domingo, 31 de outubro de 2021

Francesca Scorsese / “Senti um grande alívio ao saber que não consegui meu primeiro papel pelo sobrenome”

 

Francesca Scorsese
Foto de PAOLA KUDACKI

Francesca Scorsese: “Senti um grande alívio ao saber que não consegui meu primeiro papel pelo sobrenome”


A filha de Martin Scorsese triunfa em ‘We are who we are’ como intérprete, mas sua verdadeira ambição é ser diretora. Por trás de um sobrenome tão intimidador, esconde-se uma jovem que atua com a mesma naturalidade com que abre a porta para Leonardo DiCaprio



Beatriz García
17 Abr 2021


É meio-dia em Nova York e Francesca Scorsese (21 anos) conversa animadamente pelo Zoom sobre sua vida, que define como “muito normal”, e seus primeiros projetos como atriz e diretora. “Minha infância também foi como a de qualquer outra criança, mas com muitas babás. Com meu pai sempre rodando fora e minha mãe sofrendo de mal de Parkinson, tinha que ser assim”, explica, enquanto brinca com seu cachorro. Francesca é a filha mais nova do diretor de cinema Martin Scorsese e da editora da Random House Helen S. Morris, a quinta mulher do criador de algumas obras-primas como Taxi driverO aviador e O lobo de Wall Street. Pode ser que essa infância a que se refere tenha sido relativamente comum para os padrões de uma pessoa criada no ecossistema de Hollywood, mas, à medida que a conversa avança, fica claro que para o restante dos mortais a vida de Francesca Scorsese é, no mínimo, extraordinária.


Pergunta. Como era um desses dias normais na casa dos Scorseses quando você era pequena?


Resposta. Como família, todos os sábados assistíamos a um filme antigo juntos. Meu pai sempre quis garantir que eu tivesse uma grande cultura cinematográfica. Escolhia esses filmes com muito carinho, levando em consideração minha idade ou as coisas que eu estava experimentando na vida. Claro, começamos com Fantasia e Cinderela, mas logo entramos em Hitchcock e ele sempre escolhia algum título histórico relacionado ao que eu estava estudando na escola. O cinema sempre esteve presente na nossa casa, em nosso universo, e eu achava normal conhecer as estrelas, mas também houve vezes em que disse: “Nossa, que incrível.” Principalmente quando as meninas da minha turma me imploravam para que as apresentasse a este ou aquele ator.

P. Sua lista de histórias com grandes estrelas de Hollywood deve ser infinita...

R. Lembro-me de que quando criança eu era muito tímida. Leo DiCaprio sempre queria brincar comigo quando vinha em casa e eu o odiava porque não queria ser o centro das atenções, por isso, eu me escondia debaixo da mesa. Adoro o Leo, é uma pessoa maravilhosa, mas quando eu tinha quatro anos não queria que ninguém me desse beijos e abraços, nem mesmo o Leonardo DiCaprio.

P. Pelo que fiquei sabendo, Robert de Niro é seu padrinho.

R. Sim, é ele. É uma pessoa muito querida. Quando recebi o roteiro do meu último trabalho, ele me disse que queria lê-lo antes de eu aceitar. Então nos encontramos, só nós, e tivemos uma longa conversa sobre o tema. Foi muito especial. Ele é meu mentor. Queria ter certeza de que eu sabia o que tinha pela frente. Seu conselho é muito valioso para mim porque muitas vezes há coisas sobre as quais você não quer falar com seu pai.

