem quatro filhos, com idades entre 6 e 14 anos. Trabalha como caixa de banco. É esse tipo de pessoa que sempre sorri quando fala. Exceto quando conta, com algum constrangimento, que não pode jantar porque a comida não é suficiente. Três em cada 10 venezuelanos estão na mesma dieta forçada. São 13,4% os que comem uma vez por dia e apenas 53% podem fazer as três refeições. Isso é o que revela uma pesquisa realizada pelo Instituto Venezuelano de Análise de Dados (IVAD) em abril e divulgada na imprensa local.
Mulher carrega pacotes de farinha para arepas, um dos produtos básicos em falta. NATALIE KEYSSAR


O salário mínimo –que aumentou, por decreto, em 50% até agora este ano— é realmente mínimo em comparação com a inflação dos alimentos: 254,43% em um ano (setembro de 2014 a setembro de 2015), segundo o Banco Central. Belkys ganha 501,6 bolívares por dia, mais 664 de bônus de alimentação: 1.165 bolívares por dia. Isso é o que custa uma arepa com queijo na rua. No total, 33.636 bolívares mensais, cerca de 110 reais no mercado negro.
Também é minúsculo em relação ao custo da cesta básica, que inclui 58 produtos para uma família de cinco membros, e em março passado custava 142.853 bolívares (mais de quatro vezes sua renda atual).
Esse preço também é inacessível para muitos profissionais de classe média, médicos, advogados, engenheiros. O salário diário de um professor universitário, com doutorado em Columbia, equivale a três cervejas.
Algumas vezes Belkys teve que recorrer aos bachaqueros, como eles chamam os revendedores em referência a bachaco, uma formiga grande e voraz. Subornando a quem for preciso –militares, distribuidores, empregados—, eles compram e vendem produtos regulamentados até 40 vezes mais caros. Um quilo de arroz, de 25 bolívares por 1.040; um de farinha, de 19 por 800; uma caixa de ovos (30 unidades), de 420 bolívares por 2.200. Em qualquer fila são reconhecidos de imediato. Vão em grupos, com ar ameaçador, e estão dispostos a te mostrar uma faca se você reclamar. Eles se adiantam, entrem na frente e acabam comprando mais do que todo mundo. Os bachaqueros vendem seus produtos abertamente nas calçadas de áreas populares. Alguns têm, até mesmo, serviço de entrega em domicílio para a minoria que pode pagar.
As pessoas chegaram ao limite. Nervosas –encolerizadas– é a palavra mais ouvida. E explodem a intervalos cada vez menores. Sem importar que haja fuzis à vista, saem da fila, amontoam-se na porta, arremetem e entram, passando por cima dos vidros quebrados e de quem ficar no caminho. Na Semana Santa aconteceu 21 vezes. Em média, foram três saques por dia. O relato é do vice-presidente, Aristóbulo Istúriz. Os protestos de rua se multiplicam. Contra a escassez, por melhores salários, contra os apagões e a falta de água. A exaustão é sentida em cada esquina. A exaltação faz centenas de militares ficarem nas ruas.
A situação é tão extrema que o chefe do Ministério da Alimentação, um general do Exército, percorre áreas populares com sacolas de comida (arroz, farinha, macarrão, frango, óleo), à frente de uma operação de venda de casa em casa. O Estado tem uma rede de 22.000 pontos de armazenagem, distribuição e expedição de produtos. Quando voltaremos a ir normalmente ao mercado?

