terça-feira, 28 de abril de 2020

Morreu o escritor sueco Per Olov Enquist, aos 85 anos


Per Olov Enquist


Morreu o escritor sueco Per Olov Enquist, aos 85 anos

Autor de cerca de 20 romances e ensaios, nove peças de teatro e cinco guiões de cinema, P.O. Enquist, como era conhecido, era uma das referências literárias suecas mais internacionais.
AGENCIA LUSA
26 abr 2020

O escritor e dramaturgo sueco Per Olov Enquist, um dos autores mais prestigiados deste país nórdico, morreu aos 85 anos, na sequência de doença prolongada, confirmou hoje a família ao diário “Dagens Nyheter”.
Autor de cerca de 20 romances e ensaios, nove peças de teatro e cinco guiões de cinema, P.O. Enquist, como era conhecido, era uma das referências literárias suecas mais internacionais.
Jornalista desportivo e saltador em altura na juventude, Enquist (nascido em Hjoggböle, 1934) estreou-se em 1961 com o romance “Kristallögat” (O Olho de Cristal), a que se seguiu “Magnetisörens femte vinter (O Quinto Invierno do Magnetizador, 1964). Con “Legionärerna” (Os Legionários, 1968), obteve fama fora da Suécia e ganhou o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico.

A estreia como dramaturgo foi em 1975, com “Tribadernas Natt” (A Noite das Tríbades), outra obra com a qual ultrapassou as fronteiras do seu país. Após escrever um único romance na década seguinte, “Nedstörtad ängel” (O Anjo Caído), regressou ao género em 1992, com “Kaptens Nemos bibliotek” (A Biblioteca do Capitão Nemo) e “Livläkarens Besök” (A Visita do Médico Real, 1999).
Com esta última obra ganhou o primeiro dos seus prémios Augusto, o galardão mais importante da literatura sueca, que voltou a obter com o livro de memórias “Ett Annat Liv” (Outra Vida, 2008), em que conta a sua batalha pessoal contra o alcoolismo.
O último livro, “Liknelseboken” (O Libro das Parábolas, 2013) é uma continuação da autobiografia de um autor considerado um dos ícones da cultura sueca contemporânea.
“Foi um autor muito prolífico, ativo no debate social e um dos escritores mais importantes”, declarou hoje a jornalista e crítica Eva Ekselius, autora de uma tese sobre a obra de Enquist.
Além da produção estritamente literária, Enquist escreveu guiões para vários filmes, entre os quais “Pelle, O Conquistador”, do dinamarquês Bille August, que ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro em 1987.
OBSERVADOR



DE OTROS MUNDOS
Per Olov Enquist / ¿Tiene límite la desesperación en la economía de Dios?
Per Olov Enquist / "Suena cursi, pero un libro me salvó la vida"


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Cenas de uma pandemia de 1.500 anos atrás que se repetem hoje


Mosaico do século VI do imperador Justiniano e sua corte, na Basílica de San Vital em Ravena.


PANDEMIA DE CORONAVÍRUS
Cenas de uma pandemia de 1.500 anos atrás que se repetem hoje

Pesquisa da Universidade de Barcelona destaca as surpreendentes semelhanças entre a pandemia do coronavírus e a praga de Justiniano que assolou o mundo em 541


Vicente G. Olaya
Madrid, 11 de abril de 2020



Uma pandemia que chegou do estrangeiro e que se espalhava rapidamente dos portos onde chegavam os passageiros infectados ― assintomáticos ou não ―, sem nenhum medicamento que pudesse pará-la, todos os habitantes confinados em suas casas para evitar contágios, a paralisação total da economia, o exército vigiando as ruas, médicos infectados trabalhando à exaustão, milhares de mortos diários sem enterrar durante “muitos dias porque os que cavavam já não davam conta...”. Não é a crônica do coronavírus que afeta o mundo em 2020. É o relato feito por Procópio de Cesareia sobre o surto de peste bubônica que assolou o mundo conhecido entre 541 e 544: da China às costas da Hispânia. O estudo La plaga de Justinià, segons el testimoni de Procopi (A Praga de Justiniano, segundo o Testemunho de Procópio), de Jordina Sales Carbonell, pesquisadora da Universidade de Barcelona, devolveu à atualidade esse relato de 1.500 anos atrás, com moral da história. “Em 1 de abril de 2020, determinadas semelhanças e paralelismos do comportamento humano frente a um vírus e suas consequências nos parecem tão próximas e atuais que, apesar da tragédia que estamos vivendo em primeira pessoa, nunca podemos deixar de nos maravilhar de como a história se repete” escreve a arqueóloga e historiadora do Institut de Recerca en Cultures Medievals (Instituto de Pesquisa em Culturas Medievais).

Em 541, durante o reinado do bizantino Justiniano, explodiu um surto de peste bubônica no império. “O alarme surgiu no Egito, onde a infecção se expandiu de modo rápido e letal”. Procópio falou sobre isso em seu livro História das Guerras, no qual relatou as campanhas militares de Justiniano pela Itália, África do Norte, Hispânia... e como os soldados espalhavam a pandemia pelos diversos portos em que chegavam, fundamentalmente da Europa, África do Norte, o Império Sassânida (Pérsia) e, de lá, à China.

Procópio, como conselheiro do general bizantino Belisário, a quem acompanhou em suas campanhas, se transformou assim em “testemunha privilegiada” de uma pandemia que recebeu o nome de praga de Justiniano: “Foi declarada uma epidemia que quase acabou com todo o gênero humano da qual não há forma possível de dar nenhuma explicação com palavras, sequer de pensá-la, a não ser nos remitir à vontade de Deus”, escreveu o historiador bizantino. “Essa epidemia”, continuou, “não afetou uma parte limitada da Terra, um grupo determinado de homens e se reduziu a uma estação concreta do ano [...], e sim se espalhou e se alimentou em todas as vidas humanas, por diferentes que fossem as pessoas das outras, sem excluir naturezas e idade”. Desse modo, a doença não tinha limites, “até aos extremos do mundo, como se tivesse medo de que algum recanto escapasse”.

Um ano após ser detectada, a peste chegou à capital do Império, Bizâncio (atual Istambul), “assolando-a durante quatro meses”. “O confinamento e o isolamento eram totais”, descreve Sales Carbonell, “já que era mais do que obrigatório aos doentes. Mas também se impôs uma espécie de autoconfinamento espontâneo e intuitivamente voluntário para o restante, em boa parte motivado pelas próprias circunstâncias”. De fato, “não era nada fácil ver alguém nos locais públicos, pelo menos em Bizâncio, uma vez que todos os saudáveis ficavam em casa, cuidando dos doentes e chorando os mortos”, de acordo com Procópio. E o faziam “com roupas comuns, como simples particulares”, o que a historiadora da Universidade de Barcelona traduz com certa ironia “como o moletom da época”.