A atriz veste capa de seda preta (2.680 euros, 17.900 reais), colar de corrente e couro (c. p.v.) e cinto (1.820 euros, 12.200 reais), tudo da Chanel; camiseta básica preta e jeans, ambos vintage, e tênis esportivo de Alexander McQueen (580 euros, 3.880 reais).
A atriz veste capa de seda preta (2.680 euros, 17.900 reais), colar de corrente e couro (c. p.v.) e cinto (1.820 euros, 12.200 reais), tudo da Chanel; camiseta básica preta e jeans, ambos vintage, e tênis esportivo de Alexander McQueen (580 euros, 3.880 reais).PAOLA KUDACKI / ESTILISMO: ANDREW MUKAMAL


[Quando fala de seu último trabalho, Francesca Scorsese se refere a seu papel na série da HBO We are who we are, sob as ordens do diretor italiano Luca Guadagnino (Me chame pelo seu nome). Nela, Francesca dá vida a Britney, uma adolescente —que mora em uma base militar norte-americana na Itália— e que, com o resto de sua turma, vivencia os primeiros capítulos do despertar sexual, se entrega às festas de sua vida e navega pelos primeiros anos da juventude com a sensação de estar perdida, mas ao mesmo tempo sabendo bem o que não quer. Uma viagem em que o espectador inevitavelmente também retorna à sua adolescência. Um projeto filmado pouco antes da pandemia e que ela conseguiu conciliar com seus estudos na Academia de Cinema de Nova York].

P. Quando se deu conta de que queria se dedicar ao cinema?

R. Não me lembro de um momento específico. Cresci em sets de gravação e acho que inevitavelmente estava claro que eu me dedicaria a isso. Não sou uma pessoa muito brilhante em matemática ou ciência. Sempre tive um perfil mais artístico. Agora estou muito focada em atuar, mas ao mesmo tempo muito tocada pelos projetos que também tenho atrás das câmeras. Aos poucos verei aonde minha carreira me leva.

P. Como foi trabalhar com Luca Guadagnino em seu primeiro grande papel como atriz?

R. Foi interessante ver como ele trabalhava com um grupo de garotos jovens e inexperientes. Ele nos deu muita liberdade e muita improvisação, e acabou fazendo parte da galera, uma espécie de espírito divertido ao nosso redor para que tudo fluísse.

P. É verdade que Guadagnino não sabia o seu sobrenome quando te escalou para o papel?

R. Sim, pelo menos foi o que ele me disse. A princípio, ficava triste pensar que o único motivo pelo qual tinha conseguido o trabalho fosse o meu sobrenome. Mas Luca me contou que não fazia ideia de que eu era filha de Martin Scorsese. Aparentemente, ele me escolheu e mais tarde perguntou à equipe o meu nome e sobrenome, e disse: ‘Epa, mas ela tem algum parentesco com Scorsese?’. Senti um grande alívio quando me falou isso.

A série trata da transexualidade com muita naturalidade. É surpreendente como tudo é simples na ficção e como o debate tem sido complicado na sociedade e no plano político.

Acho que se uma pessoa se sente infeliz por ter nascido em um corpo que não lhe corresponde, deve fazer todo o possível para mudá-lo. Acontece com esse tema que muitos adultos cresceram em um mundo completamente diferente, onde isso não era normalizado. Respeito muito os adultos que se educam e mudam de opinião. Eu fiz isso em muitas coisas. É algo muito saudável. É fácil para minha geração entender porque crescemos em uma época de grandes mudanças e com mentes abertas. Mas algumas pessoas mais velhas, infelizmente, não captam tão facilmente.

P. O personagem Britney é uma garota muito segura de si mesma e de seu corpo. Você compartilha alguma dessas qualidades dela?

R. Esta é uma pergunta muito complicada. Claro que adoro os corpos naturais de todos os tamanhos e acredito na diversidade 100%. Mas eu sofro enfrentando meus próprios complexos. Todas essas inseguranças ficam ainda maiores quando recebo muita atenção, por exemplo, com a promoção da série. Acho que no final estamos todos cheios de inseguranças. Algo que tenho feito ultimamente para aumentar minha autoestima é limpar meu Instagram e meu Tik Tok para seguir pessoas que não se encaixam no físico padrão perfeito de uma modelo. Acho que está contribuindo muito para minha segurança.

