quarta-feira, 27 de março de 2019

Dubai / La cidade inventada




Dubai, a cidade inventada

Do Burj Khalifa, o edifício mais alto do mundo, ao encanto das ruas de Al Bastakiya, o bairro histórico. Excentricidade e modernidade no meio do deserto


Luisgé Martin
DUBAI, 22  MAR 2019

Viajo para Dubai com um amigo espanhol que conhece bem a cidade. Na última noite, pede a um de seus contatos dubaienses que nos faça uma reserva para jantar no clube privado do restaurante Coya, um dos que fazem parte do hotel Four Seasons Jumeirah. O Coya tem duas áreas: uma aberta ao público e outra exclusiva, na qual só podem entrar os sócios e seus acompanhantes. Nós nos sentamos à mesa e, enquanto lemos o menu, o maître nos avisa que o amigo dubaiense do meu amigo telefonou para dizer que pagará nosso jantar. Pela primeira vez em uma semana pedimos vinho, cujos preços na cidade nunca ficam abaixo de 100 euros (442 reais) por garrafa. Isto é Dubai: o luxo excêntrico, o excesso, o requinte decadente. A suntuosidade em seu sentido mais estrito. Tudo é esplendoroso e exorbitante: o edifício mais alto do mundo, o maior centro comercial, o hotel com mais estrelas.
O mapa de Dubai, horizontal e alongado, é composto por três faixas: a do mar, a da cidade e a do deserto. É uma cidade quase artificial construída no meio do nada. Não teve um crescimento orgânico, como a maioria de cidades do mundo. Foi edificada rapidamente sobre o alicerce do dinheiro.

No nível do solo, é uma cidade populosa (tem 3,1 milhões de habitantes), densa e agitada, mas do alto do Burj Khalifa− o arranha-céu mais alto já construído, com 828 metros de altura −, a visão muda completamente: podemos ter uma imagem completa, ver o fim próximo da cidade, a extensão interminável do deserto e os grandes terrenos disponíveis para construção que ainda há no perímetro urbano. Paradoxalmente, do céu, o colossal se torna humano.
Dubai não é, como se acredita, uma cidade projetada exclusivamente para os carros, na qual é impossível caminhar. As avenidas têm calçadas e comércios, e existem algumas áreas, como La Mer − um bairro praiano repleto de restaurantes, bares e lojas −, em que só existem os pedestres.
turismo aqui não é de museus ou edifícios históricos, embora existam, e sim de hotéis, diversão e centros comerciais. Se o viajante chega em busca disso (por razões vitais ou antropológicas), a cidade o deixará fascinado. Se busca um modelo monumental ou clássico, sairá frustrado.




Dubai, a cidade inventadaampliar foto
JAVIER BELLOSO


Alguns dos hotéis são pequenas cidades. Não têm três restaurantes, têm trinta. Há teatros e espetáculos em seu interior. Aquários gigantes. Lojas de luxo, comércios normais e mercadinhos. Piscinas e praias privadas. No Madinat Jumeirah Resort, por exemplo, deparo-me com um anfiteatro ao ar livre no qual se apresenta um grupo árabe. O restaurante no qual vou jantar, o Pierchic, foi construído em cima do mar, com uma estrutura de palafitas, e para chegar a ele tenho de atravessar de barco um lago interno do hotel e depois caminhar pela costa até a ponte de madeira por onde se entra. Ali ao lado, em metade da praia escura, há um caramanchão iluminado com pequenas lâmpadas no qual duas pessoas, atendidas por garçons, passam uma noite romântica (e, sem dúvida, estratosfericamente cara).

