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sábado, 5 de novembro de 2016

Shakespeare exagerou a deformidade do rei Ricardo III


Retrato do rei Ricardo III do século XVI. NATIONAL PORTRAIT GALLERY

Shakespeare exagerou a deformidade do rei Ricardo III

A descrição física do monarca que o escritor brindou à literatura universal foi pura invenção



PATRICIA TUBELLA
Londres 30 MAI 2014 - 10:01 COT

Ricardo III não mancava e, longe desse físico deformado pela importuna que vieram replicando em cena os mais ilustre atores shakesperianos, na verdade era um homem de presença atraente. Mais de cinco séculos depois de sua morte no fragor da batalha, as novas tecnologias permitiram reconstruir em três dimensões a ossatura do rei inglês a partir do surpreendente achado de seus restos mortais, faz dois anos, em um estacionamento da cidade de Leicester. Em outras palavras, a descrição física do monarca que o escritor brindou à literatura universal foi pura invenção.
O Ricardo que aos 32 anos perdeu a vida na batalha de Bosworth, enfrentando Enrique Tudor, “tinha a coluna vertebral debilitada, mas não a sobressaía de forma óbvia”, sustenta Piers Mitchell, professor do Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge e um dos autores do estudo publicado nesta semana pela revista The lancet. Sim padecia escoliose, um desvio lateral da coluna vertebral dentre 65 e 85 graus, mas esse quadro médico não se corresponde com a fisionomia de um corcunda. Os especialista estão convencidos de que foi um “indivíduo ativo” cujo giro “espiral” na coluna não foi impedimento para que atuasse como um grande guerreiro no campo de batalha. Foi o último monarca inglês que morreu combatendo (1485).





Os especialistas lembram agora que os relatos sobre a aparência de Ricardo III que se escreveram durante sua vida o apresentavam –ao contrário da imagem projetada na célebre obra de Shakespeare- como um personagem bem apessoado. Essa descrição ajusta-se ao retrato de um homem “inusualmente esbelto, quase feminino” que se desprendia das primeiras análises científicas feitas em seus restos alguns meses após ser localizados no estacionamento de uma cidade inglesa de províncias. Desde então, a figura desse rei não deixou de se apropriar de manchetes como protagonista de uma história quase incrível.
Primeiro foi encontrado o esqueleto e o crânio em tão incomum localização por uma equipe de arqueólogos, logo a incredulidade de muitos e finalmente a sentença das provas de carbono que permitiram datar os restos entre 1455 e 1540, comparar suas características com os detalhes conhecidos sobre o físico de Ricardo e, sobretudo, comparar seu DNA com o de um descendente direto de sua família. Esse parente do rei inglês é um carpinteiro canadense que vive no Reino Unido há 25 anos, Michael Ibsen, identificado como membro da décima sétima geração de descendentes de Ana de York, a irmã de Ricardo. Seu DNA corresponde com o extraído dos ossos do monarca.
À aceitação geral dessas conclusões seguiu no tempo um embate em torno do enterrodos restos de Ricardo III em grande estilo, o que foi resolvido há uma semana. O último rei da dinastia Plantagenet será finalmente enterrado na catedral de Leicester (centro) e não na cidade setentrional de York, como pretendiam seus descendentes, após a decisão da Alta Corte de Londres na sexta-feira passada.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Christopher Marlowe / O outro gênio por trás das obras de Shakespeare

Retrato de Christopher Marlowe


O outro gênio por trás das obras de Shakespeare

Estudo afirma que Christopher Marlowe foi coautor de ‘Enrique VI’ com o mestre britânico


PATRICIA TUBELLA
Londres 24 OUT 2016 - 14:07 COT






Sobre a vida do dramaturgo, poeta e tradutor inglês Christopher Marlowe há muitas especulações e poucas certezas, para além do consenso de que ele foi um colaborador, uma influência e também um forte rival de William Shakespeare nos tempos elisabetanos. Mas uma equipe internacional de pesquisadores chegou à conclusão de que a cooperação entre eles foi bem mais estreita, a ponto de se atribuir, agora, a Marlowe nada mais nada menos do que a coautoria das três partes de Enrique VI, assinada pelo Bardo.



