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quinta-feira, 10 de agosto de 2017

“Homem ganha prêmio de literatura”, a manchete que você nunca vai ler

Alice Munro
Poster de T.A.

“Homem ganha prêmio de literatura”, a manchete que você nunca vai ler

Livros de homens que são premiados por homens são reflexo de um mundo paternalista

Escritoras, editoras e leitores agora querem combater essa realidade



C. M.
São Paulo 15 AGO 2015 - 16:03 COT



Em 2013, quando a escritora canadense Alice Munro conquistou o prêmio Nobel de literatura, viu sair na imprensa dois tipos predominantes de manchete sobre seu feito: de um lado, as que ressaltavam seu gênero sexual. De outro, que ela escreve contos curtos. Ambas sinalizam raridades no mundo literário. Munro foi a 13a mulher a ganhar o Nobel, uma premiação anual que existe desde 1901, e que ao longo de sua história reconheceu quase sempre o talento de homens romancistas. Pouca novidade há nisso, já que a questão da representação de gênero, obviamente, transcende a literatura, e não faz mais do que refletir as regras de um mundo paternalista. No entanto, justamente pela falta de novidade, algumas escritoras decidiram combater essa realidade.
É o caso da escritora paquistanesa Kamila Shamsie, que recentemente sugeriu, em um artigo publicado pelo jornal britânico The Guardian, que 2018 seja O Ano de Publicar Mulheres. A provocação, que se inspira na campanha O Ano de Ler Mulheres, lançada em 2014 pelo jornal literário The Critical Flame, dirige-se especificamente às editoras, para que elas deixem de publicar, ao menos por um ano, os homens e priorizem autoras, sejam novas ou veteranas. Com isso, ela espera não só que mais mulheres sejam lidas, com seus pontos de vista particulares, como tenham seus livros mais resenhados pela imprensa e pelos leitores e também premiados por instituições relevantes, chacoalhando um pouco, enfim, essa lógica masculina imperativa.
O chamado foi ouvido pela editora britânica And Other Stories, que aceitou o desafio e prometeu reagendar o lançamento de títulos de ficção de seus autores e agora anda buscando manuscritos inéditos de escritoras para definir o que publicará em 2018 – ano em que se celebra o centenário de mulheres de mais de 30 anos com direito ao voto no Reino Unido. "Vamos acabar nos tornando uma espécie de modelo em pequena escala para uma pergunta muito maior sobre por que a escrita feminina é consistentemente marginalizada ou secundária", declarou Sophie Lewis, a editora-chefe da casa.
Ainda que a atitude de Lewis possa ser revertida em benefício próprio, ela ataca uma espiral de preconceito de gênero no mundo literário. A paquistanesa Kamila Shamsie revelou em seu artigo que menos de 40% dos livros enviados ao prestigiado Booker Prize ao longo dos últimos cinco anos foram escritos por mulheres, e citou outra pesquisa que mostra, ano a ano, que histórias narradas por homens dominam os prêmios de literatura – realizado pelo VIDA – Women in Literary Arts, um site americano dedicado ao tema. Segundo a contagem do VIDA em 2014, apenas 27% dos autores destacados no The Times Literary Supplement foram mulheres. No caso da revista literária Paris Review, 40% foram mulheres, e do semanário The Nation, apenas 29%. A espiral começa com uma minoria de escritoras e desemboca na realidade das poucas autoras premiadas, e não termina nunca.
