sábado, 4 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Fevereiro ou março

Clovis
Carnaval de Rio de Janeiro 2013
Foto de Triunfo Arciniegas
Rubem Fonseca
Fevereiro ou março


A condessa Bernstroff usava uma boina onde dependurava uma medalha do kaiser. Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão aqui no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia. Vê minha perna, dizia ela, como é dura. Era uma perna redonda e forte, com dois costureiros salientes e sólidos. Um verdadeiro mistério. Me explica esse mistério, perguntava eu, bêbado e agressivo. Esgrima, explicava a condessa, fiz parte da equipe olímpica austríaca de esgrima - mas eu sabia que ela mentia.
Um miserável como eu não podia conhecer uma condessa, mesmo que ela fosse falsa; mas essa era verdadeira; e o conde era verdadeiro, tão verdadeiro quanto o Bach que ele ouvia enquanto tramava, por amor aos esquemas e ao dinheiro, o seu crime.
Era de manhã, no primeiro dia de carnaval. Ouvi dizer que certas pessoas vivem de acordo com um plano, sabem tudo o que vai acontecer com elas durante os dias, os meses, os anos. Parece que os banqueiros, os amanuenses de carreira e outros homens organizados fazem isso. Eu - eu vaguei pela rua, olhando as mulheres. De manhã não tem muita coisa para ver. Parei numa esquina, comprei uma pêra, comi e comecei a ficar inquieto. Fui para a academia.
Isso eu me lembro muito bem: comecei com um supino de noventa quilos, três vezes oito. O olho vai saltar, disse Fausto, parando de se olhar no espelho grande da parede e me espiando enquanto somava os pesos da barra. Vou fazer quatro séries pro peito, de cavalo, e cinco para o braço, disse eu, série de massa, menino, pra homem, vou inchar.
E comecei a castigar o corpo, com dois minutos de intervalo entre uma série e outra para o coração deixar de bater forte; e eu poder me olhar no espelho e ver o progresso. E inchei: quarenta e dois de braço, medidos na fita métrica.
Então Fausto explicou: eu vou vestido de melindrosa e mais o Sílvio, e o Toão, e o Roberto, e o Gomalina. Você não fica bem de mulher, tua cara é feia, você vai na turma de choque, você, o Russo, Bebeto, Paredón, Futrica e o João. O povo cerca a gente pensando que somos bichas, nós estrilamos com voz fina, quando eles quiserem tascar, a gente, e mais vocês, se for preciso, põe a maldade pra jambrar e fazemos um carnaval de porrada pra todo lado. Vamos acabar com tudo que é bloco de crioulo, no pau, mesmo, pra valer. Você topa?
Sílvio já se vestia de melindrosa, pintava os lábios de batom. O ano passado, dizia ele, mulher às pampas botou bilhetinho na minha mão, com telefone; quase tudo puta, mas tinha uma que era mulher do seu bacana, andei com ela mais de seis meses, me deu um relógio de ouro.
Ele passava, disse Russo, e virava a cabeça de tudo quanto era mulher. Não havia mulher que não olhasse o Sílvio na rua. Ele devia ser artista de cinema.
Como é? Você topa?, insistiu Fausto.
A essa altura o conde Bernstroff e o seu mordomo já deviam ter feito os planos para aquela noite. Nem eu, nem a condessa sabíamos de nada; eu nem mesmo sabia se iria sair quebrando a cara de pessoas que não conhecia. É o lado ruim do sujeito não ser banqueiro ou amanuense do Ministério da Fazenda.
De tarde, sábado, a cidade ainda não estava animada. As cinco melindrosas requebravam sem entusiasmo e sem graça. Os blocos na cidade se formam assim: uma bateria de alguns surdos, várias caixas e tamborins e às vezes uma cuíca saem batendo pela rua, os sujos vão chegando, juntando, cantando, se avolumando e o bloco cresce.
Surgiu uma bateria assim na nossa frente. Seis sujeitos descalços, caminhando lentamente, enquanto batiam no couro. Moreno, meu moreno gostoso, me empresta teu tambor, disse Sílvio. Os homens fizeram uma pequena parada e pensaram, e mudaram o pensamento, a mão de Sílvio agarrou o pescoço de um deles, me dá esse tambor, seu filho-da-puta. Como um raio as melindrosas caíram em cima da bateria. Só no tapa, só no tapa!, gritava Sílvio, que eles são fracos. Mesmo assim um ficou no chão, caído de costas, um pequeno tamborim na mão fechada. Um tapa do Sílvio arrebentava porta de apartamento de sala e quarto conjugados.