Os dois homens recebem conjuntamente os créditos como autores desse drama histórico na nova edição do New Oxford Shakespeare, cujos quatro volumes que reúnem a produção completa de Shakespeare serão lançados em o final de outubro e dezembro. “Conseguimos confirmar a participação de Marlowe nas três obras de forma bastante clara e consistente”, afirmou ao jornal The Guardian o professor norte-americano Gary Taylor, um dos coordenadores da equipe de 23 especialistas provenientes de cinco países que defende essa tese.
Recorrendo às modernas ferramentas digitais para analisar os textos, o estudo conseguiu estabelecer que a colaboração de Shakespeare com diversos autores foi muito mais ampla do que se acreditava até agora, e que outras mãos participaram de até 17 das 44 obras do Bardo. Esse número mais do que dobra a estimativa registrada n a edição anterior do New Oxford Shakespeare, de trinta anos atrás. Quando a prestigiosa publicação da Oxford University Press determinou, então, a colaboração externa em oito trabalhos shakespearianos, alguns setores do mundo acadêmico “se disseram indignados”, lembrou Taylor ao jornal. Pois bem, afirma o professor agora, jogando mais lenha na fogueira, “em 1986 nós subestimamos o volume dos trabalhos realizados em colaboração”, os quais, segundo as conclusões do mais recente estudo, estariam próximos de 38% de toda a sua obra. 
A figura de Christopher Marlowe (cuja data de nascimento é desconhecida, embora se saiba que foi batizado em Canterbury em 26 de fevereiro de 1564) já foi objeto de todo tipo de teorias conspirativas baseadas em vários aspectos obscuros de sua biografia e de sua própria morte, ocorrida quando ele contava com apenas 29 anos de idade (1593). Entre elas, a de que o autor de Dido, Rainha de Cartado ou Doutor Fausto teria simulado o seu falecimento para continuar escrevendo sob o nome de William Shakespeare. Em outras palavras, que Shakespeare não escreveu as obras de Shakespeare, mas sim Marlowe. Essa teoria encontra a resistência de um setor do mundo acadêmico de admitir quer o Bardo tenha produzido várias de suas peças em coautoria, uma prática, na verdade, muito comum nos tempos do teatro elisabetano.

A forma como Shakespeare e esses outros autores dividiam entre si os enredos e personagens, compunham os seus respectivos trabalhos ou unificavam estilos, tudo isso são elementos que os estudiosos ainda não conseguiram detectar. Mas o que parece claro para a equipe de acadêmicos que continua a esquadrinhar o legado do maior dramaturgo de todos os tempos é que as três partes de Enrique VI foram finalizadas a quatro mãos: as de Shakespeare e as da nebulosa personalidade de Christopher Marlowe.
EL PAÍS

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

Ilustração de Ana Juan.
400 ANOS DA MORTE DE DOIS GÊNIOS

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

A coincidência da morte de dois gigantes da literatura incentiva a busca por identidade comum