Quatro áreas essenciais

O viajante deve visitar menos quatro áreas. Em Dubai Downtown, encontrará, além do Burj Khalifa, alguns dos arranha-céus mais imponentes da cidade e o Dubai Mall, um interminável centro comercial de luxo onde se pode percorrer lojas de chocolate que parecem joalherias, um espaço infinito com exposições de sapatos incríveis ou uma pista de gelo gigante.
A Marina, no sul da cidade, é um bairro que há 15 anos não existia e agora conta com um porto esportivo, 200 restaurantes, sete quilômetros de passeio ao longo do canal e uma aglomeração de arranha-céus soberbos destinados principalmente para moradia. Dubai foi nos últimos anos − e continua sendo − o paraíso dos arquitetos. Constrói-se com uma liberdade assombrosa, sem buscar harmonias nem regras, mas o resultado é sedutor. Lá está, por exemplo, a Cayan Tower se retorcendo no ar para demonstrar isso.




GUIA


• Restaurante Coya: coyarestaurant.com
• Arranha-céu Burj Khalifa. Subir no edifício mais alto do mundo custa a partir de 33 euros (115 reais): burjkhalifa.ae
• Restaurante Pierchic: jumeirah.com
• Centro comercial Dubai Mall: thedubaimall.com
• Turismo de Dubai: visitdubai.com; dubaiculture.gov.ae

A Palmeira (Palm Jumeirah) é um dos distritos extravagantes construídos sobre o mar. Tem, de fato, forma de palmeira, mas só vista do ar. Da terra, é uma sucessão de ruas e avenidas com edifícios e palácios luxuosos. No topo da Palmeira fica o hotel Atlantis, outro dos titãs que reúnem todos os cuidados, serviços e luxos de que um turista multimilionário necessita. Está sendo construída atualmente outra Palmeira maior e foi concluído um projeto megalomaníaco que reproduz, com ilhas artificiais, o mapa-múndi. Algumas das ilhas já foram compradas por empresários russos, atores famosos e magnatas.
Por último, vem o mais “autêntico”, o bairro histórico do qual nasceu Dubai: Al Bastakiya. Um conjunto de casas reformadas à moda antiga que permite imaginar como viviam os habitantes do emirado antes que o dinheiro do petróleo os transformasse no espelho da modernidade. Um emaranhado de ruas de casas baixas, quintais escuros e bazares movimentados nos quais, apesar da profilaxia, ainda se respira o ar de outra época.
Luisgé Martín é autor do ensaio ‘El Mundo Feliz' (Anagrama).

EL PAÍS


domingo, 17 de março de 2019

O lado mais sombrio de Dickens


Charles Dickens


O lado mais sombrio de Dickens

Escritor e jornalista tentou internar sua mulher em um manicômio para poder se relacionar com atriz