Francesca veste blazer de lã, top branco de rede com bordados de bijuteria (670 euros, 4.500 reais) e colar (240 euros, 1.600 reais), tudo da Armani.
Francesca veste blazer de lã, top branco de rede com bordados de bijuteria (670 euros, 4.500 reais) e colar (240 euros, 1.600 reais), tudo da Armani.PAOLA KUDACKI / EL PAÍS
P. Fraser, um dos protagonistas da série, é fã de moda. É algo que te interessa também?

R. Não, de modo algum. Nunca fui uma pessoa de estilo. Você sempre vai me encontrar com uma camiseta larga, calça confortável e tênis. Toda a paixão que não coloco na moda, uso para maquiagem e cuidados com a pele. Aí, sim, ponho muita energia e carinho.

[Embora Francesca Scorsese queira trilhar seu próprio caminho à margem do sucesso de seu pai, ela não faz nenhum esforço para esconder que é muito próxima dos pais e que ambos são o farol de sua vida. Em suas redes sociais, marcadas pela naturalidade, fala sobre seus sentimentos e lhes professa carinho e admiração em partes iguais. De fato, os três são muito unidos e estão preparando um projeto sobre o qual ainda não pode falar, mas que será uma “experiência muito gratificante para a família”]

P. Em sua conta no Instagram, você fala abertamente sobre como é difícil conviver com a doença de sua mãe e como vocês são próximas.

R. O que mais me parte o coração é que ela é uma mulher incrível com uma mente absolutamente privilegiada. Seu Parkinson é a coisa mais horrível que já me aconteceu. Durante muito tempo me perguntei por que coisas tão ruins acontecem a pessoas boas. Me entristece muito ver vídeos do passado e vê-la tão ativa, tão viva, tão intensa ... Gostaria de ter sabido o quão cruel esta doença ia ser para que pudesse ter desfrutado dela ainda mais quando ainda estava bem. Não dar como certo que você pode ouvir sua mãe dizer que te ama porque chegará um dia em que você não poderá. Acho que nunca vou conhecer alguém que admiro mais do que ela.

P. Fran Lebowitz é outra de suas referências…

R. Ela é tão engraçada, rio muito com ela ... O que realmente me inspira nela é que não liga de modo algum para o que as outras pessoas pensam. Eu adoraria ter essa confiança em mim mesma. Costumamos passar a virada de ano juntas na casa dos meus pais, assistimos a um filme antigo, e o comentamos, Fran faz piadas muito engraçadas, vemos a bola da Times Square baixar e bebemos champanhe. É a alma de nossas festas.

P. Além de todos os projetos que tem como atriz e diretora [que evita especificar com o argumento de que está “em plena negociação”], também dá uma mão a seu pai, como community manager.

R. Vejo que não é mais segredo (risos). Demorei um pouco para convencê-lo a entrar no Instagram e mostrar seu lado mais desconhecido. As pessoas têm uma ideia dele como uma celebridade com muito dinheiro, com o glamour de Hollywood, mas ninguém realmente via o outro lado de Martin Scorsese: o homem que tem sua mulher doente com mal de Parkinson, o ser humano que adora os cachorros, esse homem que chora e se preocupa com seus entes queridos. Ele é uma estrela, claro, mas também é uma pessoa muito divertida e cheia de amor pela família e pelos amigos. Achei que seria muito bonito que mostrasse isso ao mundo.



domingo, 24 de outubro de 2021

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Almodóvar libera o mamilo / As pistas para decifrar o provocativo cartaz de ‘Madres paralelas’

 


Almodóvar libera o mamilo. As pistas para decifrar o provocativo cartaz de ‘Madres paralelas’

A imagem, criada por Javier Jaén, de um peito envolto no formato oval de um olho consegue o mesmo que as lágrimas no cinema: unir o interior e o exterior do corpo, tornar visível o invisível