ALBERTO MANGUEL
16 ABR 2016 - 14:15 COT



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Nossa aptidão para ver constelações de estrelas distantes entre si, e geralmente mortas, aparece em outras áreas de nossa vida sensível. Agrupamos em uma mesma cartografia imaginária marcos geográficos diferentes, feitos históricos isolados, pessoas cujo único ponto em comum é um idioma ou um aniversário compartilhado. Criamos circunstâncias cujas explicações podem ser encontradas apenas na astrologia ou na quiromancia, e a partir dessas assombrações, tentamos responder a velhas perguntas metafísicas sobre o azar e a sorte. O fato de que as mortes de William Shakespeare e Miguel de Cervantes sejam quase coincidentes faz com que não apenas associemos os dois personagens singulares em comemorações oficiais obrigatórias, como também busquemos nesses seres tão diferentes uma identidade em comum.
Do ponto de vista histórico, suas realidades foram notoriamente distintas. A Inglaterra de Shakespeare transitou entre a autoridade de Isabel e a de Jaime, a primeira de ambições imperiais e a segunda de preocupações internas, características que se refletiram em obras como Hamlet e Julio César, por um lado, e em Macbeth e O Rei Lear, por outro. O teatro era uma arte menosprezada na Inglaterra: quando Shakespeare morreu, depois de ter escrito algumas das obras que hoje em dia consideramos universalmente imprescindíveis para nossa imaginação, não houve cerimônias oficiais em Stratford-upon-Avaon, nenhum de seus contemporâneos europeus escreveu uma elegia em sua homenagem, e ninguém na Inglaterra propôs que fosse sepultado na abadia de Westminster, onde jazem escritores célebres como Edmund Spenser e Geoffrey Chaucer. Shakespeare era (segundo seu quase contemporâneo John Aubrey) filho de um açougueiro, e quando era adolescente, gostava de recitar poemas diante dos perturbados matadouros. Foi ator, empresário teatral, cobrador de impostos (como Cervantes) e não sabemos com certeza se alguma vez viajou para outro país. A primeira tradução de uma de suas obras apareceu na Alemanha, em 1762, quase um século e meio depois de sua morte.

O espanhol do autor de Dom Quixote é despreocupado, generoso, esbanjador. Importa mais o que conta que como o conta

Cervantes viveu em uma Espanha que estendia sua autoridade sobre a parte do Novo Mundo a que tinha direito pelo Tratado de Tordesilhas, com a cruz e a espada, decapitando “um número infinito de almas”, disse o padre Las Casas, para “inchar-se de riquezas em um curto espaço de dias e elevar-se a estados muito altos e sem proporções de seu povo” com a “insaciável cobiça e ambição que tiveram, que foi maior do que o mundo poderia ser”. Com sucessivas expulsões de judeus e árabes, convertendo-os em seguida, a Espanha tentou inventar uma identidade cristã pura para si própria, negando a realidade de suas raízes entrelaçadas. Em tais circunstâncias, Dom Quixote foi um ato subversivo, com a entrega da autoria do que seria a obra-prima da literatura espanhola a um mouro, Cide Hamete, e com o testemunho do mourisco Ricote denunciando a infâmia das medidas de expulsão. Miguel de Cervantes (conta ele mesmo) foi “soldado por muitos anos e preso durante cinco anos e meio. Perdeu a mão esquerda com um tiro de mosquete na batalha de Lepanto, uma ferida que, embora pareça feia, foi tratada como bela”. Teve missões na Andaluzia, foi cobrador de impostos (como Shakespeare), ficou preso em Sevilha, foi membro da Congregação de Escravos do Santíssimo Sacramento, e mais tarde, noviço da Terceira Ordem. Quixote tornou-o tão famoso que, quando escreveu a segunda parte, disse ao bacharel Carrasco, e sem exageros, “que tenho para mim que atualmente foram impressos mais de doze mil livros dessa história; senão, diga isso a Portugal, Barcelona e Valência, onde eles foram impressos; e ainda há boatos de que está sendo impresso na Antuérpia, e para mim se verifica que não haverá nação ou língua em que ela não será traduzida”.

Dom Quixote desenhado por Robert Smirke para uma tradução inglesa de 1818. O pintor britânico ilustrou tanto a novela de Cervantes quanto os dramas de Shakespeare.


