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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Do pior ao melhor dos Estados Unidos, graças à nova série documental de Scorsese

 


Do pior ao melhor dos Estados Unidos, graças à nova série documental de Scorsese

Ouvir Fran Lebowitz é um bálsamo contra as turbas, um jorro de inteligência e humor que condensa o que há de mais refinado e maravilhoso na cultura norte-americana


SERGIO DEL MOLINO
12 Janeiro 2021

Quando Joe Biden apareceu para fazer história, enquanto o sujeito dos chifres ainda mugia nos salões do Capitólio, articulou seu discurso em torno da ideia da “América real”. Aquela turba não representava o país, disse, muito digno e presidencial. Os rostos dos repórteres e analistas da CNN, mesmo tampados com máscaras, estavam menos dignos e não dissimulavam a raiva e certa vergonha. “O mundo inteiro está vendo isso”, repetiam, horrorizados.

Apenas dois dias depois de assistir ao pior dos Estados Unidos, desfrutamos do que há de melhor. Com o mesmo fascínio que me fez grudar na CNN na noite de 6 de janeiro, vi quase numa sentada a série de Scorsese sobre sua amiga Fran Lebowitz (Pretend It’s a City, na Netflix). Ouvir Lebowitz, alguém de cuja existência mal tínhamos consciência na Espanha (a editora Tusquets traduziu dois de seus livros nos anos oitenta, e estão esgotadíssimos; seria hora de que algum editor os recuperasse), é um bálsamo contra as turbas, um jorro de inteligência e humor que condensa o que há de mais refinado e maravilhoso na cultura norte-americana. Fiquei com vontade de ligar lá na CNN e dizer: calma, o novo Scorsese chegou para nós, e vocês não têm razão alguma para se envergonharem do país. Esta parte é muito legal.

Trailer da série protagonizada por Fran Lebowitz, ‘Pretend It’s a City’. VÍDEO: NETFLIX
Conta Lebowitz que foi certa vez pescar num lago da América profunda e, na loja do povoado, lhe pediram a carteira de motorista para expedir uma licença de pesca para ela. A carteira, diferentemente dos documentos de Estados do oeste, não tinha foto, por isso a balconista lhe perguntou: “Qual é, vocês não botam fotos lá em Jew York [um trocadilho grosseiramente antissemita do nome New York com a palavra jew, judeu]?”. Lebowitz respondeu: “Não, porque sabemos ler”.

Aí está, a crise da democracia liberal e o trumpismo, resumidos em duas linhas de diálogo.



domingo, 26 de setembro de 2021

Do que tanto ri esse tal de Scorsese?

 

Martin Scorsese e Fran Lebowitz em um instante do sétimo capítulo de ‘Faz de conta que NY é uma cidade’.


Do que tanto ri esse tal de Scorsese?

O humor, se não é engraçado, irrita. Isso explica algumas reações às opiniões de Fran Lebowitz exibidas em ‘Faz de conta que NY é uma cidade’, da Netflix

Sergio del Molino

28 Janeiro 2021


Com o humor acontece algo que não ocorre com nenhuma forma de arte: só é valorizado se você acha engraçado. Qualquer crítico pode reconhecer o valor de um livro ou um filme de que não gosta ou até detesta. Uma pessoa pode dizer que David Lynch é chato e destacar, ao mesmo tempo, que o considera um dos grandes artistas do século. Por outro lado, se um humorista não fizer você rir, será muito difícil que você encontre a generosidade, a paciência e a equanimidade necessárias para afirmar que aprecia seu talento e entender que outros riam com suas piadas.

Porque o humor, como diz o clichê dos críticos preguiçosos, não deixa ninguém indiferente. Se não é engraçado, irrita. Nada incomoda mais do que um engraçadinho. Isso explica algumas reações às opiniões de Fran Lebowitz. Existem muitas pessoas desconcertadas pela força das gargalhadas de Martin Scorsese na série ‘Faz de conta que NY é uma cidade’, da Netflix. “Do que ele ri?”, perguntam-se. Ginia Bellafante fez essa pergunta no The New York Times, intrigada pelos jovens que lotam teatros para escutar o que, para ela, não são mais do que resmungos de uma velha. Bellafante pergunta no título e, 1.300 palavras depois, continua sem saber.

O que dói mesmo é que Scorsese se divirta mostrando os dentes. Pode-se desprezar o gosto das pessoas comuns, mas não o de um deus maior do Parnaso. Se os filmes do diretor significarem algo para você, a admiração passional que ele tem por uma humorista que você despreza é quase uma traição. Ou Scorsese demonstra ser um grosseiro que não merece os louros, ou você está deixando de captar algo sutil e profundo. Ou ele é um idiota ou você é que é, e como a primeira opção parece muito improvável, a aterradora possibilidade da segunda o enfurece tanto que você não percebe que o humor é visceral e não se curva a nenhuma crítica.