Endika Key
9 ago 2021


Mais de 80 anos atrás, John Steinbeck decidiu ceder o protagonismo dos últimos parágrafos de As vinhas da ira a um peito nu. O retrato do seio não continha nenhuma conotação erótica, mas estava relacionado à maternidade. Por sua vez, o conceito de família deixava de estar atrelado ao biológico para se aproximar do social. O peito e o leite representavam como a luz se aproxima do ser humano mesmo nos momentos mais sombrios, embalando-o e acariciando-o: não há nada que defina melhor a nossa condição do que o fato de dois corpos se aproximarem e darem alimento e calor um ao outro. Era de alguma forma o final perfeito para o livro, que John Ford compreensivelmente omitiu em sua adaptação para o cinema de 1940, apesar de o monólogo final do filme —”We’ll go on forever, Pa, ‘cause we’re the people”(Continuaremos para sempre, porque somos o povo) —manter essa mesma ideia de esperança.

Nesta segunda-feira a produtora El Deseo deu à luz o primeiro cartaz de Madres paralelas (mães paralelas), o novo filme de Pedro Almodóvar, e a porta de entrada responde a uma ideia semelhante: um seio em preto e branco com um mamilo escorrendo leite no centro absoluto, emoldurado pela forma de um olho que parece chorar, em um depurado fundo vermelho e com uma fonte tipográfica grossa e cor-de-rosa. Tudo isso nos dá as boas-vindas ao novo trabalho do cineasta, mas, apesar dos elementos, não há sinal de paixão aqui e estamos quase mais próximos do manual de anatomia que Juan Gatti desenhou para o primeiro cartaz de A pele que habito (2011) do que do traseiro com lábios e em forma de coração que Iván Zulueta idealizou para Labirinto de paixões (1982).

Ainda não assistimos a Madres paralelas, mas é justamente aí que reside a importância dessa carta de apresentação: cada cartaz cria no público um imaginário mental que busca levá-lo às salas de cinema, e também um que determina a leitura do filme. Neste caso, o significante não pode ser mais poderoso: sabemos que Almodóvar volta a falar da maternidade, mas parece que a abordagem terá uma força inusitada e singular, direta e sem pudor, iluminada, mas com claro-escuros. Só poderemos comprovar em 10 de setembro, dia da estreia na Espanha, mas também não nos interessa porque, se o cinema de Almodóvar nos ensinou alguma coisa, é que os seus cartazes falam por si mesmos, como ramificações impossíveis que dirigem o olhar e gradualmente convertem o exterior das salas em parte de seu mundo.

Cartaz promocional de ‘A pele que habito’ (2011), desenhado por Juan Gatti e parte de sua série ‘Ciências Naturais’.
Cartaz promocional de ‘A pele que habito’ (2011), desenhado por Juan Gatti e parte de sua série ‘Ciências Naturais’.EL DESEO
O arrojo do teaser-cartaz de Madres paralelas é ainda mais pronunciado considerando a época atual em que vivemos. Já não estamos nos anos quarenta e sofrendo com o código Hays, mas em pleno 2021 ressignificar um peito provoca mais hoje do que há 20 anos. A regulamentação da maioria das redes sociais em pleno 2021 continua a impedir que seja mostrado o da mulher (e não o do homem) nas suas plataformas. E da norma sobre a sexualidade à sexualidade normativa há um passo.

Com este cartaz, El Deseo e Almodóvar parecem fazer uma grande declaração de intenções: aderem ao movimento feminista #FreeTheNipple ao mesmo tempo em que se arriscam a uma, possivelmente já prevista, censura. Javier Jaén, o criador do cartaz, parece pensar a mesma coisa: ele compartilhou o cartaz em sua conta do Instagram, mas sua atualização anterior é a de uma vaca com os úberes pixelizados, no que é um editorial claro sobre como tende a ser ridículo vencer o algoritmo.