Tínhamos vários tambores, que batíamos sem ritmo. A cuíca, como ninguém sabia tocar, Russo arrebentou com um soco. Um soco só, bem no meio, fez a coisa em pedaços. Depois Russo andou dizendo que a mão dele tinha inchado de bater na cara de um malandro tinhoso na praça Onze. Eu não sei, pois não fui para a praça Onze, depois daquilo que aconteceu no aterro eu me desliguei do grupo e acabei encontrando a condessa, mas acho que a mão dele inchou foi de arrebentar a cuíca, pois cara de malandro não incha a mão de ninguém.
Uma mulher tinha chegado e dito, me leva com vocês, nunca vi tanto homem bonito junto; e se agarrava na gente, metia a unha no braço da gente. Fomos para o aterro e ela dizia, me fode, mas não me maltrata, com meiguice, como se estivesse falando para o namorado; e isso ela falou para o terceiro, e o quarto sujeito que andou com ela; mas para mim, estendendo a mão de unhas sujas e pintadas de vermelho, ela disse, homem bonito, meu bem - e riu, um riso limpo; eu não pude fazer nada, e vesti a mulher, joguei fora o lança-perfume que ela cheirava, e disse para todos ouvirem, chega, e olhei nos olhos azuis pintados de Sílvio e disse para ele, baixo, a voz lá do fundo, ruim - chega. Russo segurou Sílvio com força, o tríceps saltando como se fosse uma bigorna. Ele vai levar a mulher, disse Sílvio, puxando peito; mas ficou nisso; levei a mulher.
Fui andando com a mulher pela beira-mar. No princípio ela cantava, depois calou a boca. Então eu disse para ela, agora você vai para casa, ouviu, se eu te encontrar zanzando por aí eu te quebro os cornos, entendeu?, vou te seguir, se você não fizer o que eu estou mandando você vai se arrepender - e agarrei o braço dela com toda a força, de maneira que ficasse doendo os três dias de carnaval e mais uma semana de quebra. Ela gemeu e disse que sim, e foi andando, eu seguindo, na direção do bonde, atravessou a rua, pegou o bonde que vinha vazio de volta da cidade, olhou para mim, eu fiz cara feia, o bonde foi embora, ela arriada num banco, um bucho.
Voltei para a praia, com vontade de ir para casa, mas não para a minha casa, pois a minha casa era um quarto e no meu quarto não tinha ninguém, só eu mesmo. E fui andando, andando, atravessei a rua, começou a cair uma chuvinha e onde eu estava não havia carnaval, só edifícios grã-finos e silenciosos.
Foi então que eu conheci a condessa. Ela chegou na janela gritando e eu não sabia que ela era condessa nem nada. Gritava, uma palavra que era socorro, mas soava esquisita. Corri para o edifício, a portaria estava vazia: voltei para a rua, mas não tinha mais ninguém na janela; calculei o andar e subi pelo elevador.
Era um edifício bacana, cheio de espelhos. O elevador parou, eu toquei a campainha. Um sujeito de roupa a rigor abriu a porta, sim, o que o senhor deseja?, me olhando com ar superior. Tem uma mulher aí na janela pedindo socorro, disse eu. Ele me olhou como se eu tivesse dito um palavrão - socorro?, aqui? Eu insisti, aqui sim, da sua casa. Sou o mordomo, falou ele. Aquilo tirou a minha autoridade, eu nunca tinha visto um mordomo em minha vida. O senhor está enganado, disse ele e eu já me dispunha a ir embora quando surgiu a condessa, com um vestido que na ocasião eu pensei que era um vestido de baile, mas que depois eu vi que era roupa de dormir. Fui eu sim, pedi socorro, entre, por favor, entre.
Foi me levando pela mão e dizendo, o senhor vai me fazer um grande favor, revistar essa casa, há uma pessoa escondida aqui dentro que quer o meu mal, o senhor não tenha medo, não, é tão forte, e tão moço, vou chamá-lo de você. Eu sou a condessa Bernstroff.