A economia, enquanto isso, desabou: “As atividades cessaram e os artesãos abandonaram todos os empregos e os trabalhos dos quais se ocupavam”. Mas ao contrário de hoje em dia, as autoridades foram incapazes de organizar serviços essenciais. “Parecia muito difícil conseguir pão e qualquer outro alimento, de modo que, para alguns doentes, o desenlace final da vida foi sem dúvida prematuro, pela falta de artigos de primeira necessidade”, escreveu o bizantino em História das Guerras. “Muitos morriam porque não tinham quem cuidasse deles”, já que as pessoas responsáveis pela emergência “caiam esgotadas por não poder descansar e sofrer constantemente. Por isso, todos se compadeciam mais delas do que dos doentes”.
Vigilância nas ruas

Justiniano, pela situação desesperada, distribuiu “pelotões de guardas do palácio” pelas ruas e nomeou seu chefe de gabinete autorizado, que “com o dinheiro do tesouro imperial e até colocando de seu próprio bolso sepultava os corpos dos que não tinham ninguém que os ajudasse”. O próprio imperador se infectou, mas superou a doença e continuou governando durante mais uma década.

Os picos de mortalidade subiram de 5.000 a 10.000 vítimas por dia, e até mais. De tal maneira que, “ainda que em um primeiro momento cada um se ocupava dos mortos de sua casa, o colapso e o caos se tornaram inevitáveis e os cadáveres também eram jogados nas tumbas dos outros, às escondidas e com violência”. Mesmo os ilustres, lembra Procópio, “permaneceram insepultos durante muitos dias”, de modo que “os corpos se amontoaram de qualquer maneira nas torres das muralhas”. Não havia cortejos e rituais funerários para eles.

Quando por fim a pandemia foi superada surgiu, lembra a historiadora, um aspecto positivo: “Os que haviam sido partidários das diversas fações políticas abandonaram as críticas mútuas. Mesmo aqueles que antes realizavam ações baixas e malvadas deixaram, na vida diária, toda a maldade, uma vez que a necessidade imperiosa lhes fazia aprender o que era a honradez”, nas palavras de Procópio, ainda que após algum tempo voltaram aos velhos hábitos. “Esse ponto certo de poesia nos faz vislumbrar o otimismo e a esperança de que talvez nos permitam seguir em frente e não voltar a tropeçar novamente na mesma pedra”, finaliza a especialista com mais expectativa do que certeza.

sábado, 18 de abril de 2020

Violência e refinamento discursivo em A grande arte, de Rubem Fonseca



Violência e refinamento discursivo em A grande arte, de Rubem Fonseca

Violence and refined discourse in A grande arte, by Rubem Fonseca


Murilo Eduardo dos Reis 
Maria Célia de Moraes Leonel 
Fonseca é reconhecido, desde o lançamento de sua primeira publicação, pela representação da violência associada ao uso de uma linguagem sofisticada. Tal característica leva Alfredo Bosi a inseri-lo na corrente literária “brutalista”. Este artigo pretende verificar como é representada a brutalidade derivada dos desníveis sociais na sociedade brasileira em A grande arte, de 1983, segundo romance policial do autor. O escritor utiliza-se de aprimoradas técnicas narrativas para representar de maneira detalhada situações de violência explícita que envolvem o protagonista-narrador e outras personagens como o matador de aluguel. Com apoio em estudos sobre o romance policial, a narrativa brasileira e alguns problemas de técnica da narrativa, expomos a imbricação entre representação da violência, a crítica à desigualdade social e a composição própria do romance policial, construídas por um discurso requintado.