RAFA DE MIGUEL
Londres 10 MAR 2019 - 12:29 COT

O homem mais famoso da era vitoriana, o “poeta da cidade moderna”, o romancista mais importante da história inglesa, Charles Dickens, cometeu um dos atos mais cruéis e abjetos que se possa imaginar: tentou encerrar sua mulher, Catherine – com a qual compartilhava 20 anos de casamento e 10 filhos –, em um manicômio para poder desfrutar em liberdade do seu romance com a atriz Ellen Ternan.
John Bowen, professor de Literatura do século XIX na Universidade de York, no norte da Inglaterra, deu com uma carta que demonstra a crueldade de Dickens ao tentar se safar do momento mais turvo de sua vida. “Durante anos existiu a suspeita de que tinha tentado, mas nenhuma prova definitiva. E é claro que é algo muito difícil de assimilar. Fez coisas admiráveis, mas em sua ruptura matrimonial teve um comportamento horrível, e magoou muita gente”, conta Bowen por telefone ao EL PAÍS.
Catherine Dickens viveu as duas últimas décadas de sua vida em uma pequena residência em Camden, na zona norte de Londres. Lá travou amizade com um casal vizinho, Edward e Lynda Dutton Cook. Ela era pianista. Ele, um homem de letras, crítico teatral e romancista. Em seu último ano de vida, em 1879, enquanto aliviava suas terríveis dores com doses de morfina, Catherine sentiu a necessidade de contar sua versão do ocorrido. Até então, Dickens, zeloso ao extremo de sua boa imagem e reputação, tinha conseguido transmitir a imagem de um casamento deteriorado pelos “distúrbios mentais” de uma mulher que não prestava atenção nem dava carinho aos filhos. Grande publicitário de si mesmo e com bons e influentes amigos, o escritor plasmou um retrato desumano e falso numa carta que convenientemente vazou à imprensa. A famosa “carta violada” que convenceu seus admiradores, mas também escandalizou muitos de seus contemporâneos.
Edward Dutton Cook nunca quis tornar públicas as intimidades de uma família e de um homem que àquela altura já era um tesouro nacional. Mas as contou através de várias cartas a um amigo, o jornalista William Moy Thomas. “No final, [Dickens] descobriu que ela já não era de seu agrado. Tinha parido dez filhos e perdido grande parte de sua beleza. Tornou-se velha. Tentou inclusive encerrá-la em um manicômio, pobre mulher! Mas apesar das nefastas que são nossas leis no que se refere a provar a loucura, não conseguiu seu propósito”, escreveu Dutton Cook.
“Quando você descobre este lado sombrio de Dickens, interpreta a obra posterior a 1858, o ano do rompimento conjugal”, explica o professor Bowen. “Grandes Esperanças, um de seus livros mais universais, é uma romance cheio de culpa, de vergonha. Seu personagem principal [Philip Pirrip, ou Pip] se sente incompreendido, e é alguém que magoou muita gente.”
Bowen, que teve acesso ao conteúdo das cartas de Dutton Cook, hoje preservadas na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, conhece bem os documentos da época e deduziu, com quase total segurança, a identidade do médico que se negou a cumprir os desejos de Dickens. Thomas Harrington Tuke, superintendente do Asilo Manor House, no bairro londrino de Chiswick, entre 1849 e 1888, era um velho conhecido do escritor. Chegou a assistir ao batismo de um de seus filhos. A amizade esfriou pouco depois, sem motivo aparente, e Dickens se prodigalizou em lhe dedicar insultos como “asno médico” e “ser miserável”.
As leis da época davam pouca proteção a indivíduos cujas famílias decidissem interná-los pelo resto da vida por suposta doença mental, sobretudo quando se dispunha de conexões adequadas. E Dickens dispunha. Seu amigo e biógrafo, John Forster, secretário no Comissariado para a Loucura, um órgão público criado em 1845 para fiscalizar os manicômios, e o médico John Connolly, com grande influência nesse âmbito, moveram céus e terras para agradar o seu amigo.
“À luz do que sabemos agora, esta história teria muito a ver com o movimento do MeToo”, sugere Bowen. “Mas também com esse gaslighting que muitos homens projetam sobre suas parceiras para que acreditem serem elas as culpadas. Embora haja uma parte positiva em todo este relato. Um médico foi capaz de dizer que não. Não são muitos os médicos ou advogados capazes naquela época de encarar os ricos e poderosos. Quase como esses depoimentos que escutamos hoje em dia de algumas pessoas contra o presidente Donald Trump nos Estados Unidos.”

sábado, 16 de março de 2019

Vargas Llosa / Cidade imensa e triste

Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente



Mario Vargas Llosa

Cidade imensa e triste

No final dos anos sessenta criei muito carinho pela Inglaterra; fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal


16 MAR 2019

Vim a Londres pela primeira vez em 1967, para dar aulas no Queen Mary’s College. Levava uma hora de metrô de Earl’s Court para chegar à universidade e outra para voltar, de maneira que utilizava essas duas horas para preparar as aulas e corrigir os trabalhos dos alunos. Descobri que gostava de ensinar, que não o fazia mal, e que aprendia muito lendo, por exemplo, Sarmiento, cujo ensaio sobre o gaúcho Quiroga passou a ser desde então um de meus livros de cabeceira.