A língua de Shakespeare havia chegado ao seu ponto mais alto. A confluência das línguas germânicas e latinas e o riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiram que Shakespeare alcançasse assombrosas extensão sonora e profundidade epistemológica. Quando Macbeth afirma que sua mão ensanguentada “faria púrpura do mar universal, tornando rubro o que em si mesmo é verde”, (“the multitudinous seas incarnadine / Making the green one red”), os lentos epítetos multissilábicos latinos são contrapostos aos bruscos e contundentes monossílabos saxões, ressaltando a brutalidade do ato. Instrumento da Reforma Protestante, a língua inglesa foi submetida a um severo escrutínio pelos censores. Em 1667, na História da Real Sociedade de Londres, o bispo Sprat alertou sobre os perigos sedutores dos extravagantes labirintos do barroco e recomendou o retorno à primitiva pureza e brevidade da linguagem, “quando os homens comunicavam um certo número de coisas em um número igual de palavras”. Apesar dos magníficos exemplos do barroco inglês - sir Thomas Browne, Robert Burton, o próprio Shakespeare, claro -, a Igreja anglicana exigia exatidão e concisão, que permitiriam aos eleitos o entendimento da Verdade Revelada, como havia feito a equipe de tradutores da Bíblia por ordem do rei Jaime. Shakespeare, no entanto, conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo. A acumulação de metáforas, a profusão de adjetivos, as mudanças de vocabulário e de tom aprofundam e não diluem o sentido de seus versos. O talvez famoso demais monólogo de Hamlet seria impossível em espanhol porque exige escolher entre o ser e o estar. Em seis monossílabos ingleses, o príncipe da Dinamarca define a preocupação essencial de todo ser humano consciente; Calderón, no entanto, precisa de 30 versos espanhóis para dizer a mesma coisa.

O mestre de Avon conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo

O espanhol de Cervantes é despreocupado, generoso, esbanjador. Ele se importa mais com o que conta do que com como conta, e menos com como conta do que com o puro prazer de alinhavar palavras. Frase após frase, parágrafo após parágrafo, é na fluência das palavras que viajamos pelos caminhos de sua Espanha empoeirada e difícil, e seguimos as violentas aventuras do herói justiceiro e reconhecemos os personagens vivos de Dom Quixote e Sancho. As inspiradas e sinceras declarações do primeiro e as vulgares e não menos sinceras palavras do segundo cobram vigor dramático na enxurrada verbal que as arrasta. Essencialmente, a máquina literária inteira de Dom Quixoteé mais verossímil, mais compreensível, mais vigorosa que qualquer uma de suas partes. As citações cervantinas extraídas de contexto parecem quase banais; a obra completa é talvez o melhor romance que já foi escrito e o mais original.
Se quisermos ceder ao nosso impulso associativo, podemos considerar esses dois escritores como opostos ou complementares. Podemos ver um deles à luz (ou à sombra) da Reforma e o outro da Contrarreforma. Podemos ver um deles como mestre de um gênero popular e de pouco prestígio e o outro como mestre de um gênero popular e de prestígio. Podemos vê-los como iguais, artistas empregando os métodos à disposição para criar obras iluminadas e geniais, sem saber que eram iluminadas e geniais. Shakespeare nunca reuniu os textos de suas obras teatrais (a tarefa ficou a cargo de seu amigo Bem Jonson), e Cervantes estava convencido que sua fama dependeria da Viagem de Parnaso, e de Persiles e Sigismunda.

O riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiu a Shakespeare uma extensão sonora e uma profundidade epistemológica assombrosas

Esses dois monstros se conheceram? Podemos suspeitar que Shakespeare ouviu falar de Dom Quixote e que o leu, ou leu ao menos o episódio de Cardenio, que converteu em uma peça que hoje em dia está perdida; Roger Chartier investigou detalhadamente essa tentadora hipótese. A resposta provavelmente é não, mas, se o encontro aconteceu, é possível que nenhum dos dois tenha reconhecido o outro como uma estrela de importância universal, ou que simplesmente não admitiram outro corpo celeste de igual intensidade e tamanho nas suas órbitas. Quando Joyce e Proust encontraram-se, trocaram três ou quatro banalidades, Joyce queixou-se de suas dores de cabeça, e Proust de suas dores no estômago. Talvez tenha acontecido algo semelhante com Shakespeare e Cervantes.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Javier Marías / Shakespeare, o maior inspirador

Shakespeare, o maior inspirador

Fonte inesgotável de fertilidade literária, o dramaturgo e poeta inglês continua sendo o escritor que corre mais pelas veias dos autores do presente