Palavras-chave Rubem Fonseca; romance policial; violência
Since the release of his first publication, Rubem Foseca has been associated to a representation of violence through sophisticated language. Such characteristic led Alfredo Bosi to include Fonseca in the “brutalist” literary movement. This article intends to examine how brutality resulting from social differences in Brazilian society is represented in A grande arte (1983), the second crime novel written by Fonseca. In this novel, the author uses refined narrative techniques to represent in detail situations of explicit violence that involve the protagonist-narrator and other characters and whose main agent for violence is a contract killer. Based on studies about crime novels, Brazilian narrative and narrative techniques, we will reveal the link between the representation of brutality, criticism of social inequality and composition of crime novels achieved through sophisticated writing.
Keywords Rubem Fonseca; crime novel; violence
Rubem Fonseca es reconocido, desde el lanzamiento de su primera publicación, por la representación de la violencia asociada al uso de un lenguaje sofisticado. Tales características llevarían a Alfredo Bosi a insertarlo en la corriente literaria "brutalista". Este trabajo pretende verificar cómo es representada la brutalidad resultante de los desniveles sociales en la sociedad brasileña en A grande arte, de 1983, la segunda novela policial del autor. El escritor se vale de cuidadosos procedimientos narrativos para representar de manera detallada situaciones de violencia que envuelven al protagonista narrador y a otros personajes, como el sicario. Partiendo de los estudios sobre la novela policial, la narrativa brasileña y algunos problemas de técnica narrativa, apuntamos para la imbricación entre la representación de la violencia, la crítica a la desigualdad social y la composición propia del género policial, construidas a través de un requintado discurso.
Palabras claves Rubem Fonseca; novela policial; violencia
A matéria-prima principal da nada otimista literatura policial de Rubem Fonseca deriva dos desníveis sociais do país por ele representados em becos suburbanos e em luxuosos apartamentos de políticos e empresários. Nessas condições da sociedade, surgem assassinos cruéis que transitam das camadas mais altas às mais baixas.
Abordamos aqui a imbricação entre técnicas narrativas apuradas e a crueldade de matador de aluguel resultante da desigualdade social no romance A grande arte de 1983. O boliviano Camilo Fuentes, colocado a uma distância considerável dos confortos do capitalismo, encontra na profissão de homicida contratado uma forma de sobreviver numa urbe em que é invisível. Verificamos os motivos que o levaram a se aperfeiçoar na arte de matar e a sentir prazer quando o alvo é determinado tipo social, como também o improvável olhar crítico do qual é possuidor.
Antes de chegarmos aos vetores dessa brutalidade, faz-se necessária uma breve incursão pela história e pelo modo como é narrada.
O advogado-detetive narrador da história
A grande arte (1990), segundo romance publicado pelo autor, traz a investigação de assassinatos em série de três mulheres que conduz o advogado Paulo Mandrake ao submundo do crime na fronteira do Brasil com a Bolívia. Assassinos profissionais, com conhecimento quase acadêmico no manejo de facas, fazem parte de um elenco que inclui prostitutas, policiais e advogados, anti-heróis sobreviventes em um mundo violento e implacável.
O relato inicia-se como na maioria dos romances policiais. Um assassino misterioso faz a primeira vítima: mata uma prostituta por esganadura e, como única pista, deixa marcada à faca no seu rosto a letra P, estabelecendo-a como o enigma a ser decifrado: “Não haveria impressões digitais, testemunhas, indícios que o identificassem. Apenas sua caligrafia.” (FONSECA, 1990, p. 10). Essa marca particular do criminoso dificilmente levará a ele pelos métodos científicos de investigação utilizados pela polícia - ou até mesmo, se fosse o caso, por Sherlock Holmes.
Em seguida ao relato do assassinato, revela-se que a instância narrativa dos acontecimentos é Mandrake. Personagem emblemática na obra do escritor, o mulherengo advogado já havia protagonizado os contos “O caso de F. A.” de 1967, “Dia dos namorados” de 1975 e “Mandrake” de 1978. Depois de A grande arte de 1983, ele reaparece nos romances E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto de 1997, e Mandrake, a Bíblia e a bengala, publicado em 2005. Recentemente, no ano de 2017, o escritor promoveu mais um retorno da icônica personagem no conto “Calibre 22”, pertencente à coletânea homônima.
No romance em pauta, ele vivenciou boa parte dos fatos e tem, em seu poder, os cadernos do poderoso executivo Thales de Lima Prado, documento que lhe fornece informações sobre acontecimentos relativos aos crimes dos quais não participou. Contrariando a característica do narrador memorialista presente nos romances de enigma, Rubem Fonseca traz o advogado, que exerce a função de detetive, como o narrador do romance. Assim, ele está posicionado temporalmente à frente da história - mas sem nenhuma demarcação cronológica precisa:
Os acontecimentos foram sabidos e compreendidos mediante minha observação pessoal, direta, ou seguindo o testemunho de alguns dos envolvidos. Às vezes interpretei episódios e comportamentos - não fosse eu um advogado acostumado, profissionalmente, ao exercício da hermenêutica. (FONSECA, 1990, p. 10).
Essa narração em primeira pessoa é o que Antonio Candido (2011, p. 254-255) classifica como ultrarrealismo sem preconceitos, um “realismo feroz” por meio do qual Rubem Fonseca agride o leitor pela violência temática veiculada por uma técnica narrativa: funde o ser e o agir em uma fala marginal, “[...] propondo soluções alternativas na sequência da narração, avançando as fronteiras da literatura no rumo duma espécie de notícia nua e crua da vida.” (CANDIDO, 2011, p. 255).
Mandrake toma conhecimento do assassinato da garota de programa quando um sujeito chamado Roberto Miltry o procura para contratar seus serviços. Miltry deseja que ele o ajude a recuperar uma fita VHS com imagens comprometedoras que estaria no apartamento de uma massagista - que, assim como a prostituta, também será assassinada.
Ao investigar o paradeiro dessa fita, o advogado atrai a atenção de criminosos. Como resultado, Mandrake e Ada - sua namorada - sofrem um atentado em que ele é esfaqueado e ela, estuprada. Posteriormente, ele descobre que um dos homens que invadiram seu apartamento é Camilo Fuentes. A descoberta dá-se pelo que Aristóteles (2005, p. 36) classifica como “reconhecimento”. No ataque dos criminosos, um colar com pingente em forma de unicórnio é roubado. Fuentes é detido em uma batida da polícia, suspeito de tráfico de drogas. Raul, policial amigo de Mandrake, chama-o para comprovar se o homem seria um dos criminosos. Através de um espelho utilizado para a delação de culpados e a proteção de testemunhas, o advogado vê o seu colar pendurado no pescoço de Camilo. Ciente de que foi ele quem cometeu as atrocidades, começa a segui-lo, em uma jornada do interior de São Paulo à fronteira mato-grossense com a Bolívia, no trem da ferrovia Bauru-Corumbá.
O boliviano matador de brasileiros
A partir do relato de Mandrake, que sai no encalço de Camilo Fuentes nos vagões que seguem até a fronteira boliviana, o leitor depara-se com um narrador demiurgo. Assim, tem-se o retrato das demais personagens por meio de uma instância narrativa que conhece seus sentimentos mais cruéis.