A Londres daqueles dias era muito diferente de Paris, onde morei nos sete anos anteriores. Na capital francesa se falava de marxismo e de revolução, de defender Cuba contra as ameaças do imperialismo, de acabar com a cultura burguesa e substituí-la por outra, universal, em que toda a sociedade se sentisse representada. Na Grã-Bretanha os jovens não se interessavam pelas ideias e pela política, a música passava a liderar a vida cultural, eram os anos dos Beatles e dos Rolling Stones, da maconha e das roupas extravagantes e chamativas, dos cabelos até os ombros e uma nova palavra, hippies, havia se incorporado ao vocabulário universal. Passei meus primeiros seis meses em Londres em um afastado e plácido distrito cheio de irlandeses, Cricklewood, e depois, sem querer e saber, aluguei uma casinha justamente no coração do universo hippie, Philbeach Gardens, em Earl’s Court. Eram bondosos e simpáticos, e lembro da surpreendente resposta de uma jovem a quem me ocorreu perguntar por que andava sempre descalça: “Para me libertar de minha família de uma vez!”.


Passava todas as tardes em que não tinha aulas na belíssima sala de leitura da British Library, que estava à época no Museu Britânico, escrevendo Conversa no Catedral e lendo Edmund Wilson, Orwell, Virginia Woolf. E, por fim, Faulkner e Joyce em inglês. Tinha muitos conhecidos, mas poucos amigos, entre eles Hugh Thomas e os Cabrera Infante, que foram por puro acaso morar a poucos metros de minha casa. No ano seguinte comecei a dar aulas no King’s College, que ficava muito mais perto de minha casa, onde tinha um pouco mais de trabalho, mas um salário melhor.
Naqueles anos criei muito carinho e admiração pela Inglaterra, e fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal. Esse sentimento aumentou tempos depois pelas coisas extraordinárias feitas por Margaret Thatcher no Governo. Nessa época já lia muito Hayek, Popper, Isaiah Berlin, e, principalmente, Adam Smith. Fui a Kirkcaldy, onde ele escreveu A Riqueza das Nações, e de sua casa só restava um pedaço de muro e uma placa, e no museu local as únicas coisas dele eram um cachimbo e uma pena de escrever. Mas, em Edimburgo, por sua vez, pude depositar um ramo de flores na igreja em que está enterrado e passear pelo bairro onde os moradores o viam vagabundear em seus últimos anos, distraído, apartado do mundo que o cercava, com seus estranhos passos de dromedário, totalmente absorto em seus pensamentos.
Em minha antiga moradia londrina, no final dos anos sessenta, não tínhamos televisão, mas sim um rádio, e saíamos somente uma vez por semana, nas noites de sábado, ao cinema e ao teatro, porque a senhora da Baby Minders que vinha tomar conta das crianças nos custava os olhos da cara, mas, apesar dessas dificuldades, acho que éramos bem felizes e é possível que, se não fosse por Carmen Balcells, teríamos ficado para sempre em Londres. Meus dois filhos e minha futura filha seriam três ingleses. Mas tenho certeza de que sempre teria me oposto ao Brexit e que teria militado ativamente contra semelhante aberração.
Eu me dava muito bem com meu chefe no King’s College, o professor Jones, especialista no Século de Ouro. Naquele final de ano acadêmico ele me propôs que, no seguinte, eu fosse uma vez por semana substituir um professor de espanhol em Cambridge que saía de férias, e aceitei. E, nisso, sem se anunciar, como uma tempestade impressionante, Carmen Balcells bateu na porta de minha casa.
Ela me foi apresentada por Carlos Barral em Barcelona, me explicando que se ocuparia de vender ao estrangeiro meus direitos de autor. Logo depois, a própria Carmen me contou que havia desistido de trabalhar na Editora Seix Barral porque a missão de uma agente literária era representar os autores contra o editor, e não o contrário. Se eu queria que ela fosse minha agente? Claro. As coisas haviam ficado mais ou menos assim.
O que veio fazer em Londres? “Ver você”, me respondeu. “Quero que você abandone imediatamente a universidade e a Inglaterra. E que todos vocês venham morar em Barcelona. O King’s College consome muito do seu tempo. Garanto que você poderá viver de seus livros. Eu me encarrego”.
É provável que eu tenha dado uma gargalhada e perguntado se ela estava louca. Viver de meus direitos de autor era um absurdo, porque eu levava dois ou três anos para escrever um romance e se precisasse fazê-lo em seis meses para alimentar meus dois filhos escreveria livros ilegíveis. Ainda não havia descoberto que quando Carmen colocava algo na cabeça era preciso fazer o que ela queria ou matá-la. Não existiam opções intermediárias. Lembro que discutimos por horas e horas, que me contou que García Márquez já estava em Barcelona, vivendo de seus livros; que ela viajou ao México para convencê-lo. E que não sairia de minha casa até eu dizer sim.
Ela me cansou e me derrotou. E nessa mesma tarde fui ver o professor Jones para dizê-lo que ia para Barcelona e que, daí em diante, tentaria viver de meus direitos de autor. Era um homem bem-educado e não me disse que eu era um imbecil fazendo semelhante disparate, mas vi em seu olhar que pensou nisso.
Não me arrependo de maneira nenhuma de ter dado ouvidos a Carmen Balcells porque os cinco anos que passei em Barcelona, entre 1970 e 1974, foram maravilhosos. Lá nasceu minha filha Morgana no hospital Dexeus e, graças a Santiago Dexeus, a vi nascer. Essa cidade se transformou, principalmente por Carmen e Carlos Barral, na capital da literatura latino-americana por um bom tempo, e lá voltaram a se encontrar e a se misturar os escritores espanhóis e hispano-americanos, que se evitavam desde a Guerra Civil. Nós que passamos aqueles anos na grande cidade mediterrânea não nos esqueceremos nunca do entusiasmo com que sentíamos chegar o fim da ditadura e a sensação reconfortante que era saber que, na nova sociedade democrática, a cultura teria um papel fundamental. Que sonhos de ópio!
A Espanha ainda não prestou a Carmen Balcells a homenagem que merece. Ela sozinha decidiu que, com suas grandes editoras e sua velha tradição de alta cultura, Barcelona deveria reunir muitos escritores latino-americanos e, juntando-os novamente com os espanhóis, unir a cultura da língua em um só território cultural. Os editores, pouco a pouco, começando por Carlos Barral, fizeram o que ela queria. Como eu, ela fez com que muitos escritores se instalassem em Barcelona, onde, naqueles anos, começaram a chegar os jovens sul-americanos, como antes a Paris, porque era lá que fazia sentido fantasiar histórias, escrever poemas, pintar e compor.
Desde o Brexit, a Inglaterra se desfez na memória e me senti profundamente decepcionado. Nesses dias, entretanto, talvez por estar velho, me lembrei com saudade dos anos que passei aqui e mais uma vez contradigo aquele poeta brasileiro de quem Jorge Edwards gostava tanto, que chamou Londres de “cidade imensa e triste” e disse de si mesmo: “Foste para lá triste e voltaste mais triste”.