Um estímulo que alimenta romances, filmes ou séries de televisão

Embora o seu nascimento tenha sido registrado em 26 de abril de 1564, ele teria nascido entre 19 e 25 do mesmo mês



Sei de numerosos escritores que leram os maiores autores de sua juventude – talvez quando eram apenas leitores – e jamais voltaram a lê-los. Em parte eu entendo: é assustador, dissuasório, inclusive deprimente, olhar para as páginas mais sublimes da história da literatura. “Existindo isso”, diz um (eu, o primeiro), “qual é o sentido de eu preencher páginas com minhas besteiras? Não só nunca chegarei a esta altura ou a esta profundidade, como na realidade é supérfluo acrescentar uma só letra. Quase tudo já foi dito, e, além disso, da melhor maneira possível”.


agustín sciammarella


Sua grandeza e seu mistério me convidam a escrever, me estimulam, inclusive me dão ideias

Há escritores, portanto, que para sobreviver como tal e encontrar a coragem para passar meses ou anos diante do computador ou máquina de escrever precisam fingir que não existiram Shakespeare, nem Cervantes, nem Dante, nem Proust, nem Faulkner, nem Montaigne, nem Conrad, nem Hölderlin, nem Flaubert, nem James, nem Dickens, nem Baudelaire, nem Eliot, nem Melville, nem Rilke, nem provavelmente muitos outros. A última coisa que vem à mente deles é voltar aos seus textos, pelo menos enquanto trabalham, porque o pensamento consequente costuma ser: “Melhor que eu fique calado e não dou às exaustas editoras mais uma obra: já existem tantas e a maioria é desnecessária. Por cálculo de probabilidades, certamente as minhas também”.
Para aqueles que estão ativos, ler esses clássicos pode ser mais paralisante e esterilizador que nossos maiores pânicos e inseguranças, e, acreditem em mim, exceto os muito soberbos (existem, existem), não há romancista ou poeta que não se veja assaltado por eles, antes, durante e depois do ato de escrever.

É a sua palavra, o seu estilo, o que abre lacunas pelas quais outros podem se atrever a espreitar