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Na Venezuela há as pessoas mais afetuosas. E também os criminosos mais frios e impiedosos. E seres que sofrem mutação nesse caldo de punição e impunidade, tão fora do usual, tão inédito, num Governo com uma presença militar tão forte e tão extensa. Seres como os que sobem nas redes sociais vídeos de ladrões em chamas, vítimas das mais macabras representações de Fuenteovejuna [localidade espanhola palco de um linchamento no século 15]. Nos quatro primeiros meses deste ano houve 74 linchamentos, em que metade dos delinquentes morreram, segundo o Ministério Público. Média de mais de 18 por mês. Fartos de pedir segurança e justiça, sem conseguir, entre e 60% 65% da população aprova a barbárie, segundo pesquisa do Observatório Venezuelano da Violência (OVV).
O comissário Rafael Graterol, em seu escritório no perigoso bairro de Petare. NATALIE KEYSSAR
Sobrevivemos há tanto tempo com tanto medo. Num estado de alerta permanente, com um olhar estroboscópico. Enclausurados atrás de muros e cercas sem fim. Preocupados com um enxame de motociclistas anárquicos, sem conseguir distinguir quais estão armados e dispostos a estourar os miolos de quem não lhes entrega o celular, a carteira ou o carro.
Somos jogadores involuntários de uma tétrica loteria que a cada meia hora despacha alguém desta para a melhor. Por dia, 52. Por mês, 1.565.
Um morro de 4.696 no primeiro trimestre deste ano. Uma montanha de 17.778 pessoas em 2015 (índice de 58,1 por 100.000 habitantes, segundo o Ministério Público). Ou uma cordilheira de 27.875 venezuelanos (90 por 100.000), segundo o OVV. Enterros e cremações demais, milhares de órfãos, viúvos, pais desolados.
Os sequestros expressos estão em alta – e se dolarizaram, com a queda do Bolívar. Os sequestradores podem tratar bem a vítima ou bater nela. Conformar-se com o que a pessoa leva, se acreditarem que a família está em dificuldades, só tendo o bastante para as despesas do dia. Ou largá-la na estrada, como um cachorro, atirando em suas nádegas. Alguns fazem a gentileza de dar dinheiro para o táxi, depois de pago o resgate. Outros matam.
Quadrilha de sequestradores do violento bairro de Antimano, em Caracas, em um dos locais onde escondem suas vítimas. NATALIE KEYSSAR
Que tipo de sequestrador é o destes três jovens mascarados que posam com altivez, e talvez com docilidade, para a câmera? Um deles confidencia à fotógrafa que não encontrou outra forma de sair da pobreza. Que, na verdade, não querem fazer mal a ninguém. Mas esclarece: “Se eu te sequestrasse e você me tratasse com respeito, pegaríamos seu dinheiro e você viveria. Mas se não, teria que te matar. Não pensaria duas vezes”.
Pergunto-me se a pistola que ele empunha como se fosse um prolongamento de sua mão terá pertencido a algum policial assassinado para sua arma ser tomada. Como Osmary Tavare, de 27 anos, morta com um tiro na cabeça enquanto fazia de bicicleta uma patrulha pelo Leste de Caracas numa bela manhã de abril.
No ano passado, 344 funcionários do setor de segurança, 65 deles militares, foram assassinados para o roubo de suas armas de foto, segundo dados da ONG Fundepro. A
caçada é brutal. Os agentes são alvos ambulantes. Os bandidos, que se juntam em quadrilhas cada vez maiores, ficaram tão ousados que se atrevem a atacar com granadas quartéis da polícia.
Yohangel Márquez, de 33 anos, acabou nesse túmulo em que uma cruz se eleva sobre um grosso tapete de flores, rodeado por mulheres com sombrinhas. Estava sem uniforme, numa festa ao ar livre, quando um bandido a reconheceu e esvaziou o revólver em seu rosto. Márquez trabalhava na polícia do Estado de Miranda. Não é o primeiro agente que o comissário Rafael Graterol viu cair. Em suas pupilas apagadas parece haver funerais em excesso. Em seus ombros curvados, mais de uma batalha perdida.
Enterro de Yohangel Márquez, policial de 33 anos assassinado por um criminoso em Miranda. NATALIE KEYSSAR

6.