sábado, 9 de março de 2019

Quando os pais de Gabo perceberam que tinham um filho mentiroso


GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ


Quando os pais de Gabo perceberam que tinham um filho mentiroso



JESÚS RUIZ MANTILLA
Madri 7 MAR 2019 - 13:58 COT

Gustavo Tatis percorre o universo de García Márquez e seus segredos de família, intimamente ligados à obra que a Netflix adaptará para as telas


Quando Gabito era pequeno, doña Luisa e don Gabriel se preocupavam que o menino piscasse tanto. Seu pai chegou a lhe pingar um colírio homeopático, mas de pouco serviu. Anos depois, quando aquele tique parecia desaparecido, sua mãe se atreveu a lhe perguntar: “Ele me disse que fazia assim para ver as coisas melhor”, contou ela. “Para recordar…”, observou Gabriel García Márquez a quem o trouxe ao mundo em Aracataca (Colômbia), durante uma das visitas que lhe fez Gustavo Tatis Guerra, jornalista, escritor, amigo da família e autor do livro La Flor Amarilla del Prestidigitador.
Tatis apresenta sua obra nesta quinta-feira na Casa da América de Madri, junto com Dasso Saldivar, autor do prólogo, e Juan Cruz, um dia depois de a Netflix anunciar que produzirá uma série baseada em Cem Anos de Solidão. Em suas páginas, o autor esmiúça segredos de família e chaves ocultas da obra de Gabo: todo um constante malabarismo entre realidade e invenção a serviço do autor, para criar um dos mundos literários mais ricos da literatura universal. As testemunhas de tudo aquilo, seus pais, costumavam despir o imaginário de García Márquez com um jorro de realidade que colocava a magia em seu devido lugar.




