sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Almodóvar libera o mamilo / As pistas para decifrar o provocativo cartaz de ‘Madres paralelas’

 


Almodóvar libera o mamilo. As pistas para decifrar o provocativo cartaz de ‘Madres paralelas’

A imagem, criada por Javier Jaén, de um peito envolto no formato oval de um olho consegue o mesmo que as lágrimas no cinema: unir o interior e o exterior do corpo, tornar visível o invisível




Endika Key
9 ago 2021


Mais de 80 anos atrás, John Steinbeck decidiu ceder o protagonismo dos últimos parágrafos de As vinhas da ira a um peito nu. O retrato do seio não continha nenhuma conotação erótica, mas estava relacionado à maternidade. Por sua vez, o conceito de família deixava de estar atrelado ao biológico para se aproximar do social. O peito e o leite representavam como a luz se aproxima do ser humano mesmo nos momentos mais sombrios, embalando-o e acariciando-o: não há nada que defina melhor a nossa condição do que o fato de dois corpos se aproximarem e darem alimento e calor um ao outro. Era de alguma forma o final perfeito para o livro, que John Ford compreensivelmente omitiu em sua adaptação para o cinema de 1940, apesar de o monólogo final do filme —”We’ll go on forever, Pa, ‘cause we’re the people”(Continuaremos para sempre, porque somos o povo) —manter essa mesma ideia de esperança.

Nesta segunda-feira a produtora El Deseo deu à luz o primeiro cartaz de Madres paralelas (mães paralelas), o novo filme de Pedro Almodóvar, e a porta de entrada responde a uma ideia semelhante: um seio em preto e branco com um mamilo escorrendo leite no centro absoluto, emoldurado pela forma de um olho que parece chorar, em um depurado fundo vermelho e com uma fonte tipográfica grossa e cor-de-rosa. Tudo isso nos dá as boas-vindas ao novo trabalho do cineasta, mas, apesar dos elementos, não há sinal de paixão aqui e estamos quase mais próximos do manual de anatomia que Juan Gatti desenhou para o primeiro cartaz de A pele que habito (2011) do que do traseiro com lábios e em forma de coração que Iván Zulueta idealizou para Labirinto de paixões (1982).

Ainda não assistimos a Madres paralelas, mas é justamente aí que reside a importância dessa carta de apresentação: cada cartaz cria no público um imaginário mental que busca levá-lo às salas de cinema, e também um que determina a leitura do filme. Neste caso, o significante não pode ser mais poderoso: sabemos que Almodóvar volta a falar da maternidade, mas parece que a abordagem terá uma força inusitada e singular, direta e sem pudor, iluminada, mas com claro-escuros. Só poderemos comprovar em 10 de setembro, dia da estreia na Espanha, mas também não nos interessa porque, se o cinema de Almodóvar nos ensinou alguma coisa, é que os seus cartazes falam por si mesmos, como ramificações impossíveis que dirigem o olhar e gradualmente convertem o exterior das salas em parte de seu mundo.

Cartaz promocional de ‘A pele que habito’ (2011), desenhado por Juan Gatti e parte de sua série ‘Ciências Naturais’.
Cartaz promocional de ‘A pele que habito’ (2011), desenhado por Juan Gatti e parte de sua série ‘Ciências Naturais’.EL DESEO
O arrojo do teaser-cartaz de Madres paralelas é ainda mais pronunciado considerando a época atual em que vivemos. Já não estamos nos anos quarenta e sofrendo com o código Hays, mas em pleno 2021 ressignificar um peito provoca mais hoje do que há 20 anos. A regulamentação da maioria das redes sociais em pleno 2021 continua a impedir que seja mostrado o da mulher (e não o do homem) nas suas plataformas. E da norma sobre a sexualidade à sexualidade normativa há um passo.