Porém, ocorre uma mudança de ponto de vista surpreendente, para um romance policial, no capítulo dez, quando o advogado-detetive passa a narrar os acontecimentos pelo olhar de Camilo Fuentes, no momento em que ele mantém relações sexuais com Zélia, mulher que conhece no vagão-restaurante. Trata-se da primeira oportunidade em que se insere na narrativa uma segunda perspectiva:
Camilo Fuentes acreditava firmemente que, para sobreviver no mundo hostil em que vivia, era preciso estar preparado para matar. Seu pai fora morto na fronteira porque vacilara ao enfrentar seu assassino. Camilo tinha sete anos quando isso aconteceu, mas seu tio Miguel lhe contara tudo: o homem que matara seu pai era brasileiro, como eram brasileiros os usurpadores de larga parte do território boliviano, um território tão grande que se transformara num dos estados da República do Brasil, o vizinho imperialista que, com a conivência dos governantes bolivianos corruptos, há séculos roubava as riquezas naturais de seu país. Camilo, na infância e na adolescência, sofrera a arrogância de seus vizinhos ricos do outro lado da fronteira, aos quais prestava pequenos serviços humilhantes em troca de pagamento miserável. Por esse motivo e outros mais obscuros, odiava os brasileiros. Zélia é muito estúpida para ser perigosa, pensou Camilo enquanto mandava que ela ficasse de quatro no chão da cabine. Em seguida começou a possuí-la como se faz com uma cadela, chamando-a de puta brasileira, espancando-a e fazendo-a gemer e pedir mais, em gritos abafados pelo barulho das rodas do trem.
[...] Havia no trem outra pessoa suspeita, um sujeito de barba que o observava dissimuladamente no carro-restaurante e desviara os olhos como um maricón indeciso, procurando contacto; mas aquele sujeito de olhar hostil e dentes sempre trincados não era um homossexual. Precisava também ser vigiado. (Felizmente Fuentes não me reconhecera.). (FONSECA, 1990, p. 104).
O final mostra a nítida consciência do assassino com relação ao que o rodeia. Portanto, numa parte consideravelmente longa, o narrador onisciente adentra a mente de Camilo Fuentes. No recorte acima, além da mudança no ponto de origem da perspectiva, o narrador, ao relatar fatos dos quais não participou, deixa de ser autodiegético para se tornar heterodiegético, de acordo com a terminologia genettiana.
Segundo Paul Ricoeur (2010, p. 162), o ponto de vista define, em uma narrativa em terceira ou primeira pessoa, em que direção aponta o olhar do narrador às personagens e das personagens umas às outras. De acordo com o autor, a adoção de variados pontos de vista dá ao escritor a oportunidade de multiplicar e incorporar diferentes ângulos de visão na composição da obra.
É exatamente o procedimento adotado pelo sofisticado narrador de Rubem Fonseca que, em outra passagem do livro, posiciona a lente de sua câmera noutra personagem e, a partir daí, é o olhar de Zélia que se manifesta. Novamente, o narrador heterodiegético alia-se à focalização onisciente, movimentando o anel de focalização para que a imagem se turve com a intenção de representar a visão que a personagem tem de Camilo Fuentes enquanto fazem sexo:
Os movimentos rigorosos de Fuentes faziam o suor pingar da sua cabeça sobre a face e os olhos de Zélia, cobrindo sua visão com uma lente líquida ardente que tornava disforme a figura do homem curvado sobre ela. (FONSECA, 1990, p. 105).
A mudança de focalização, paradoxalmente - pois há a intervenção da subjetividade da personagem não narradora - contribui ainda para a objetividade (e crueldade) do narrador do romance policial à qual se referem Boileau e Narcejac (1991, p. 61) e que é visível nas páginas de Rubem Fonseca. A sordidez realista frisada pelos autores franceses foi detectada por Antonio Candido (2011, p. 254-255) na obra do escritor brasileiro, conforme mencionamos, como um “ultrarrealismo feroz”. Não há descrição de sofrimento por parte da vítima. Tudo acontece naturalmente, com a mesma imparcialidade de uma notícia de jornal.
Também, nesse aspecto, o romance de Rubem Fonseca encaixa-se no tipo literário do romance policial americano que - de acordo com Boileau e Narcejac (1991, p. 59), ao contrário de “narrativas de espanto” classificadas como thrillers - não tem como objetivo causar medo, mas fazer mal ao leitor pela crueza das cenas. Um dos momentos em que isso ocorre é a passagem na qual se relata que, após descobrir que Mercedes - amiga de Zélia e eventual amante de Mandrake - é uma agente disfarçada da polícia federal que estava em seu encalço, Camilo Fuentes tira a sua vida com frieza e requintes de crueldade:
Mercedes correu para a porta, mas Fuentes atingiu-a com violento golpe no rosto fazendo-a cair no chão. Em seguida sentou-se sobre a barriga de Mercedes, com os joelhos abertos apoiados no chão, e esbofeteou-a com força, seguidamente. Mercedes sabia que era impossível sair daquela posição; num gesto rápido estendeu os dois braços tentando perfurar com as unhas os olhos de Fuentes. Com os dedos da mão direita conseguiu atingir o globo ocular esquerdo do homem, mas a unhas da mão esquerda atingiram apenas o supercílio. Ao notar que fora ferido, Fuentes deixou de lado a pequena brincadeira que pretendia manter com a mulher antes de matá-la. Pegou o braço direito de Mercedes e partiu-o em dois pedaços e passou a golpear com os punhos e os cotovelos o rosto desprotegido de Mercedes até transformá-lo numa polpa de carne sangrenta. Para certificar-se de que a vaca brasileira estava morta, Fuentes torceu sua cabeça lentamente até sentir seu pescoço estalar. Depois, praguejando, foi até o banheiro lavar-se. No olho esquerdo havia um pedaço de unha que Fuentes retirou com a mão trêmula. Estava cego daquele olho. Furioso, voltou para o quarto e chutou o corpo caído de Mercedes. (FONSECA, 1990, p. 125).
Vemos nessa passagem elementos narrativos que dão noção da implacável impiedade de Camilo Fuentes. A descrição detalhada e objetiva dos movimentos (golpes no rosto, bofetadas seguidas, braço partido em dois, cabeça sendo torcida até o limite suportável pelos ossos do pescoço, globo ocular perfurado, rosto que se transforma em uma disforme massa de carne) aproxima o leitor da ideia do que é matar alguém friamente. No trecho em que o narrador se fixa nas ações exteriores do assassinato, a onisciência narrativa penetra o seu interior - “deixou de lado a pequena brincadeira” (nota-se a atrocidade do trecho em itálico).
Mas a onisciência não se resume apenas ao algoz, também é levada à presa que tenta escapar do predador. Para indicar isso, o narrador relata a consciência de Mercedes de que, na posição em que se encontrava, seria praticamente impossível safar-se do terrível fim que a aguardava. A única maneira que encontra para ter algum tipo de sobrevida é, num último e desesperado gesto, perfurar o olho de Fuentes com as unhas. Isso apenas serve para deixá-lo ainda mais ensandecido, o que é comprovado pelo discurso indireto livre que apresenta seu julgamento de valor com relação à policial: uma “vaca brasileira”. O discurso indireto livre reaparece no final do trecho analisado a seguir.
Quando Camilo Fuentes perde a vista esquerda, Rubem Fonseca lança mão de um recurso oportuno para que o leitor saiba da grande dificuldade que passaria a acompanhá-lo e como seria enxergar apenas com um dos olhos. Heterodiegeticamente o narrador relata uma cena em que Fuentes testa a possibilidade de captar a imagem para a qual o olhar é direcionado, momento em que percebe que enxerga apenas parcialmente:
Na rua, Fuentes ficou olhando os olhos das pessoas que passavam por ele. Nunca estivera tão indeciso em sua vida. Com o olho direito, que sempre fora melhor do que o esquerdo, que sofria de uma pequena miopia, estava enxergando melhor do que nunca. Havia um lado que ele não podia ver sem virar a cabeça. Levantou a mão esquerda e a colocou ao lado da cabeça, uma continência com a mão errada: mas ele não via a mão, só via o perfil do seu próprio nariz. Isso era perigoso. (FONSECA, 1990, p. 139).