No Brasil, o debate já se instalou e há sinais positivos de mudança. Tanto é assim que “2014 foi o ano das mulheres na literatura brasileira”, segundo a jovem escritora Luisa Geisler, autora de Contos de mentira e Luzes de emergência se acenderão automaticamente e finalista do Prêmio Jabuti em 2012 com seu livro de estreia. Depois de passar o ano passado só com mulheres na estante, instigada por uma antologia que listou 101 autores contemporâneos imperdíveis com apenas 14 mulheres (a mesma que desatou a campanha já mencionada e a hashtag #leiamulheres2014) ela discorreu sobre o assunto no jornal OGlobo.
Escreveu: “Já me disseram que eu ‘escrevo como um homem’, como um aplauso. Já ouvi: ‘não gosto de livros escritos por mulheres, mas gostei desse’ ou ‘não achei que mulheres podiam escrever assim’. Meu favorito é ‘você não escreve como as outras mulheres’. ‘Na verdade, eu escrevo como mulher, sim. Você que é babaca mesmo’, é a resposta que tenho pronta”. Em seu artigo, Luisa menciona que no Brasil, 72% dos autores publicados são homens, segundo a pesquisa de Regina Dalcastagné em Literatura brasileira contemporânea — Um território contestado. Quem vê dados como esses talvez passe a procurar omachismo em nossa sociedade contemporânea, sem muitas vezes conseguir encará-lo nos olhos. Apesar de sempre estar lá, ele não se declara, porque, diz a escritora, “nunca é uma atitude consciente”. Para ela, assumir as diferenças, sem precisar listar as justificativas e concordar com elas, já bastaria: “Não sugiro cotas. Sugiro ler mulheres, e só”.
Uma aventura que não vale a pena viver
As duas autoras que venceram este ano o Prêmio Sesc de Literatura (o mesmo que revelou Luisa em 2010, aos 19 anos), Sheyla Smanioto e Marta Barcellos, questionam, além do mercado, a percepção das histórias escritas por mulheres pelo leitor. Para Marta, autora do livro de contos Antes que segue, “o ponto de vista da mulher, na literatura, é sempre visto como assunto de mulherzinha”. “Já a visão do escritor homem se confunde com a visão universal, é literatura e ponto”, diz. Realidade essa, segundo Sheyla, autora do romance Desesterro, que apenas dá continuidade à vida cotidiana: “A mulher já está vivendo o ponto de vista do homem todos os dias. Mulher cozinha e pode ser cozinheira; homem, quando cozinha, é chef. A mãe que é boa mãe não se destaca, só cumpre sua obrigação, enquanto pai que troca fralda é elogiado. A mulher se dispõe, se anula. O homem faz o favor”. As obras das duas pretendem andar contra essa corrente, que prega que o feminino “é uma aventura que não vale a pena viver”.
Para embasar seus contos, que tematizam a infertilidade como fracasso, Marta fez pesquisa sobre esse tema na literatura. “Vi que existe muito pouca coisa, e quando aparece é quase sempre sinônimo de maldição. Encontrei, por exemplo, o assunto na obra de Clarice Lispector e uma peça de Federico García Lorca”, diz a escritora, que quis fazer diferente em Antes que segue. Para Sheyla Smanioto, combater noções como essa é possível se as escritoras, em lugar de assumirem o tal “ponto de vista universal”, encararem suas vidas com grande honestidade e retratarem em sua literatura personagens femininas fortes. Foi o que ela tentou fazer em Desesterro, que assume mais de uma voz feminina e se passa na periferia de uma grande cidade.
O destino da discussão é incerto e as mudanças chegam lentas. Mas Kamila Shamsie, que propõe um 2018 de mulheres nas editoras e além, acredita que o ritmo de transformação pode ser maior à medida que se reverta não só esse mal literário, mas qualquer tipo de status quo que promova socialmente um modelo único. “Que O Ano de Publicar Mulheres não termine na publicação somente de escritoras jovens, brancas, heterossexuais, de classe média e metropolitanas”, ela espera.