“Tinha uma capacidade de inventar além da realidade que via. Sempre disse que tinha dois cérebros. Ninguém me tira da cabeça que Gabito é bicéfalo.”
GABRIEL ELIGIO MÁRQUEZ, PAI DE GABO

Algo que, por outro lado, engrandece sua genialidade criatividade sobre bases muito firmes. “Era o maior embusteiro do mundo”, confessou donGabriel Eligio García Martínez a Tatis. “Tinha uma capacidade de inventar além da realidade que via. Sempre disse que tinha dois cérebros. Ninguém me tira da cabeça que Gabito é bicéfalo”, confessou-lhe o pai ao autor do ensaio. Também ele uniu seu ofício de telegrafista ao de escritor. “Sempre sentiu certa concorrência do filho por causa disso”, comenta Tatis.
Ao menos o pai do Nobel de Literatura de 1982 pôde comprovar sobre as obras de seu filho a escala de sua transmutação. Esse mecanismo que o levava da realidade à invenção de uma mentira, e que por sua vez refletia uma grande verdade. “Nada do que García Márquez conta em seus romances é falso, tudo foi tirado daquele mundo”, diz Tatis.
Don Gabriel leu seus livros com atenção. Não foi o caso da mãe, que se orgulhava mais de ter em casa uma filha freira que um rebento ganhador do Nobel. Dentro de seu insuperável ceticismo, tentou tirar um único proveito da honraria dada ao filho: que finalmente arrumassem o telefone da sua casa. Seu mantra foi minimizar a importância. Assim, Luisa Márquez repelia as entrevistas, entre outras coisas, porque os repórteres que compareciam à sua casa costumavam saber mais que quem devia responder.
Mas com Tatis tudo foi diferente. Tratavam-no como alguém da família, alguém que ficava por lá ouvindo histórias até a hora do jantar. Uma delas foi do germe de Remédios, a bela, personagem de Cem Anos de Solidão que se elevava ao céu.
Baseia-se, segundo a mãe, em uma criada do mesmo nome que fugiu com seu amante. Quando um dia perguntaram a dona Luisa o que tinha acontecido com ela, respondeu: “Foi embora voando”. E Gabito, presente, associou os termos até transformar a explicação em literatura. Dona Luisa se vangloriava de não ter lido o romance porque já tinha vivido tudo aquilo. Tampouco se interessou por Crônica de Uma Morte Anunciada, mas isso por uma razão diametralmente oposta: “Porque aquela eu sofri”.
As razões de Luisa talvez incomodassem seu filho. Mas, como ele havia descrito Úrsula segundo seus parâmetros, como uma mulher mais que submissa a Deus, com atitude de combate contra ele, deve ter entendido. Com as histórias que pegava no ar, García Márquez começou a construir seus métodos característicos: “A chave está em saber atarraxar as mentiras”, confessou o escritor a Tatis Guerra.
O mesmo havia ocorrido com Melquiades. Era o retrato vivo de seu avô, o coronel Nicolás Márquez, militar entre alquimista e curandeiro, aficionado a desenhar peixes coloridos em sua oficina e a fundar povoados. Melquiades tem duas bases: “Seu avô e Nostradamus”, comenta Tatis. "Contou-me isso em 1992 durante a primeira entrevista que fiz com ele", acrescenta. Conheceram-se antes que desse a volta ao mundo com seu prêmio em Estocolmo. Mas depois chegaram várias outras conversas que completaram aquele primeiro encontro. “Dei o suficiente a você para um livro”, comentou o escritor ao amigo.
Uma obra que Tatis vinha escrevendo desde que o conheceu. Agora sai publicada. Isso é La Flor Amarilla del Prestidigitador. O retrato de um homem que soube tirar partido do seu gênio natural de romancista entre o impulso poético e a precisão do jornalista. Um mentiroso eminente que ao receber a notícia de que ganhara o Nobel não teve vergonha de exclamar: “Merda, eles acreditaram!”.