A frase final tanto pode ser da lavra da personagem - e, nesse caso, teríamos discurso indireto livre - como do narrador, o que, além da ambiguidade, pode trazer a passagem da visão do exterior da personagem para o seu interior.
Voltando à questão da exposição da crueza, Hal Foster (2017, p. 130-131) reflete sobre a obra Desastre de ambulância de Andy Warhol de 1963, na qual a figura do corpo de uma mulher pendurado em uma ambulância acidentada intenciona chocar o espectador. Porém, segundo Foster (2017, p. 131), a primeira sensação traumática é encoberta pela repetição da imagem - o que também poderia gerar um segundo tipo de trauma -, procedimento que aproxima aquele que a observa do real. De acordo com o crítico, as reproduções que se fixam no real traumático contribuem não apenas para o efeito de absurdo de imagens afetivas e sem afeto, mas também para a existência de observadores impassíveis como o narrador de Rubem Fonseca, que narra as atrocidades sofridas por Mercedes com a objetividade característica de uma notícia de jornal.
Seguindo a linha de pensamento de Foster, a repetição de situações de violência explícita, como a do assassinato de Mercedes, faz com que o leitor tenha o choque inicial encoberto por novos incômodos. Tal situação pode acabar automatizando os fatos do relato, porém, mais do que as cenas de brutalidade visceral, o que pode realmente causar espanto é a atitude do observador indiferente à selvageria - posição, em A grande arte (1990), ocupada por Mandrake, o apático narrador da história e manipulador do discurso.
Atualmente, pode-se dizer que, no fotojornalismo, há um retorno da crueza característica do romance policial fonsequiano e da imagem explorada por Warhol. Em 2017, o World Press Photo elegeu a imagem captada pelo turco Burhan Özbilici como a melhor do ano. Nela, o também turco Mevlüt Mert Altintas, de terno e gravata, aponta a mão esquerda para o alto, empunhando uma pistola na direita e vociferando ao lado de um cadáver no chão. O corpo sem vida é do embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, que acabara de ser assassinado pelo atirador numa galeria de arte.
Esse tipo de imagem que transborda realismo é frequentemente comparado a um frame de cinema. O figurino do assassino, nesse caso, assemelha-se ao das personagens do filme Cães de aluguel de 1992, dirigido por Quentin Tarantino. Pode-se dizer que é a mesma selvageria narrada por Mandrake, que relata detalhadamente os movimentos furiosos de Camilo Fuentes que levam Mercedes à morte em poucos minutos. É, também, a violência inesperada captada por Warhol em seu painel.
Os três casos, o literário, o fotográfico e o cinematográfico, mostram de maneira objetiva (característica das câmeras fotográficas e da linguagem jornalística) como o sofrimento do outro pode ser automatizado aos olhos do espectador e ser transformado em obra de arte.
A violência como método de sobrevivência
De acordo com Vera Lúcia Follain de Figueiredo (2003, p. 19), a violência representada por Rubem Fonseca de diferentes ângulos seria uma sina que se distribui em diferentes dimensões do comportamento humano e seria justificada como um método de sobrevivência do indivíduo.
O comportamento do boliviano Camilo Fuentes pode ser explicado por esse viés. O preconceito dos vizinhos brasileiros, que o coloca à margem devido à sua origem e aparência indígena, faz com que ele sempre esteja com a guarda levantada quando se depara com alguém nascido no país vizinho. Desde muito cedo, Fuentes aprendeu que os brasileiros hostilizam estrangeiros, como na oportunidade em que, ainda adolescente, em um bar, viu-se na obrigação de confrontar dois homens que zombaram do estado de suas roupas:
Os homens riram dele, “O defunto é menor?”, e um tentou jogá-lo ao chão, botando o pé na frente para que Fuentes tropeçasse ao passar. Porque ele era um índio boliviano; porque ele era pobre e estava mal vestido; porque os brasileiros eram uns cães nojentos. Fuentes parou ao lado da mesa olhando os homens. [...] Os homens olharam Fuentes de volta, arrogantes, zombeteiros. Num gesto rápido Fuentes estendeu a mão, agarrou um dos homens pelos cabelos, puxou sua cabeça para a frente e desferiu-lhe um forte murro em cima do nariz. Ouviu-se o barulho de ossos partindo antes de o homem cair, arrastando na queda sua cadeira. O outro homem, surpreendido com a rapidez de Fuentes, levantou-se, de punhos cerrados à frente, em atitude de boxeur, com a guarda alta. Bastou apenas um soco no estômago para jogá-lo ao chão sem sentidos. (FONSECA, 1990, p. 133-134).
Longe das benesses oferecidas por trabalhos legais, Fuentes encontra, na função de matador de aluguel, um meio de obter recursos financeiros, ofício que ele executa com maestria. Depois de matar Mercedes, o boliviano passa a ser perseguido pela polícia. Temendo que ele seja capturado e confesse o esquema no qual estava envolvido, seus empregadores também saem em seu encalço com o intuito de eliminá-lo, mas ele dá conta de todos os lacaios que surgem em seu caminho. Por conta disso, os antigos patrões contratam Hermes, especialista em facas que também orientou Mandrake nesse mister, para matar o boliviano.
Quando os dois assassinos se encontram, dá-se a representação de uma cena em que estão presentes dois tipos de habilidade: a dos combatentes e a do narrador onisciente. Mandrake adota o ponto de vista de Hermes que, ao contrário de Fuentes, possui grande conhecimento das variações de golpes com armas brancas. Porém, apesar de não ser versado na arte do Percor , seu adversário possui o que Hermes qualifica como ódio frio e calculado. Ao invés de mover-se bruscamente e abrir a guarda, o boliviano, empunhando um machete, mantém-se inerte.
O modo como os adversários se portam, cada qual estudando o movimento do outro e analisando as possibilidades de aplicarem um golpe fatal, é semelhante aos duelos representados em filmes de samurai, como Rashomon de Akira Kurosawa ou Kill Bill de Quentin Tarantino. Nesses longas-metragens, há cenas que também exibem combates inicialmente muito estudados e que são resolvidos com um único e cirúrgico ataque. O romance de Rubem Fonseca apresenta a vitória da força bruta de Fuentes sobre a habilidade enciclopédica de Hermes:
O sabre grosso e afiado desceu com uma velocidade incrível. O desvio de Hermes foi rápido e ele conseguiu livrar a cabeça. Não impediu, porém, que o machete atingisse em cheio seu ombro, dilacerando os músculos trapézio e pequeno romboide e fraturando os ossos da clavícula e da omoplata. A faca continuou firme na mão de Hermes, mas ele caiu sentado no chão, o rosto impassível, lívido. O enchimento do paletó diminuíra um pouco a força do golpe, impedindo que o aço entrasse mais fundo. Hermes sentiu o silêncio ficar mais abafado, como se tivessem colocado algodão nos seus ouvidos. Mas mesmo assim conseguiu ouvir o sibilar da lâmina cortando o ar antes de chocar-se com a sua têmpora. (FONSECA, 1990, p. 291-292).
Mais uma vez a onisciência do advogado-narrador que se põe a contar a história nos aproxima da sensação de Hermes ao relatar a espécie de surdez que o acometeu ao sentir o ombro dilacerado pela afiada lâmina do machete. Ela aumenta o efeito de realidade para o leitor na mesma proporção que o zoom de uma câmera promove. Esse detalhamento é encerrado pelo último som ouvido pelo assassino de aluguel: o ruído sibilante do metal cortando o ar até partir seu crânio, escurecendo o resto de sua consciência.