Com este cartaz, El Deseo e Almodóvar parecem fazer uma grande declaração de intenções: aderem ao movimento feminista #FreeTheNipple ao mesmo tempo em que se arriscam a uma, possivelmente já prevista, censura. Javier Jaén, o criador do cartaz, parece pensar a mesma coisa: ele compartilhou o cartaz em sua conta do Instagram, mas sua atualização anterior é a de uma vaca com os úberes pixelizados, no que é um editorial claro sobre como tende a ser ridículo vencer o algoritmo.

Para além da estratégia publicitária, o cartaz de Madres paralelas não poderia ser mais coerente com um cineasta que nunca deixou de provocar —pelo menos aquela parte do público que quer ser provocada—, desde a anarquia underground incomensurável de suas origens até sua atual fase de estilização e depuração. E Almodóvar é um agitador cultural já em seus cartazes.

É sabido que a filmografia de Pedro Almodóvar dá continuamente pistas sobre a sua própria obra, passada e futura. Assim, em A flor do meu segredo (1995) acessamos a uma prévia de Dor e glória (2019) ou descobrimos que, no último romance de Amanda Gris, uma mulher escondia o cadáver do marido em uma geladeira horizontal em Volver (2006). Em Má educação (2004) havia cartazes visíveis de projetos como A avó fantasma ou Os amantes passageiros (2013) dirigidos por Enrique Goded, seu protagonista. E em Abraços partidos (2009), a história de um cineasta que não enxerga, já havia um pôster de Madres paralelas.

Cartaz de ‘Labirinto de paixões’, criado por Iván Zulueta em 1982.
Cartaz de ‘Labirinto de paixões’, criado por Iván Zulueta em 1982.

Mas se naquele cartaz fictício o que ganhava importância era a ideia do acaso e do ninho vazio, com um desenho um tanto inócuo, aqui se remete à visibilização e ao preenchimento com algo que pede um posicionamento. De forma semelhante à estratégia seguida pelo artista José María Cruz Novillo em seus já clássicos cartazes para Ana e os lobos (1973), O espírito da colmeia (1973), A prima Angélica (1974) e Cría cuervos (1976), onde eram as formas geométricas que permitiam descobrir a imagem, aqui o mamilo se converte em íris e pupila. De um jeito também próximo à coragem da escola polonesa de designers de cartazes dos anos sessenta e setenta, em que a alegoria incômoda estava sempre acima da representação, aqui o peito choroso remete a uma maternidade dolorosa. No auge das narrativas seriais, onde o audiovisual é vendido principalmente com base no enredo, esse cartaz vende um conceito.

Se tivéssemos que ficar com algumas dessas antecipações, sem dúvida seria com aquela gota prestes a sair de seu enquadramento e inundar o título. À semelhança daquele momento em Ninfomaníaca (2013) em que Lars Von Trier constrói uma imagem em que as pernas de sua protagonista choram com secreção vaginal, aqui o leite se torna, antes de tudo, um soluço visível que brota do corpo. Gonzalo de Lucas falava das lágrimas no cinema como se fossem uma imagem-ponte entre o interior e o exterior do corpo, como forma de tornar visível o invisível e, talvez, seja isso que pretende este teaser poster. Pode ser que se refira a alguma sequência de Madres paralelas onde Penélope Cruz, Milena Smith ou Aitana Sánchez-Gijón sofrem por seus respectivos filhos. Ou talvez possa se referir a todas essas mulheres que se sentam no banco mais afastado possível e se cobrem para dar o peito ao filho.

Um pôster com o título de ‘Madres paralelas’, em uma cena de ‘Abraços partidos’, de 2009.

Um pôster com o título de ‘Madres paralelas’, em uma cena de ‘Abraços partidos’, de 2009.

Não sabemos se este cartaz se refere à dor latejante que surge ao iniciar a amamentar, ou se a outro tipo de dor que só uma mãe pode compreender. Em qualquer caso, e como sempre, no primeiro dia e na primeira sessão, seremos os primeiros a verificar se o nosso imaginário e o de Almodóvar coincidem. We’ll go on forever, Pedro, ‘cause we’re the people.




Endika Rey é professor assistente da Faculdade de Filologia e Comunicação da Universidade de Barcelona. É especialista em estudos de cinema.




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