Comecei a revistar a casa. Eram salões enormes, cheios de luzes, pianos, quadros nas paredes, lustres, mesinhas e jarras e jarrões e estatuetas e sofás e poltronas enormes onde cabiam duas pessoas. Não vi ninguém, até que, numa sala menor, onde uma vitrola tocava música muito alto, um homem de casaco de veludo levantou-se quando abri a porta e disse calmamente, colocando um monóculo no olho, boa noite.
Boa noite, disse eu. Conde Bernstroff, disse ele, estendendo a mão. Depois de me olhar um pouco ele deu um sorriso que não era para mim, que era para ele mesmo. Com licença, disse ele, Bach me transforma num egoísta, e me virou as costas e sentou-se numa poltrona, a cabeça apoiada na mão.
Para falar com toda a franqueza eu fiquei confuso, agora mesmo ainda estou confuso, pois já esqueci muitas coisas, a cara do mordomo, a medalha do kaiser, o nome da amiga da condessa, com quem deitei na cama, juntamente com a condessa, no apartamento do Copacabana Palace. Além do mais, antes de sairmos, ela me deu uma garrafa cheia de Canadian Club que eu bebi quase toda dentro do carro quando ia para Copacabana, me sentindo como um lorde: mas saltei direitinho do carro e subimos para o apartamento e tenho a impressão que nós três nos divertimos bastante no quarto da amiga da condessa, mas dessa parte eu me esqueci completamente.
Acordei com uma dor de cabeça danada e duas mulheres na cama. A condessa queria ir para casa me mostrar um bicho que queria morder ela e que tinha invadido a sua casa e que ela tinha trancado dentro do piano de cauda. Voltamos de táxi, nem sei que horas eram pois estava sem fome e tanto podiam ser dez como três horas da tarde. Ela foi direto para o piano e não encontrou nada. Eu devia ter mostrado ontem, dizia ela, agora eles já o tiraram daqui, eles são muito espertos, são diabólicos. Que bicho era esse, perguntei, uma dor de cabeça terrível nem me deixava pensar direito, mal podia abrir os olhos. É uma espécie de barata grande, disse a condessa, com um ferrão de escorpião, dois olhos salientes e pernas de besouro. Eu não conseguia imaginar um bicho assim, e disse para ela. A condessa sentou-se numa das cinqüenta mesinhas que tinha em casa e desenhou o bicho para mim, uma coisa muito esquisita, num papel de seda azul, que eu dobrei e guardei no bolso e perdi. Já perdi muita coisa em minha vida, mas a coisa que eu mais lamento ter perdido foi o desenho do bicho que a condessa fez, e fico triste só em pensar nisso.
A condessa fazia a minha barba quando o conde apareceu, de monóculo e dizendo bom-dia. A condessa fazia a barba melhor do que qualquer barbeiro; uma navalha afiada que roçava a cara da gente como se fosse uma esponja, e depois ela fez massagem no meu rosto com um líquido cheiroso; e massagem no meu trapézio e nos meus deltóides melhor que o Pedro Vaselina, da academia. O conde olhava isso tudo com um certo desinteresse, dizendo, ela deve simpatizar muito com você para lhe fazer a barba, há anos que ela não faz a minha. A isso a condessa respondeu irritada: você sabe muito bem por quê; o conde encolheu os ombros como se não soubesse de nada e foi saindo e da porta disse para mim, gostaria de lhe falar depois.