Talvez esse comportamento abrangente de evita-los surpreende um pouco – talvez seja por isso que me solicitaram este artigo – que alguém como eu, ainda ativo e mais ou menos contemporâneo, esteja em contato permanente (seria presunçosa a palavra “diálogo”) com o mais intimidante dos escritores, Shakespeare, ao ponto de muitas vezes incorporá-lo em meus próprios textos, nos quais o cito, o comento, o parafraseio; está presente em muitos deles. Na verdade eu devo muito a ele, pois seis títulos de livros meus são citações ou “adaptações” de Shakespeare, e ainda pode ser sete se o romance que acabo de terminar ficar com o título provisório.
Não é que eu desconheça essa admiração desalentadora, esse estupor dissuasório que os maiores autores provocam, ao lado dos quais alguém sempre se sente um sonhador ou um tolo. Vivemos em uma época em que o deslumbramento pelos vivos está quase descartado, porque está mais vigente do que nunca aquele velho ditado, acho que medieval: “Ninguém é mais que ninguém”.
Está cada vez mais difundida a recusa em reconhecer a “superioridade” de alguém em algum campo (salvo nos esportes), e hoje seria difícil imaginar a reação do narrador de The Loser, de Thomas Bernhard, quem abandona sua carreira de pianista ao se encontrar com Glenn Gould e perceber que, por mais competente que chegasse a ser, nunca se aproximaria do talento e o virtuosismo do intérprete canadense.
Qualquer artista atual está obrigado a suprimir – ou a silenciar, pelo menos – a admiração por seus colegas vivos, ainda mais se são compatriotas ou escrevem na mesma língua. Chegamos, inclusive, a um ponto em que, para sobreviver, também precisamos desacreditar os mortos – como são incômodos, que perturbação, como nos fazem sombra, como evidenciam nossas deficiências e nossa mediocridade –; ou, se não tanto, ignorá-los e certamente evitá-los. Não são poucos os literatos que hoje afirmam não terem lido, tendo apenas como referências únicas o cinema, a televisão, os seriados ou os videogames. O próprio, e possível, talento com as palavras não se vê ameaçado se alguém ignora o que os outros conseguiram com elas.
Suponho que, neste mundo temeroso e mesquinho, minha atitude é anacrônica. Frequento Shakespeare porque, para mim, é uma fonte de fertilidade, um autor estimulante. Longe de me desanimar, sua grandeza e seu mistério me convidam a escrever, me estimulam, inclusive me dão ideias: as que ele apenas esboçou e deixou de lado, as que se limitou a sugerir ou enunciar de passagem e decidiu não desenvolver nem mergulhar nelas. As que não estão expressas e alguém deve “adivinhar”.
Por isso falei do mistério: Shakespeare, entre tantas outras, tem uma característica estranha; ao lê-lo ou ouvi-lo é possível entendê-lo sem muita dificuldade, ou o encantamento com o qual nos envolve nos obriga a seguir em frente. Mas se alguém se detém para olhar melhor, ou para analisar frases entendidas em primeira instância, muitas vezes percebe que nem sempre as compreendeu, que se mostram enigmáticas, que contêm mais do que dizem, ou que, além de dizer o que dizem, deixam pairando no ar uma névoa de sentidos e possibilidades, de ressonâncias e ecos, de ambiguidades e contradições; que não se esgotam nem se acabam em sua própria formulação, nem, portanto, no escrito.
Coloquei alguns exemplos nos meus romances: “It is the cause, it is the cause, my soul“ (“É a causa, é a causa, alma minha”), é assim que Otelo começa seu famoso monólogo antes de matar Desdêmona. O leitor ou espectador leem ou ouvem isso calmamente pela enésima vez, o compreendem. E, no entanto, que diabos isso significa? Porque Otelo não diz: “She is the cause” nem “This is the cause” (“Ela não é a causa” ou “Esta é a causa”), o que seria mais claro e fácil de entender.
Ou quando comunicam a Macbeth sobre a morte de Lady Macbeth, ele murmura: “She should have died hereafter” (“Deveria ter morrido mais tarde”, mais ou menos). E o que significa isso – essa frase célebre – quando a situação já é desesperadora e o próprio Macbeth morrerá em seguida? Também Lady Macbeth, após embeber as mãos com o sangue do Rei Duncan assassinado por seu marido, volta-se a este e diz: “My hand are of your color; but I shame to wear a heast so white” (“Minhas mãos são de sua cor; mas me envergonho de ter um coração tão branco”). Não está muito claro o que significa neste caso “branco”, se inocente e imaculado, se pálido, assustado ou covarde. Por mais que ela queira compartilhar o destino de Macbeth, ensanguentando as mãos, o certo é que ela não foi a assassina, ou só por indução, instigação ou persuasão. Seu marido é o único que deveras manchou o coração.
São exemplos que usei no passado. Mas existem mais centenas. (“Quem dera eu fosse tão grande como o meu pesar, ou o meu nome menor! Quem dera pudesse esquecer o que fui, ou não lembrar o que agora devo ser!”, diz Ricardo II em seu pior momento). As histórias de Shakespeare raramente são originais, raramente são sua invenção. É mais uma prova dos argumentos secundários e da importância do tratamento. É a sua palavra, o seu estilo, o que abre lacunas pelas quais outros podem se atrever a espreitar. Ele aponta caminhos ocultos que não explorou, pelos quais nos deixa tentados a nos aventurar. Talvez por isso continue sendo o clássico mais vivo, o qual se adapta e encena incessantemente; o que sobrevoa filmes e séries de televisão oceânicas, como O senhor dos anéis, Família Soprano, The Godfather, Game of Thrones, ou mais superficialmente House of Cards. A ele, sim, nos atrevemos a voltar. Não apenas eu, embora no meu caso não haja a menor ocultação. Se os outros autores reconhecem ou não, nos 450 anos de seu nascimento e 398 de sua morte, Shakespeare continua a ser o autor que mais corre em nossas veias e o maior inspirador de nossos balbucios.