Para além da estratégia publicitária, o cartaz de Madres paralelas não poderia ser mais coerente com um cineasta que nunca deixou de provocar —pelo menos aquela parte do público que quer ser provocada—, desde a anarquia underground incomensurável de suas origens até sua atual fase de estilização e depuração. E Almodóvar é um agitador cultural já em seus cartazes.

É sabido que a filmografia de Pedro Almodóvar dá continuamente pistas sobre a sua própria obra, passada e futura. Assim, em A flor do meu segredo (1995) acessamos a uma prévia de Dor e glória (2019) ou descobrimos que, no último romance de Amanda Gris, uma mulher escondia o cadáver do marido em uma geladeira horizontal em Volver (2006). Em Má educação (2004) havia cartazes visíveis de projetos como A avó fantasma ou Os amantes passageiros (2013) dirigidos por Enrique Goded, seu protagonista. E em Abraços partidos (2009), a história de um cineasta que não enxerga, já havia um pôster de Madres paralelas.

Cartaz de ‘Labirinto de paixões’, criado por Iván Zulueta em 1982.
Cartaz de ‘Labirinto de paixões’, criado por Iván Zulueta em 1982.

Mas se naquele cartaz fictício o que ganhava importância era a ideia do acaso e do ninho vazio, com um desenho um tanto inócuo, aqui se remete à visibilização e ao preenchimento com algo que pede um posicionamento. De forma semelhante à estratégia seguida pelo artista José María Cruz Novillo em seus já clássicos cartazes para Ana e os lobos (1973), O espírito da colmeia (1973), A prima Angélica (1974) e Cría cuervos (1976), onde eram as formas geométricas que permitiam descobrir a imagem, aqui o mamilo se converte em íris e pupila. De um jeito também próximo à coragem da escola polonesa de designers de cartazes dos anos sessenta e setenta, em que a alegoria incômoda estava sempre acima da representação, aqui o peito choroso remete a uma maternidade dolorosa. No auge das narrativas seriais, onde o audiovisual é vendido principalmente com base no enredo, esse cartaz vende um conceito.

Se tivéssemos que ficar com algumas dessas antecipações, sem dúvida seria com aquela gota prestes a sair de seu enquadramento e inundar o título. À semelhança daquele momento em Ninfomaníaca (2013) em que Lars Von Trier constrói uma imagem em que as pernas de sua protagonista choram com secreção vaginal, aqui o leite se torna, antes de tudo, um soluço visível que brota do corpo. Gonzalo de Lucas falava das lágrimas no cinema como se fossem uma imagem-ponte entre o interior e o exterior do corpo, como forma de tornar visível o invisível e, talvez, seja isso que pretende este teaser poster. Pode ser que se refira a alguma sequência de Madres paralelas onde Penélope Cruz, Milena Smith ou Aitana Sánchez-Gijón sofrem por seus respectivos filhos. Ou talvez possa se referir a todas essas mulheres que se sentam no banco mais afastado possível e se cobrem para dar o peito ao filho.

Um pôster com o título de ‘Madres paralelas’, em uma cena de ‘Abraços partidos’, de 2009.

Um pôster com o título de ‘Madres paralelas’, em uma cena de ‘Abraços partidos’, de 2009.

Não sabemos se este cartaz se refere à dor latejante que surge ao iniciar a amamentar, ou se a outro tipo de dor que só uma mãe pode compreender. Em qualquer caso, e como sempre, no primeiro dia e na primeira sessão, seremos os primeiros a verificar se o nosso imaginário e o de Almodóvar coincidem. We’ll go on forever, Pedro, ‘cause we’re the people.




Endika Rey é professor assistente da Faculdade de Filologia e Comunicação da Universidade de Barcelona. É especialista em estudos de cinema.