O assassino como crítico da estrutura social
Conforme Sandra Lúcia Reimão (2005, p. 12), os detetives noir apresentam-se como críticos da estrutura social em que vivem e investem contra essa situação por meio da rudeza, do sarcasmo, da insolência e da violência. Essa mesma característica também se faz presente no olhar de Camilo Fuentes, quando o narrador introduz a interioridade do assassino ou permite que parta dele a visão dos fatos, apontando para a absurda condição em que vivem os habitantes da periferia.
O boliviano apresenta traços do bandido revoltado com os desníveis sociais, mas também do cruel criminoso que parte o braço da vítima antes de matá-la com golpes no rosto. Apesar de ser um assassino frio e impiedoso, Fuentes é possuidor do olhar crítico que julga, a todo o momento, as mazelas causadas pela desigualdade social. Na ficção em geral, os criminosos não consideram a situação social à sua volta. Matam pelo dinheiro, não importando a classe de seu alvo. Assim, o assassino boliviano é apresentado como uma exceção: um matador de aluguel com princípios sociais.
Um exemplo dessa situação é quando, depois de matar um advogado (com uma corda de náilon disfarçada de iô-iô) sob encomenda, Fuentes exerce a sua secreta vingança contra um “país de mendigos e ladrões ricos” (FONSECA, 1990, p. 135). Ele é o bandido nobre que Ernest Mandel (1988, p. 26) afirma ter se transformado no cruel criminoso - o olhar provido de crítica social não o impede de acabar com a vida de quem estiver no seu caminho:
Revistou as roupas de Barreto tirando a carteira, o relógio e a aliança. [...] Pouco adiante Fuentes jogou a carteira e os documentos numa cesta de lixo; a aliança e o relógio enfiou num bueiro, e o dinheiro, oito notas de mil, deu para vários mendigos que encontrou na rua. (FONSECA, 1990, p. 135).
O que move Fuentes não é um ódio cego por tudo e por todos. Seus movimentos são calculados. Ele só faz o que foi pago para fazer e sua tarefa torna-se ainda mais prazerosa quando tem a oportunidade de matar empresários milionários, os quais, na sua visão, são aproveitadores e exploradores dos mais pobres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Tânia Pellegrini (1999, p. 104), A grande arte subverte o rótulo do romance policial ao apresentar um trabalho linguístico que se distancia da linguagem recorrente dessa modalidade e apontar a complexidade e as motivações humanas, colocando-as como consequência do contexto econômico e social do Brasil contemporâneo (como os motivos que levam Camilo Fuentes a se tornar um impiedoso assassino). Por essas razões, a narrativa de Rubem Fonseca diferencia-se do caráter reconfortante peculiar a esse tipo de romance no qual o detetive sempre triunfa e o criminoso nunca escapa impune. Não há nele qualquer intenção de entreter o leitor e aliviar o tédio do cotidiano, mas, sim, de alertá-lo sobre as podridões presentes em terras brasileiras.
De acordo com a autora (PELLEGRINI, 1999, p. 93), apesar das semelhanças com escritores de romance policial, Rubem Fonseca é muito mais sofisticado do que seus precursores no tratamento das razões do crime, a ponto de ser possível questionar a classificação de policial atribuída a boa parte de suas narrativas. No caso de A grande arte, considerando o complexo trabalho de estruturação do texto de Mandrake, juntamente com o final sem solução definitiva, pode-se afirmar que o livro não é um romance policial, suposição motivada pelo fato de lógica e razão (elementos básicos dos contos de Edgar Allan Poe) serem questionadas.
Nosso exame da produção fonsequiana, especialmente de A grande arte, leva-nos a entender que sua obra é muito mais aprimorada que a dos brutalistas que o antecederam e que o influenciaram, principalmente no que diz respeito aos recursos narrativos empregados pelo autor de que tratamos aqui. Ainda assim, consideramos que o livro estudado é um romance policial, pois carrega todos os requisitos para tal: detetive (Mandrake), assassino (Camilo Fuentes), enigma (o significado da letra P e o conteúdo do VHS) e vítimas (as duas prostitutas marcadas com a letra P). Todos os elementos estão lá - ainda que o quebra-cabeça não tenha uma solução definitiva. Tal como a carta roubada do conto de Edgar Allan Poe apresenta-se apenas como uma desculpa para que Dupin exercite o seu poder analítico, o procurado VHS é um pretexto para que Mandrake manipule a arte de narrar a violência.
Nossa análise de A grande arte permite, portanto, considerar que essa narrativa, mantendo as principais características de romance policial, sobressai relativamente às demais da mesma modalidade dada a maestria do escritor no que tange à estruturação do discurso. Se alguns críticos têm ressaltado o refinamento linguístico de tal obra, pudemos demonstrar que os aspectos próprios da história, das personagens do romance policial são transmitidos por meio de requintados recursos discursivos concernentes a outras categorias como a instância narrativa e a focalização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES-. “Poética”. In: Aristóteles-, Horácio-, Longino-. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. [ Links ]
BOILEAU, Pierre; Narcejac, Thomas. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991. [ Links ]
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. [ Links ]
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. [ Links ]
FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. [ Links ]
FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. [ Links ]
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [1970]. [ Links ]
MANDEL, Ernest. Delícias do crime. Trad. Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988. [ Links ]
PELLEGRINI, Tânia. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1999. [ Links ]
REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983. [ Links ]
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Márcia Valéria Martinez Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. [ Links ]
1Maria Célia de Moraes Leonel possui graduação em Letras pela Fundação Dom Aguirre (1968), mestrado em Letras-Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1976) e doutorado em Letras-Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1985). É livre-docente (1998) (UNESP) e professora titular (2007) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira e Teorias e crítica da narrativa, pesquisando, principalmente, os seguintes temas: narrativas brasileiras, modernismo brasileiro, prosadores brasileiros como Guimarães Rosa, Machado de Assis e Graciliano Ramos, teorias e crítica da narrativa, literatura e história. Docente e orientadora do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da FCL/UNESP-Araraquara. E-mail: mcleonel@fclar.unesp.br
2Murilo Eduardo dos Reis. possui graduação em Letras (2014) e mestrado em Estudos Literários (2018) pela Universidade Estadual Paulista. Seguindo a linha de Teorias e Crítica da Narrativa, desenvolveu trabalhos voltados para manifestações literárias da violência em narrativas dos escritores Guimarães Rosa e Rubem Fonseca. Autor do livro de contos “Identidades secretas” (Lamparina Luminosa, 2016), atua como professor de Literatura e Língua Alemã. E-mail: muriloreis86@gmail.com
1“[...] sigla que definia um conjunto de técnicas e táticas de manejo de armas brancas.” (FONSECA, 1990, p. 81).
2De acordo com Ernest Mandel (1988, p. 63), trata-se da tradução de “romance negro” para o francês; costuma ser vinculada à literatura do pós-guerra das décadas de 1940 e 1950, iniciada por Marcel Duhamel, idealizador da série de romances policiais intitulada Série noire.