Já ouvi algumas pessoas perguntarem como é possível que, num lugar tão decomposto, nada aconteça. Mas por acaso não acontece muita coisa? Esperam uma explosão popular com muitos mortos, como o Caracazo de 1989? Uma guerra civil? Ou talvez outro golpe militar como o de 1992, ou como o de 2002, ou como tantos de nosso avultadíssimo repertório histórico de aventuras e ditaduras militares?
Nesta contradição de 912.000 quilômetros quadrados, que agora parece um túnel sem final, quantos estão realmente dispostos a se matar? Nesta ferida da qual fugiram mais de um milhão de venezuelanos nos últimos anos, a enorme maioria trava uma luta comovedora e contínua para viver e criar seus filhos em paz. Uma luta ao rés do chão, menos estridente, mas muito mais admirável do que qualquer épica.
Eis aí essa multidão de rostos sorridentes ao sol. Com uma esperança à prova de fracassos. Como este verso de Wislawa Szymborska que diz: “Minha fé é cega, forte e sem nenhum fundamento”. Eis aí essa roupa branca, impondo-se ao muro carcomido. Essa roleta eleitoral, que a cada vez que gira emudece as trombetas do Apocalipse. Essa mão que aponta o caminho mais desejado neste extravio chamado Venezuela.
Roupa estendida no bairro chavista 23 de Janeiro. NATALIE KEYSSAR
Cristina Marcano é jornalista e escritora. Autora, com Alberto Barrera, do livro Hugo Chávez sem uniforme: uma história pessoal (2005, editora Gryphus).


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Como se sobrevive na cidade mais perigosa do mundo




Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo. C. G. RAWLINS



Como se sobrevive na cidade mais perigosa do mundo

Venezuelanos se mantêm em estado de alerta permanente, num país onde a violência urbana se tornou uma epidemia incontrolável




CRISTINA MARCANO
3 DEZ 2016 - 17:00 CST
Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo. C. G. RAWLINS

Há cenas cotidianas em Caracas que nunca deixam de surpreender. Você está ao volante, preso num congestionamento na hora do almoço, e de repente sente batidas na janela. Um motociclista golpeia o vidro com o cano de uma pistola e exige: “O celular ou atiro”. Uma ameaça semelhante se repete, com uma faca cutucando as costelas da vítima, em meio ao alarido da saída do metrô.


Num feriado tranquilo, você sai para comer um hambúrguer. Está a duas quadras da delegacia de um bairro nobre. Um carro com vidros escuros ultrapassa o seu veículo e para num sinal vermelho. Outro carro o bloqueia por trás. Dois homens descem e apontam armas. Em segundos, você se torna vítima de um sequestro-relâmpago, um dos crimes mais comuns e traumáticos no amplo repertório delitivo venezuelano.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Venezuela / Caçando pássaros com mísseis

Nicolás Maduro
Caçando pássaros com mísseis

O Governo venezuelano responde aos protestos com um inédito derramamento de sanha e ódio, desconhecido para duas gerações. Apanhado em seus clichês ideológicos e assessorado pelos cubanos, Maduro está condenado a fracassar como presidente e como ditador



EDUARDO ESTRADA
“As armas devem ser reservadas para o último caso, onde e quando os outros meios não bastam”, sustentava Maquiavel. Depois do seu strip-tease repressivo de fevereiro, dá a impressão de que Nicolás Maduro anda lendo muito Che Guevara e muito pouco ao estrategista florentino. Ou talvez pense que já chegou ao último caso.
O presidente venezuelano não poupou nenhum recurso para atemorizar os jovens manifestantes venezuelanos e convencê-los, pela força, a abandonarem a rua. Incapaz de resolver suas reivindicações concretas, o mandatário optou pelomodus operandi dos ditadores para tentar garantir uma paz à cubana, em meio a uma debacle econômica e uma incontrolável epidemia criminal que prenunciam protestos e descontentamento cada vez maiores.
O Governo mobilizou todas as forças policiais, a Guarda Nacional, a Guarda do Povo e a Sebin (inteligência). Além disso, lançou mão dos autodenominados “coletivos”, grupos de choque que atuam em cooperação com a Guarda, especialmente depois de receberem ordens de sair em defesa da revolução.
Foram usados aviões Sukhoi para intimidar os combativos rapazes de San Cristóbal e tanques às dúzias, como se a Guarda Nacional estivesse combatendo terroristas da Al Qaeda em vez de jovens na faixa dos 20 anos, armados, quando muito, com pedras e coquetéis molotov. Dia após dia, a polícia e os militares distribuíram uma incessante chuva de gases tóxicos, embora seu uso no controle de distúrbios seja expressamente proibido pela Constituição venezuelana, assim como o de armas de fogo iguais às que ceifaram a vida de várias pessoas.