Truman Capote / Retratos

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Henri Cartier Bresson, 1947
Truman Capote
RETRATOS
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© Cecil Beaton, 1947
truman-capote-carl-van-vechten-photograph-1948
© Carl Van Vechten, 1948


© Irving Penn, 1948

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Fran Lebowitz / “Biden não é Roosevelt, mas pelo menos tenta”

 

Fran Lebowitz

Fran Lebowitz: “Biden não é Roosevelt, mas pelo menos tenta”


Escritora, catapultada à fama mundial graças a uma série documental de Martin Scorsese, reedita seus velhos ensaios humorísticos em um novo livro



Alex Vicente
Paris, 1 Jun 2021



O número é um telefone fixo de Nova York. Após digitá-lo, entra a secretária eletrônica. A voz inconfundível de Fran Lebowitz (Morristown, Nova Jersey, 70 anos) pede que deixe um nome e um telefone. “Responderei assim que possível”, jura, com seu timbre nasal e zombeteiro. Inevitavelmente, a gente a imagina filtrando as ligações, como nas séries dos anos noventa. E, de fato, a escritora aparece no meio da mensagem com um “olá” seco e ao mesmo tempo amigável, paradoxal. Lebowitz, personalidade nova-iorquina por antonomásia, catapultada à fama mundial graças à série documental Faz de conta que NY é uma cidade, dirigida por Martin Scorsese para a Netflix, começa perguntando sobre Madri. “Estive há alguns anos e me senti capaz de morar lá. É uma das poucas cidades onde se janta no único horário que eu acho aceitável: às 10 da noite”, gargalha esta noctâmbula incorrigível.

Lebowitz sofre uma crise criativa que a levou a deixar de escrever quase três décadas atrás: seu último livro, publicado em 1994, era um volume infantil sobre dois pandas nova-iorquinos que sonhavam em se mudar para Paris. O admirável é que, como boa personagem warholiana —escreveu para sua revista Interview nos anos setenta—, nunca precisou exercer seu ofício para dar o que falar. “Não tenho um trabalho, ou não um de verdade”, admite essa autora, mais conhecida por suas conferências e declarações midiáticas que por seus escritos. Isso não impede que aproveite o ímpeto da série de Scorsese, com quem mantém uma longa amizade —que, às vezes, parece cimentada na predisposição do diretor em rir de todas as graças que ela faz, que não são poucas—, para reeditar seus ensaios humorísticos dos anos setenta e começo dos oitenta, Vida metropolitana e Ciências sociais, fora de catálogo na Espanha e recuperados agora em um volume único com o título de Um dia qualquer em Nova York (Tusquets), que chegará esta quarta-feira às livrarias —o título não saiu no Brasil.

Seus textos são peças breves e cortantes, banhadas num humor que nem sempre envelheceu bem. Neles Lebowitz aborda, pela primeira vez, todos os clássicos de seu repertório posterior: os problemas imobiliários, os boletos a pagar, a feiura da roupa estampada e dos relógios digitais, os incômodos que lhe causam as crianças e as multidões e outros problemas do Primeiro Mundo. “Quando voltei a ler esses ensaios, reconheci a mim mesma, mas não o mundo que descrevo neles. O mundo mudou, mas eu não”, afirma, sobre esses textos escritos antes dos 30. “Sou muito teimosa e sempre tive ideias muito enfáticas. Não digo que sempre tenha razão, mas… Bom, sim, sempre tenho razão. Do contrário, teria mudado de opinião sobre minhas certezas”, reflete.