quinta-feira, 16 de abril de 2020

Morre Rubem Fonseca, o contista por excelência da realidade brasileira


Rubem Fonseca


Morre Rubem Fonseca, o contista por excelência da realidade brasileira

Autor de 'Feliz ano novo’, escritor mineiro sofreu um infarto, aos 94 anos, em sua casa, no Rio de Janeiro


São Paulo - 15 ABR 2020

Rubem Fonseca, um gigante da literatura nacional e um contista por excelência, faleceu na tarde desta quarta-feira no Rio de Janeiro, a poucas semanas de completar 95 anos. O escritor sofreu um infarto em casa, no Leblon, Rio de Janeiro, e chegou a ser levado ao Hospital Samaritano, mas não resistiu.


Um dos maiores nomes da letras brasileiras da segunda metade do século XX, algumas das obras mais consagradas de Fonseca são Agosto (1990), Feliz ano novo (1976), A cólera do cão (1963) e O cobrador (1979). Sempre lúcido e criativo, publicou há dois anos Carne crua, seu último livro de contos inéditos.


Nascido em Juiz de Fora (MG) em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca mudou-se aos oito anos para o Rio, onde inaugurou uma corrente na literatura brasileira contemporânea que foi cunhada como brutalista por Alfredo Bosi, em 1975. A democratização da violência era quase um personagem a mais em suas histórias, nas quais os protagonistas eram, ao mesmo tempo, os narradores de seus infortúnios e mistérios. Seus romances têm a estrutura de narrativas policiais, muito marcadas pela oralidade, quiçá pelo fato de Fonseca ter atuado como advogado e comissário de polícia no subúrbio carioca dos anos 1950. Não à toa, muitos de seus protagonistas são delegados, inspetores, detetives particulares, advogados criminalistas. Ou escritores.

Esse tom policialesco, com crimes ou mistérios a serem desvendados, rendeu-lhe comparações com nomes como Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes. Sua obra, no entanto, também pode ser lida como uma paródia do gênero policial, já que os crimes são pano de fundo para elaboradas críticas sociais. Em certo ponto, Fonseca era um niilista na visão de uma sociedade como opressora do indivíduo: o que ele narrava era o cotidiano violento das grandes cidades e os dramas humanos que ele desencadeia.

Rubem Fonseca e Gabriel García Márquez em Guadalajara, em 2003. Naquele ano, Fonseca recebeu o prestigioso Prêmio Juan Rulfo das mãos do colombiano.
Rubem Fonseca e Gabriel García Márquez em Guadalajara, em 2003. Naquele ano, Fonseca recebeu o prestigioso Prêmio Juan Rulfo das mãos do colombiano.GUILLERMO ARIAS
Seus bandidos são amorais, aversos a qualquer sentimento de culpa, sejam ricos ou pobres. Fonseca dominava com maestria o jogo entre os arquétipos de bandido e mocinho, mas sem cair nos lugares comuns. Com frequência, é difícil saber quem em um ou outro em seus textos. Um exemplo é A grande arte, em que, tanto o leitor quanto um dos personagens, Wexler, chegam a desconfiar que o grande criminoso da história seja o mocinho Mandrake. “Pode ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido você, Mandrake”, diz ele na página 296.

O domínio das muitas nuances da alma humana permitiu-lhe escrever com a mesma verossimilhança sobre halterofilistas e executivos, marginais e financistas, delegados de polícia e assassinos profissionais, garotas de programa e pobres diabos que vagam sem destino pelas ruas do Rio de Janeiro. Se os extremos da sociedade não lhe intimidavam, muito menos o faziam as palavras. “Eu escrevi 30 livros. Todos cheios de palavras obscenas. Nós, escritores, não podemos discriminar as palavras. Não tem sentido um escritor dizer: ‘Eu não posso usar isso’. A não ser que você escreva um livro infantil. Toda palavra tem que ser usada”, disse ele em 2015 ao receber o Prêmio Machado de Assis, entregue pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Quase sempre recluso, foi um dos poucos eventos públicos aos que consentiu sua presença —outro foi em 2003, quando recebeu das mãos de Gabriel García Márquez em Guadalajara, no México, o prestigioso Prêmio Juan Rulfo.

Para Antonio Sáez Delgado, crítico literário de EL PAÍS, Fonseca foi um “mestre em examinar os labirintos da violência psicológica” através de seus personagens que vivem nos limites do mundo e de si mesmos. “Seu universo é, portanto, social e obsessivo, perturbador, com um estilo direto e penetrante, perfeitamente administrado na arte de, ao mesmo tempo, dizer e se esconder”.


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Rubem Fonseca, criador de livros precisos e brutais, morre aos 94 anos


Rubem Fonseca
Guadalajara, México, 2007
Foto de Triunfo Arciniegas

Rubem Fonseca, criador de livros precisos e brutais, morre aos 94 anos

Escritor publicou clássicos da literatura brasileira, como 'A Grande Arte' e 'Feliz Ano Novo'