sábado, 2 de março de 2019

Vargas Llosa / A tragédia da Ucrânia

Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

A tragédia da Ucrânia

Anne Applebaum relata a fome premeditada por Stalin para subjugar a população da Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS



2 MAR 2019

Em 1928, Stalin fez uma viagem pela Sibéria que durou três semanas. Tinha derrotado seus adversários dentro do Partido Comunista e já era o amo supremo da União Soviética. Os cereais começavam a escassear no imenso território e, depois do que viu e ouviu naquela viagem, Stalin tirou as conclusões ideológicas pertinentes. Segundo a doutrina marxista, a culpa era dos camponeses retrógrados, que, graças à expropriação dos latifúndios e à liquidação dos kulaks, tinham se tornado pequenos proprietários de terra e contraído as taras características da burguesia. A solução? Obrigá-los a ceder suas granjas e a se incorporar às fazendas coletivas que os tornariam proletários, a força poderosa e renovadora que substituiria sua mentalidade burguesa pelo fervor solidário dos bolcheviques.



Essa é a origem, segundo Anne Applebaum, em seu extraordinário livro Red Famine: Stalin’s War on Ukraine (fome vermelha: a guerra de Stalin contra a Ucrânia), do colapso da agricultura em todos os domínios da URSS, mas que golpearia principalmente, com ferocidade inigualável, a Ucrânia, causando, nos anos de 1932 e 1933, vários milhões de mortes e cenas arrepiantes de suicídios, assassinatos de crianças, saques e canibalismo. A pesquisa realizada pela autora revela ao mundo, em sua dimensão apocalíptica, um acontecimento que, pelo menos em suas características reais, tinha sido ocultado pela censura stalinista, apesar dos esforços isolados de alguns historiadores como Robert Conquest, em The Harvest of Sorrow (a colheita do sofrimento), para divulgá-lo. Mas só agora, com a independência da Ucrânia, os documentos e testemunhos relativos àquele holocausto podem ser consultados e Anne Applebaum, que domina plenamente o russo e o ucraniano, tem feito isso com meticulosidade e objetividade escrupulosa.


Segundo ela, a fome foi premeditada por Stalin e seu séquito de cúmplices – Molotov, Kaganovich, Voroshilov, Postishev, Kosior e alguns outros − para subjugar a Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo em seu seio e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS sob o açoite de Moscou. Ela cita como prova o fato de que, naqueles mesmos anos, o Politburo soviético reduziu drasticamente a publicação de livros e jornais em ucraniano, assim como o ensino dessa língua nas escolas e universidades, e impôs o russo como idioma oficial do país.
Seja como for, em 1929 é iniciada a dissolução das pequenas propriedades agrícolas a fim de incorporá-las às fazendas coletivas. Os camponeses, que tinham visto com simpatia a revolução, resistem a entregar suas terras e seu gado, e a se associar às enormes empresas coletivas que, dirigidas por burocratas do partido, costumam ser pouco eficientes. As instruções de Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada sem piedade pelos revolucionários. As brigadas comunistas percorrem os campos confiscando propriedades, gado, ferramentas agrícolas e sementes, e mandando para a prisão quem não colabora. Um dos chefes do Gulag, na Sibéria, envia um telegrama a Moscou pedindo que não lhe enviem mais detidos porque já não tem como alimentá-los. Ao mesmo tempo, um prisioneiro escreve para sua família: “Que maravilha! Eles me dão um pãozinho por dia!”