Fran Lebowitz com Andy Warhol em uma festa em Nova York. A escritora trabalhou na revista ‘Interview’, criada pelo artista.Fran Lebowitz com Andy Warhol em uma festa em Nova York. A escritora trabalhou na revista ‘Interview’, criada pelo artista. RICHARD E. AARON / REDFERNS
Um mal-entendido sobre sua personalidade pública, algo que parece lhe incomodar, é que se confundam sua misantropia jocosa e seu ostensivo ludismo —Lebowitz vive sem tecnologia à vista: nada de celular, computador, tablet, smartwatch ou balança com USB— com o conservadorismo aparente do “antes vivíamos melhor”. “Pelo contrário: acredito que algumas coisas estejam melhores agora. Para as mulheres não estão bem, mas melhores. Para os gays não estão bem, mas sim muito melhores. Vejo mais progresso nesse campo que em qualquer outro”, argumenta. “As pessoas já não se lembram de que ser homossexual em 1972 era quase como sê-lo em 1872. Na verdade, as pessoas não se lembram de nada. Eu sim me lembro. Sou um depósito de memória, porque parei de beber e de usar drogas aos 19 anos. Quando meus amigos não se lembram de algo, me perguntam. Eu era a única que não estava chapada.”

Uma infância “feliz”

Por trás dos seres mais engraçados costuma haver uma história com matizes trágicos. Não é o caso de Lebowitz, que afirma ter tido uma infância “feliz e absolutamente convencional” no seio de uma família judaica que tocava uma loja de móveis. “Quando publiquei meu primeiro livro, um amigo da família me disse: ‘Você é engraçada igual ao seu pai’. Aquilo me deixou atônita, porque nunca tinha visto meu pai sendo engraçado. Talvez tudo isto em mim venha dele”, diz. Guarda boas lembranças dessa juventude no outro lado do rio Hudson. “Sou uma pessoa bastante imatura. Sinto falta desse momento da minha vida em que não tinha que pagar impostos”, resume. “Sempre me senti diferente dos outros, mas não excluída. Na verdade, sempre tive milhões de amigos. O que aconteceu foi que, aos 11 anos, percebi que era homossexual e que não ia poder ficar lá”, acrescenta, em um dos raros momentos em que não parece ter uma piada na ponta da língua.

Mudou-se para Nova York aos 18 anos, pouco depois de descobrir a existência de James Baldwin, o grande escritor negro e homossexual, pela televisão. Reconheceu nele a mesma diferença radical e uma maneira de ser escritor com a qual se identificava, distante da solenidade dos clássicos que devorava desde a infância. “Para mim, um escritor era uma pessoa morta, e Baldwin estava muito vivo”. Trabalhou como taxista —“Minha única relação monogâmica foi com aquele carro”—, vendendo cintos e fazendo faxina, até que começou a publicar nas revistas alternativas da Nova York dos anos setenta. Com o tempo, virou uma efígie daquele tempo, mais duro do que prega a versão oficial: “Crescemos sonhando com a Paris dos anos vinte. Os jovens de hoje crescem pensando na Nova York dos anos setenta. Eu estava lá e sou das poucas que continuam vivas. Sobrevivi a duas pragas: as drogas e a aids”.

Fran Lebowitz e Martin Scorsese conversam na Brooklyn Academy of Music, em 2014.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese conversam na Brooklyn Academy of Music, em 2014. RAHAV SEGEV / WIREIMAGE

A atual pandemia transformou em realidade um dos sonhos de Lebowitz, patologicamente alérgica a multidões. Nos primeiros dias do confinamento, saiu para passear, apesar da proibição. Seria seu encontro definitivo com a cidade. “Passei na frente do Empire State Building, do Carnegie Hall, da Times Square. Eram lugares desertos. E, para minha surpresa, não gostei. Eu sonhava com uma cidade sem turistas, mas quando aconteceu me entristeceu”, reconhece. “Nenhuma das coisas agradáveis que tenham acontecido é comparável com os milhões de pessoas que morreram.” Nem sequer, claro, a saída de Donald Trump da Casa Branca. “Sem Trump como presidente, as coisas não teriam ido tão mal. Nunca gostei de Joe Biden, que está na política desde que me conheço por gente, mas no dia em que ele ganhou foi um dos momentos de maior alívio de minha vida. Precisávamos de um grande presidente, como foi Lincoln, embora saiba que nunca o teremos. Está claro que Biden não é como Roosevelt, e nunca será. Mas pelo menos tenta.”