Com fevereiro, foi-se o pouco que restava de democracia além do puro exercício eleitoral
Maduro ordenou a detenção do dirigente oposicionista Leopoldo López – já sabemos como funciona a obediente Justiça venezuelana –, seu primeiro grande preso político, e uma verdadeira razia contra os manifestantes, na qual têm caído numerosos jornalistas e alguns desafortunados curiosos. Mais de mil detidos em um mês. Um recorde que supera os da onda de saques de 1989, conhecida como Caracaço.
Desde o início dos protestos, e certamente para nos poupar do “abatimento”, o presidente oferece um nutrido festival de censura, o que incluiu a saída do canal internacional NTN24, uma ameaça à agência France Presse, um dia de bloqueio ao Twitter, a expulsão e humilhação da principal apresentadora da CNN em espanhol e ataques a mais de 70 jornalistas venezuelanos e estrangeiros (quatro por dia, em média). Além do mais, há extravios, desvarios e mentiras olímpicas de membros de seu Governo, os quais consumiriam esta página completa. Basta uma delas, anunciada pela televisão oficial: a captura de oito terroristas internacionais procurados pelo Interpol, que acabaram sendo uma fotojornalista italiana e um transeunte português.
Vimos – não pela televisão, obviamente, mas sim pelo YouTube e o Twitter –brutalidade policial e abusos sem fim. Cabeças sendo chutadas por pesadas botas negras, mulheres golpeadas com capacetes na cara por se negarem a entregar seus celulares, ossos triturados por coturnos militares, olhos arrebentados por bombas lacrimogêneas, crânios fraturados por fuzis, pessoas sendo presas à força e belos rostos desfigurados por descargas de chumbo à queima-roupa, como o do Geraldine Moreno, que não sobreviveu ao encontro com a “gloriosa” Guarda Nacional, como a definiu Maduro pouco depois da morte da moça.
Um volumoso catálogo de abusos e irregularidades seguidos por excessos judiciais, documentados por diversas ONGs de direitos humanos, inflamou ainda mais os manifestantes. Só o Fórum Penal Venezuelano denunciou 40 horripilantes casos de torturas e tratamentos cruéis e desumanos. Um derramamento de sanha e ódio desconhecido para duas gerações.
Por que Maduro decidiu caçar pássaros com mísseis? Por que não tentou sufocar os protestos à maneira de sua aliada Dilma Rousseff, presidenta do Brasil? Em princípio, os universitários, acossados pela delinquência em suas casas e centros de estudo, onde salas de aula inteira já foram roubadas, só reivindicavam segurança e a libertação de dois jovens detidos em uma manifestação em San Cristóbal.
Por que não atendeu a reivindicação legítima? Por acaso lhe convinha a escalada dos protestos que deixaram 23 mortos, de diferentes posições políticas, e mais de 300 feridos? Por que mostra essas garras agora, quando ainda não completa um ano na presidência? Houve setores da chamada Direção Político-Militar da revolução interessados em que se cruzasse essa linha? Talvez seu poderoso sócio militar, o capitão Diosdado Cabello, ex-golpista e chefe da Assembleia Nacional, tão empenhado em lhe fazer sombra?
É realmente o presidente um títere de Cuba disposto a assumir o custo político – e talvez jurídico – da violação dos direitos humanos? A quem está dirigida sua demonstração de força, só à oposição?
Um fato determinante no trágico final do protesto pacífico de 12 de fevereiro não foi suficientemente esclarecido. Se não fossem os disparos de agentes do Serviço de Inteligência Nacional (Sebin), que mataram duas pessoas quando a marcha convocada por López já havia terminado, não teria havido outras mortes nessa noite, com 23 feridos e 30 detidos. Cinco dias depois, Maduro observou que os funcionários descumpriram suas ordens de se aquartelarem e não saírem à ruanaquele dia. Se for verdade, a quem obedeciam, então? Ou é apenas que tinham sede de matar? Todos estes dias vêm transcorrendo nessa mesma escuridão.
O cinismo, as mentiras, a criminalização dos protestos e dos manifestantes, a baixeza de negar ou minimizar as violações aos direitos humanos antes de investigar e, por último, a brutalidade judicial com que se castigam os detidos provocaram uma profunda arrechera, essa indignação extrema tão venezuelana, a qual durante um mês o Governo se dedicou a alimentar com grande esmero.
Sem dúvida, criou-se uma profunda falha tectônica na Venezuela. Com fevereiro, foi-se o pouco que restava de democracia além do puro exercício eleitoral.
Depois de um mês de incessantes protestos e dura repressão, a cúpula oposicionista – afetada pela perseguição política a López e ao seu partido – tem pela frente o desafio de represar essa indignação, a qual às vezes parece lhes haver transbordado; retomar uma só linha de ação e oferecer esperanças a esses jovens céticos, que se sentem exilados em seu próprio país e por isso lutam com tanta coragem.
Fizeram bem em condicionar o diálogo com o Governo, conscientes de que as revoluções não dialogam, se impõem.
A pouca legitimidade que tinha o presidente perante a metade da população que votou na oposição se desvaneceu completamente. Para esses milhões de venezuelanos, Maduro é hoje um esboço bastante acabado de ditador. Não um homem forte. Nunca será. Mais um homem fraco, necessitado da força para infundir medo em um contexto que prenuncia ruas mais quentes. Um homem de olhar inseguro, por mais que se empenhe em rugir.