Entre 1932 e 1933,  há milhões de mortes e cenas arrepiantes de suicídios, assassinatos de crianças, saques e canibalismo.

As colheitas começam a encolher, os roubos e ocultação de alimentos se multiplicam por todo lugar, Stalin insiste que o partido deve ser “implacável” em sua luta contra os sabotadores da revolução, e a fome entra em cena com suas terríveis sequelas: roubos, assassinatos, suicídios, aldeias que desaparecem porque todos os seus habitantes fugiram para as cidades na esperança de encontrar trabalho e alimentos. Os cadáveres já são tão numerosos que ficam estendidos nas ruas e estradas porque não há gente suficiente para enterrá-los.
Os testemunhos reunidos por Anne Applebaum são de arrepiar: há pais que matam seus filhos com as próprias mãos para que não sofram mais e, os mais desesperados, para se alimentar com eles. Já comeram todos os cães, cavalos, porcos, gatos e até ratos que conseguiam pegar, e os comunicados que chegam à Ucrânia vindos de Moscou são cada dia mais urgentes: negar a fome e, principalmente, o canibalismo e os suicídios, e punir sem dó os verdadeiros causadores dessa catástrofe: os inimigos de classe, os fascistas, os kulaks, os responsáveis reais pelas calamidades que se abatem sobre a Ucrânia.





As instruções de Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada

Quantos morreram? Cerca de cinco milhões de ucranianos, pelo menos. Mas não há como saber com exatidão, porque as estatísticas eram forjadas pela disciplina partidária que assim exigia ou pelo medo dos burocratas do partido de ser punidos como responsáveis pela fome. O Kremlin impôs, além disso, uma versão oficial dos acontecimentos que era reproduzida não só pela imprensa comunista, mas também pela capitalista, que fazia isso por meio de jornalistas vendidos ou covardes, como o repulsivo Walter Duranty, então correspondente do jornal The New York Times, que, comprado com casas e banquetes por Stalin, dava um jeito, em artigos que pareciam redigidos por um Pôncio Pilatos moderno, de apresentar um quadro de normalidade e desmentir os exageros de certos testemunhos que conseguiam vazar para o exterior sobre o que realmente ocorria na URSS e, principalmente, na Ucrânia. Uma das exceções foi o britânico Gareth Jones, quem conseguiu percorrer a pé o coração da fome durante várias semanas e contar aos leitores ingleses do jornal The Evening Standard os horrores vividos na Ucrânia.
Ler um livro como o de Anne Applebaum não é um prazer, e sim um sacrifício. Mas obrigatório, se queremos conhecer os extremos a que podem levar o fanatismo ideológico, a cegueira e a imbecilidade que o acompanham, e a irremediável violência que, mais cedo ou mais tarde, vem como consequência. A fome e as mortes na Ucrânia ajudam a entender melhor o terrorismo jihadista e a bestialidade irracional que consiste em se tornar uma bomba humana e explodir em um supermercado ou uma discoteca, pulverizando dezenas de inocentes. “Ninguém é inocente!” era um dos gritos do terror anarquista segundo Joseph Conrad, que descreveu melhor do que ninguém essa mentalidade em O Agente Secreto.
Se ler o livro de Anne Applebaum provoca calafrios, como terão sido os anos que sua autora levou para escrevê-lo? Posso imaginá-la muito bem, imersa horas e horas em arquivos empoeirados, lendo informes, cartas de suicidas, sermões, e descobrindo de repente que está com o rosto encharcado de lágrimas ou que está tremendo da cabeça aos pés, como uma folha de papel, transubstanciada por aquele apocalipse. Ela deve ter sentido mil e uma vezes a tentação de abandonar essa tarefa terrível. No entanto, continuou até o fim, e agora esse testemunho atroz está ao alcance de todos. Aconteceu há quase um século lá na Ucrânia, mas não nos enganemos: não é coisa do passado, continua ocorrendo, está ao nosso redor. Basta ter a coragem da Anne Applebaum para ver e enfrentar isso.

EL PAÍS