SÃO PAULO
15 ABR 2020

O escritor Rubem Fonseca, autor de clássicos como "O Cobrador" e "A Grande Arte", morreu na tarde desta quarta-feira (15), no Rio de Janeiro, aos 94 anos. Ele teve uma parada cardíaca, informou o Hospital Samaritano, onde o autor foi atendido.
Conhecido por sua reclusão —e recusa a dar entrevistas—, a Rubem Fonseca normalmente é atribuída a fundação de uma nova era na ficção nacional, que se tornou mais urbana depois dele. Com os livros do autor, também chega ao país uma influência mais direta da literatura dos Estados Unidos, além da linguagem cinematográfica.
Com livros marcados pela linguagem afiada e pela violência, Zé Rubem, como era chamado pelos amigos, publicou principalmente histórias policiais, mas era um dos autores que levava gênero —muitas vezes associado ao mero entretenimento— à alta qualidade literária.
Sua histórias, nos contos ou romances, contavam muitas vezes com personagens do submundo, como prostitutas e cafetões. Seu senso de ironia conseguia torná-las ainda mais perturbadoras.
Quando estreou na literatura, nos anos 1960, com a coletânea de contos "Os Prisioneiros", sua literatura chegou a ser descrita como brutalista. O autor se tornou, por décadas, um dos poucos autores nacionais de ficção a ser um best-seller livro após livro. Ele publicou outras obras seminais da literatura urbana brasileira, como os romances "O Caso Morel" e "A Grande Arte" ou os contos de "A Coleira do Cão" e "Lúcia McCartney".
Influenciado pela linguagem cinematográfica, o caminho natural foi que parte da sua obra ganhasse adaptações no cinema e na TV. Em 1991, Walter Salles verteu para a telona "A Grande Arte". Já "Mandrake - A Bíblia e a Bengala" virou primeiro um telefilme, em 1983, e depois uma série da HBO já em 2005, com Marcos Palmeira no papel principal. A adaptação era de seu filho, o cineasta José Henrique Fonseca, que fez também de "Lúcia McCartney" uma série no GNT.
A influência de Rubem Fonseca se projetou de forma sólida sobre a literatura brasileira. Em alguns casos, apadrinhou diretamente escritores que desenvolveram uma carreira de sucesso, caso de Patrícia Melo e Ana Miranda. Do outro lado, também gerou uma série de imitadores baratos de seu estilo.
Recebeu alguns prêmios Jabuti e, em 2003, o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua portuguesa. Em 2015, ganhou o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. A cerimônia de entrega foi uma das raras aparições públicas do autor. "Sou um homem idiossincrático e idiossincrasias não se explicam", disse na ocasião.
O escritor chegou a planejar com sua editora, a Nova Fronteira, as comemorações para seus 95 anos, que seriam comemorados em maio. Os livros devem sair com novo projeto gráfico e prefácios. Sua obra antes era publicada pela Companhia das Letras, mas ele deixou a editora em 2009, após um rompimento nunca esclarecido.
José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1925, viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro —e, mesmo recluso, se tornou um dos personagens da cidade. Morador do Leblon, não era incomum vê-lo levemente disfarçado em caminhadas matinais, com boné e óculos escuros.
Sua reclusão gerou anedotas. Por exemplo, há a história clássica de um repórter de TV que, cobrindo a queda do Muro de Berlim, em 1989, resolve entrevistar um brasileiro que por ali passava. Aos ser questionado sobre seu nome, o tal brasileiro responde: "José Rubem". O jornalista conversa com o escritor sem se dar conta de sua real identidade.
O lançamento de "Feliz Ano Novo", em 1975, e proibição posterior geraram uma das polêmicas mais rumorosas envolvendo um escritor no regime militar. O livro trazia cinco contos com o estilo que consagrou Fonseca, com os personagens urbanos e do submundo dos quais ele gostava de tratar, como um milionário que atropela pessoas de noite.
A obra já tinha saído há um ano e sido um best-seller quando a ditadura o proibiu, acusando o autor de atentar contra a moral e os bons costumes. Fonseca processou a União, mas o livro só voltaria às prateleiras em 1989, após a reabertura.
Sobre a ditadura, há um período da biografia de Fonseca que nunca ficou totalmente esclarecido, sua passagem pelo Ipes (Instituto de Pesquisa Econômica e Social), órgão que ofereceu apoio ao golpe de 1964 ao regime que se seguiu a ele. Criado por empresários na oposição a João Goulart, o instituto produzia, por exemplo, propaganda anticomunista.
Rubem Fonseca chegou a ser diretor do Ipes. Em artigo publicado na Folha nos anos 1990, o autor disse que a organização se dividia entre duas alas —uma que defendia uma solução política com o uso da força e outra que era democrática. Ele, que dizia ser parte da segunda ala, também costumava afirmar que cortou qualquer relação com o Ipes em 1964.
Em 2009, contudo, a professora Aline Pereira, da Universidade Federal Fluminense, levantou documentos do Ipes preservados no Arquivo Nacional que mostravam a ligação do autor com o instituto mesmo após o golpe. Em 1965, uma carta lamentava sua exoneração da diretoria. Outros papéis mostravam sua relação com o Ipes pelo menos até 1970, inclusive com contribuições financeiras.
Advogado de formação, ele foi policial nos anos 1950, experiência que alimentou sua literatura. Em 1995, a Folha fez uma pesquisa de dois meses nos arquivos da polícia do Rio de Janeiro além de ter colhido depoimentos de seis policiais que trabalharam com ele. O caso de uma vaca vítima de um atropelamento que é devorada por pessoas famintas, narrado em "Relato de Ocorrência", conto de "Lúcia McCartney", por exemplo, é inspirado numa história real —o caso aconteceu em 1953, quando Fonseca trabalhava no 24º Distrito Policial, em Madureira, zona norte do Rio.
Em 5 de agosto de 1954, já perto da meia-noite, o ainda policial tomava um copo de leite perto da rua Toneleros, em Copacabana. Foi por pouco que não viu o tiro que Carlos Lacerda sofreu naquela rua, atentado que foi o início da crise política que terminaria com o suicídio de Getulio Vargas. Fonseca e seus colegas policiais chegaram a ir para o local descobrir o que tinha acontecido, mas foram dormir na sequência. A morte de Vargas é o pano de fundo do romance histórico "Agosto".
FOLHA DE S. PAULO




CUENTOS
Los prisioneros (1963)
Rubem Fonseca / Febrero o marzo
El cobrador (1979)
Rubem Fonseca / El cobrador
Novela negra y otras historias (1992)
Rubem Fonseca / Mirada
Historias de amor (1997)
Rubem Fonseca / Betsy
La cofradía de los Espadas (1998)
Secreciones, excreciones y desatinos (2001)
Pequeñas criaturas (2002)
Ella y otras mujeres (2006)
Rubem Fonseca / Ella
Rubem Fonseca / Joana
Axilas y otras historias indecorosas (2011)

Os prisioneiros (1963) 
A coleira do cão (1965) 
Romance negro e outras histórias (1992) 
O buraco na parede (1995)
Rubem Fonseca / Cidade de Deus
Cofraia dos Espadas (1998)
Rubem Fonseca / O vendedor de seguros
Secreções, excreções e desatinos (2001)
Pequenas criaturas (2002)
Diário de um Fescenino (2003)
64 Contos de Rubem Fonseca 2004)
Ela e outras mulheres (2006)
Rubem Fonseca / Teresa
Axilas y otras historias indecorosas (2011)
Rubem Fonseca / O ensina da gramática

DRAGON

DANTE

RACCONTI