sábado, 7 de maio de 2016

Traduzir os 400 anos dos 154 sonetos de Shakespeare

Shakespeare
Fernando Vicente



Traduzir os 400 anos dos 154 sonetos de Shakespeare
Traduzir um grande autor é sempre um grande desafio. Traduzir Shakespeare é um dos grandes desafios para o tradutor brasileiro, […]

Traduzir um grande autor é sempre um grande desafio. Traduzir Shakespeare é um dos grandes desafios para o tradutor brasileiro, pelo peso e pelo prestígio que carrega a obra do Bardo de Avon. Os sonetos não são exatamente a obra mais conhecida de Shakespeare, mas representam, dentre seus textos, trabalho de características únicas. Ter em português, pela primeira vez, os 154 sonetos do Bardo é uma lacuna que se fecha.

A tradução dos 154 Sonetos (Ibis Libris, 2009), realizada por Thereza Christina Rocque da Motta, celebra os 400 anos da primeira edição, feita ainda em vida do autor inglês. Traz, além dos sonetos, um poema narrativo (A Lover’s Complaint), incluído igualmente na edição de 1609.

Traduzir um texto escrito há 400 anos não é exatamente uma tarefa simples. As referências culturais estão demasiado distantes, a língua do original se afasta em muitos pontos do inglês hoje corrente (o léxico é diferente, os pronomes e as flexões verbais são arcaicos), os efeitos estéticos foram cinzelados em um ambiente peculiar que não corresponde ao nosso. Dificuldades, portanto, não faltam. O risco de errar é grande.

A edição é bilíngüe, o que permite fazer comparação imediata com o texto original e identificar a estratégia tradutória de Thereza Motta. Do ponto de vista formal, a tradutora fez uma escolha bem definida: não aderiu ao formato do soneto shakespeariano (14 versos de 10 sílabas, com rimas aos pares). Optou por texto sem métrica nem rima, mas manteve a organização em versos. Em alguns casos, como no soneto 100 (Rise, resty Muse = Levanta, leve Musa), incorporou elementos formais. Mas, em termos globais, trata-se de tradução que, como se lê no prefácio de João José de Melo Franco, dispensa “aspectos formais que, em geral, nublam o entendimento e o acesso direto ao conteúdo dos poemas”.

A tradução, embora dispense aspectos formais, é “poética”, pois busca claramente o efeito estético, busca atingir a sensibilidade do leitor. Na procura do efeito estético, não se prende a sentidos literais. Não tem a pretensão de traduzir palavra por palavra, dispensa mesmo a tradução de certas palavras, talvez perseguindo poética concisão.

Tradução é risco. É preciso fazer escolhas, tomar decisões. Decisões que, observadas ao longo do texto com coerência, se transformarão na marca mesma da tradução. A versificação, respeitando os 14 versos de cada soneto, é uma das marcas da tradução de Thereza Motta. Como toda decisão, traz seus riscos, impõe seus limites (inclusive de extensão do texto). Poderia ter escolhido outro arranjo qualquer, e a tradução teria seguido rumo diferente, e as palavras teriam sido distintas, e os sentidos teriam sido outros.

Outra marca forte é o sexo do “destinatário” do primeiro conjunto de sonetos (1 a 126). Thereza Motta transgride, rompe tradições (como convém à boa tradição da tradução). Transforma o “Young Man” de Shakespeare, motivo de tanta especulação, de tanta maldade, em doce moça amada. Eis aí um ponto interessante dessa tradução, em franco desafio à exegese tradicional. No inglês (e, talvez, na tradução para outras línguas), o problema não se insinua, pois se pode ocultar o sexo, sem dificuldade, pela esquivez da marca de gênero. No português, a escolha logo se impõe.
Falta à edição comemorativa dos 400 anos dos 154 Sonetos uma apresentação da tradução, em que a tradutora nos desse, em primeira mão, testemunho de sua estratégia e de suas escolhas. Se o tradutor explicita sua estratégia, mesmo seus erros serão “traduzidos como verdade e tidos como autênticos”.