A derrota econômica e a epidemia criminal prenunciam um descontentamento cada vez maior
Provavelmente por isso se valeu dos temíveis “coletivos”, tão parecidos com os Tonton Macoute haitianos, os Batalhões da Dignidade panamenhos, as Brigadas de Resposta Rápida castristas. Mas sabe que a repressão não resolverá os graves problemas da Venezuela.
O país pode estar divido politicamente, mas não na perda de qualidade de vida. Todos padecem por igual da insegurança, da escassez, da inflação, da desvalorização e da crise hospitalar. Não por diversão soam as panelas nos bairros, onde os muitos descontentes ainda não se atrevem a protestar por causa das ameaças dos paramilitares.
Apanhado em seus clichês ideológicos e assessorado pelos cubanos, Maduro está condenado a fracassar como presidente. Não só arrasta uma economia disfuncional e um pesado legado de corrupção como também se amarrou ao mesmo Gabinete hipertrofiado que conduziu a nação com as maiores reservas petrolíferas à catástrofe econômica.
Talvez por isso tenha se precipitado a usar a repressão antes que outros meios. Talvez, no fundo, pense ser essa a única maneira de governar os insubmissos venezuelanos em meio a tanta ineficácia. Entretanto, Nicolás Maduro corre o risco de fracassar também como ditador. Paradoxalmente, colocou-se em uma panela de pressão na qual se cozinha enquanto há gente ao seu redor que parece interessada em aumentar o fogo.
Cristina Marcano é jornalista e escritora. Publicou, junto com Alberto Barrera Tyszca, Hugo Chávez Sin Uniforme – Una Historia Personal (Debate), uma biografia do ex-presidente da Venezuela.