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Mulheres / Debates sobre a maternidade

'Ontem' (1930), do tríptico de Man Ray 'Ontem, Amanhã, Hoje'. / MAN RAY (CORBIS)


Debates sobre a maternidade

Cresce entre as mulheres a tendência a não ter filhos

Mas não está claro se isso se deve às consequências de ser mãe ou a uma decisão livre

       
    Não ter filhos por decisão própria se torna opção cada vez mais difundida no Ocidente. Muitas mulheres preferem se concentrar em sua vida pessoal e profissional a enfrentar o que a maternidade encerra. Nos Estados Unidos, um dos países em que mais cresce essa tendência, uma em cada cinco mulheres passa da idade fértil sem ter descendentes (nos anos setenta o número era uma em cada dez), seja por motivos socioeconômicos, circunstanciais (não ter encontrado o parceiro ideal) ou problemas de fertilidade. Na Europa, onde a tendência vai pelo mesmo caminho, destaca-se a Alemanha, com uma das maiores percentagens de não mães do mundo. Os defensores de uma vida sem filhos brandem com orgulho sua escolha, mas continua a pressão da sociedade para que os tenham.
    Melanie Notkin lida com isso no dia a dia. Seu livro The Otherhood, termo que a autora norte-americana cunhou para se referir às “outras mulheres”, é um grito que descreve a realidade de milhares de mulheres de seus 30 anos, que, como ela, são submetidas à mesma pergunta por amigos, familiares, colegas de trabalho e até estranhos: quando vai ser mãe? Notkin decidiu dizer a verdade sobre as mulheres sem filhos há três anos, quando começou a colaborar com o The Huffington Post. “Muitas pessoas te dizem que é possível tê-los sozinha”, diz em Nova York, “que você é exigente demais..., mas a solução não é tão simples.” As mulheres que decidem não ser mães são em maior número do que se percebe, não se sentem representadas e, como Notkin, decidiram levantar a voz em livros, em documentários, na Internet.
    Os defensores de uma vida sem filhos brandem com orgulho sua escolha, mas continua a pressão da sociedade para que os tenham
    Nos Estados Unidos essa discussão se tornou mais pública que na Europa. “Se tivesse tido filhos, eles me odiariam”, disse a apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, de 60 anos. “Não tenho filhos, mas minha vida é satisfatória. Também seria com filhos”, declarou Condoleezza Rice, ex-secretária de Estado do governo George W. Bush. Ela também tem 60 anos. No ensaio Não quero filhos. Estou louca? Por que ninguém me deixa em paz?, a blogueira norte-americana Gala Darling defende que “existem outras coisas para fazer com sua vida” e que a única parte incômoda é quando os que ouvem sua resposta agem como se a conhecessem melhor que ela mesma. Darling indica os dois pontos fundamentais nesse assunto: “A sociedade espera que as mulheres tenham filhos (…). Só que é também uma questão de respeito; quando você diz que não quer tê-los, isso deveria ser o ponto final da conversa”.
    O tríptico 'Ontem, Amanhã, Hoje' de Man Ray. / MAN RAY (CORBIS)
    A realidade é que raras vezes acaba aí. Atinge as mulheres que sabem que nunca vão ser mães e as que esperam ser um dia, que ainda não chegou. Tabitha, autora do blog Geektastic, denuncia, como várias outras blogueiras, a intromissão que sente quando lhe perguntam por que não tem filhos. “Quando for mãe, você vai entender” ou “com certeza vai mudar de opinião” estão entre as respostas usuais. “Talvez não seja a intenção delas, mas quando dizem que vou mudar de ideia, estão afirmando que minha escolha não é válida, e não é esse o caso.” Outras vezes os comentários chegam sem convite. Beth Lapides estava no fisioterapeuta quando, a um gesto de dor, ele disse: “Você não aguenta nada, é melhor que nunca tenha filhos”. Em seu ensaio, compilado no livro Não é brincadeira, escritoras que pulam a maternidade, Lapides indaga até se tal afirmação é legal.