Quando o conde saiu a condessa me disse: ele quer comprá-lo, ele compra todo mundo, o dinheiro dele está acabando, mas ele ainda tem algum, muito pouco, e isso ainda o deixa mais desesperado, pois o tempo está passando e eu ainda não morri e se eu não morrer ele fica sem nada, pois eu não lhe dou mais dinheiro; e ele já está velho, quantos anos você pensa que ele tem, ele podia ser meu pai, e daqui a pouco ele já não pode mais beber, fica surdo e não pode ouvir música; o tempo, depois de mim, é o maior inimigo que ele tem; já viu como ele me olha? um olho frio de peixe caçador, esperando um momento para liquidar sem misericórdia a sua presa; você entende, um dia eles me jogam da janela, ou me dão uma injeção quando eu estiver dormindo e depois ninguém mais se lembrará de mim e ele pega o meu dinheiro todo e volta para a terra dele para ver a primavera e as flores no campo que ele tanto me pediu, com lágrimas nos olhos, para rever; lágrimas fingidas, eu sei, seu lábio nem tremia; e eu podia ir embora, largá-lo sozinho, sem nada, nem mesmo oportunidade para os seus planos sinistros, um pobre-diabo; acho até que ele já está começando a ficar surdo, as músicas que ele ouve ele sabe de cor e por isso talvez nem tenha percebido que está ficando surdo - e a condessa foi por aí afora dizendo que alguma coisa ia acontecer naqueles dias e que ela estava muito horrorizada e que nunca tinha se sentido tão excitada em toda a sua vida, nem mesmo quando fora amante do príncipe Paravicini, em Roma.
Fui procurar o conde enquanto a condessa tomava banho. Ele me perguntou muito delicado, mas direto, como quem quer ter uma conversa curta, onde eu ganhava o meu dinheiro. Eu expliquei para ele, também curto, que para viver não é preciso muito dinheiro; que o meu dinheiro eu ganhava aqui e ali. Ele punha e tirava o monóculo, olhando pela janela. Continuei: na academia eu faço ginástica de graça e ajudo o João, que é o dono, que ainda me dá um dinheirinho por conta; vendo sangue pro banco de sangue, não muito para não atrapalhar a ginástica, mas sangue é bem pago e o dia em que deixar de fazer ginástica vou vender mais e talvez viver só disso, ou principalmente disso. Nessa hora o conde ficou muito interessado e quis saber quantos gramas eu tirava, se eu não ficava tonto, qual era o meu tipo de sangue e outras coisas. Depois o conde disse que tinha uma proposta muito interessante para me fazer e que se eu aceitasse eu nunca mais precisaria vender sangue, a não ser que eu já estivesse viciado nisso, o que ele compreendia, pois respeitava todos os vícios.
Não quis ouvir a proposta do conde, não deixei que ele a fizesse; afinal eu tinha dormido com a condessa, ficava feio me passar para o outro lado. Disse para ele, nada que o senhor tenha para me dar me interessa. Tenho a impressão que ele ficou magoado com o que eu disse, pois deixou de me encarar e ficou olhando pela janela, um longo silêncio que me deixou inquieto. Por isso, continuei, não vou ajudar o senhor a fazer nenhum mal à condessa, não conte comigo para isso. Mas como?, exclamou ele, segurando o monóculo delicadamente na ponta dos dedos como se fosse uma hóstia, mas eu só quero o bem dela, eu quero ajudá-la, ela precisa de mim, e também do senhor, deixe-me explicar tudo, parece que uma grande confusão está ocorrendo, deixe-me explicar, por favor.
Não deixei. Fui-me embora. Não quis explicações. Afinal, elas de nada serviriam.

Rubem Fonseca
Os prisioneiros (1963) 



José RUBEM FONSECA nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1925. Formou-se em direito pela antiga Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, cidade onde mora desde os 8 anos de idade. Exerceu várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura, entre elas a de comissário de polícia, em São Cristóvão (RJ). Foi policial de gabinete durante a maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado, em 1958. Estudou administração e comunicação nas universidades de Nova York e Boston (EUA). Foi professor da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e escreveu críticas de cinema na revista Veja (1967). Seu primeiro livro de contos foi Os Prisioneiros (1963). Seguiram-se A Coleira do Cão (1965) e Lucia McCartney (1967). Feliz Ano Novo (1975) foi proibido pela censura, durante o regime militar. O romance Agosto (1990) fez grande sucesso e foi transformado em minissérie para televisão. Rubem Fonseca é extremamente reservado, avesso a entrevistas e fotos. Já recebeu diversos prêmios, incluindo alguns ligados ao cinema, área em que trabalhou como roteirista. Entre os filmes mais conhecidos de que participou, estão Stelinha e A Grande Arte, adaptado do livro homônimo. É autor de O Cobrador (1979); Bufo & Spallanzani (1986); Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988); O Buraco na Parede (1995); e Diário de um Fescenino (2003), entre outros.



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