    Notkin explica que, por meio de sua experiência pessoal e dos dados colhidos para o livro, compreendeu que cada vez mais mulheres acima de 35 anos não têm filhos não apenas por decisão própria, mas pelas circunstâncias. “Querem fazer o que seja certo para elas”, diz. “São modernas, livres, independentes e também querem ter filhos, mas são uma maioria silenciosa.” Pesquisa conduzida pela cientista social britânica Catherine Hakim, realizada em 25 países, conclui que a decisão de não ter filhos de forma voluntária é maior entre os homens que entre as mulheres. Somando os dois gêneros, menos de 10% das pessoas que descartam ter filhos o fazem por decisão própria.
    Entre as mulheres norte-americanas de 40 a 44 anos, cerca de 18% não se tornaram mães, contra 10% em 1976 (1,9 milhão, contra 580.000), segundo o Centro Pew de Pesquisas. Essa tendência é semelhante na Espanha (18,1% das mulheres entre 40 e 44 não têm filhos), França (20,6%), Finlândia (28,8%) e Alemanha (o recorde: 33,6%), segundo os dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). É muito difícil extrair das estatísticas quais não são mães por opção. “A ausência de filhos parece estar ligada à formação”, segundo a OCDE. Por exemplo, na Suíça, cerca de 21% das mulheres de 40 anos não têm filhos, mas a proporção cresce para 40% no caso das que fizeram curso superior. Em seu livro As mulheres sem sombra ou a dívida impossível. A decisão de não ser mãe, a psiquiatra francesa Geneviève Serre identifica o perfil de quem se volta a essa opção como graduada, executiva e urbana.
    "Presume-se que as pessoas sejam mais felizes se tiverem filhos. Agora mesmo os filhos são um luxo, uma escolha", afirma Laura Scott
    Para as mulheres que temem se arrepender, ou que simplesmente querem adiar a gravidez, a ciência oferece o congelamento de óvulos. As bancas de advocacia foram as primeiras a oferecer a técnica em sua carteira de benefícios trabalhistas, junto com o vale-refeição e o seguro saúde. Quando recentemente foi divulgado que também tinham feito isso a Apple e o Facebook, o assunto gerou grande polêmica. Os defensores da iniciativa consideram que ela cobre uma necessidade cada vez mais difundida na força de trabalho feminina pela escolha própria. Para os críticos, é uma forma indireta de pressionar as funcionárias a não terem filhos, no lugar de criar medidas que facilitem a conciliação entre a carreira e a maternidade.
    “Precisamos redefinir o conceito de família e reconhecer que as mulheres têm valor que ultrapassa sua capacidade de trazer crianças ao mundo”, diz Laura Scott, que criou em 2003 o projetoChildless by Choice, para investigar por que aumentava o número de mulheres que, como ela, decidiam não ser mães. Ella e Notkin concordam que em sua maioria as mulheres esperam ser mães entre 25 e 35 anos, mas pelas circunstâncias são obrigadas a adiar, e aos 45 anos não querem mais. “Outras, pelo contrário, decidem deliberadamente muito antes”, afirma Scott.

    “A educação é um fator determinante, mas também a economia”, diz, em referência à dívida contraída por muitas universitárias para pagar seus estudos. Para Notkin a situação atual resulta de muitas mulheres fazerem diferentes opções, e não apenas o que se espera delas. Ela diz que nas conversas entre milhares de mulheres em blogs, fóruns ou livros pode parecer “mais feminista” dizer que não tem filhos por uma decisão autêntica, quando na realidade o processo é mais complexo.
    Ter ou não filhos está menos associado à identidade feminina agora que há 50 anos, compreende-se que não é o destino das mulheres, mas uma combinação de fatores, mas isso não significa que a sociedade em geral e a norte-americana em particular, profundamente arraigada em valores tradicionais, tenham evoluído ao mesmo ritmo que milhões de mulheres. “Entretanto, presume-se que as pessoas sejam mais felizes se tiverem filhos”, lamenta Scott. “Devemos nos livrar da noção de que os filhos são um investimento econômico para o futuro, são agora mesmo um luxo, uma escolha.”