segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Vargas Llosa / O regresso à Grécia

Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

O regresso à Grécia

Desde que o nacionalismo não erga sua horrível cabeça, não é ruim que uma pessoa tenha saudade da língua que perdeu, das cidades ou bairros das brincadeiras infantis, do colégio onde estudou e dos ritos familiares entre os quais cresceu


17 AUG 2019

Um rapaz grego, há meio século, cansado da falta de trabalho e do caos que o rodeavam em seu país natal, conseguiu escapar para a Suécia. Enfrentou ali a difícil vida do imigrante. Sobrevivendo como podia, aprendeu o idioma – e tão bem que descobriu uma vocação de escritor e começou a escrever em sueco. Teve bastante sucesso. Tanto que pôde ganhar a vida escrevendo romances e ensaios. Casou-se com uma sueca, com quem teve filhos e netos. Comprou um apartamento, depois uma casinha de verão e um pequeno apartamento onde se encerrava de manhã e de tarde para ler e escrever.
Theodor já tinha feito 70 e tantos anos quando um dia, de repente, vivenciou algo que nunca até então havia conhecido: um bloqueio intelectual. Olhava o rolo de sua pequena máquina portátil e tinha a mente em branco, sem uma única ideia sobre a qual redigir. Saiu para caminhar à beira do oceano, algo que sempre o apaziguava. Mas desta vez não funcionou; dias, semanas, meses esteve assim, sem nada a dizer, oprimido pela paralisia e a constipação intelectuais. Gunilla, sua mulher, inquieta, propôs uma viagem. Por que não à Grécia, sua terra natal? Do fundo de sua desmoralização, ele aceitou.
Chegaram a Atenas de avião. Ali alugaram um carro e se lançaram à estrada, rumo ao Peloponeso, onde se encontrava aquele vilarejo diminuto, Molaoi, onde Theodor havia nascido. Lá estava, empoeirado, eterno e efusivo. Alguns parentes centenários continuavam ali, intangíveis, como as oliveiras, as amendoeiras, as cabras, os gatos e as trepadeiras. Reconheceram-no na rua. A escolinha foi alertada. Os professores lhe organizaram uma homenagem que aconteceu ao anoitecer, quando uma leve brisa substituía o calor sufocante do dia, sob uma lua redonda como um queijo. Quando as crianças cantaram para ele, Theodor sentiu que duas grandes lágrimas deslizavam por sua velha face.
Na manhã seguinte, na antiga pensão onde o casal se hospedava, Theodor se levantou logo cedo, como sempre havia feito na Suécia. Preparou sua maquininha portátil e, sentindo que todo o corpo tremia, começou a escrever. Com a mesma insegurança e o terror de se equivocar em cada palavra, como havia feito em cada manhã nesse meio século de vida sueca. Mas desta vez não escrevia em sua língua adotada, e sim em grego. Sem deixar de tremer, cada vez mais morto de medo, as palavras fluíam, enchiam as páginas e ele sentia uma excitação extraordinária, a mesma que vivenciou lá, no fundo dos tempos, quando escreveu sua primeira história sueca.
O livro escrito em grego por Theodor Kallifatides – o primeiro de sua história de escritor – acaba de ser traduzido ao espanhol por Selma Ancira (Galaxia Gutemberg) e se chama Otra Vida por Vivir (outra vida por viver). Comoveu-me profundamente. Pela história que conta e que acabo de resumir sucintamente, mas também pela naturalidade e a destreza que emprega ao contar, como se se tratasse de algo perfeitamente natural, e não o cataclismo psicológico que deve ter sido, para esse quase octogenário, redescobrir a língua de sua infância, a língua esquecida, substituída pela do imigrante, que, após aquele bloqueio traumático, redescobre o grego e ao mesmo tempo recupera uma vocação que acreditava estar perdendo. É um livro muito belo, o de uma verdadeira morte e ressurreição espiritual, um milagre contado com a tranquila naturalidade com que se descreve um fato trivial e cotidiano.
Talvez a tremenda impressão que tive lendo-o se deva a que, ao contrário de Theodor Kallifatides, não há na minha vida o que há na sua, essa aldeia, Molaoi, perdida nas entranhas do Peloponeso, onde tudo começou, o lugar de onde partem suas lembranças. Eu não sei onde começam as minhas. Certamente não em Arequipa, onde nasci, porque minha mãe e meus avós me tiraram de lá quando tinha apenas um ano, antes do início das minhas recordações. Estas foram de Cochabamba, mas no casarão da rua Ladislao Cabrera, lá na Bolívia, todas as memórias da minha família bíblica eram de Arequipa, e eu as herdei sem tê-las vivido. Em Cochabamba aprendi a ler, o melhor que me aconteceu, mas creio que só comecei a viver de verdade em Piura, que desapareceu sob uma modernidade que enterrou essa pequena cidade rodeada de areais, onde os burrinhos eram chamados de “piajenos” e as crianças, de “churres”, e onde aprendi que as cegonhas não traziam os bebês de Paris. Fui morar em Lima aos onze anos, e muitos anos se passaram antes que deixasse de detestar essa cidade que me distanciou de meus avós e meus tios.
Sempre pensei que ser um cidadão do mundo era o melhor que podia acontecer a uma pessoa, e continuo pensando assim. Que as fronteiras são a fonte dos piores preconceitos, que elas criam inimizades entre os povos e provocam as estúpidas guerras. E que, por isso, é preciso tentar afiná-las pouco a pouco, até que desapareçam totalmente. Isso está ocorrendo, sem dúvida, e essa é uma das boas coisas da globalização, embora haja também algumas ruins, como o aumento, até extremos vertiginosos, da desigualdade econômica entre as pessoas.
Mas é verdade que a língua primeira, aquela em que você aprende a dar nome à família e às coisas deste mundo, é uma verdadeira pátria, que depois, com a azáfama da vida moderna, às vezes vai se perdendo, confundindo-se com outras, e isso é provavelmente a prova mais difícil que os imigrantes têm de enfrentar, essa maré humana que cresce a cada dia, à medida que se amplia o abismo entre os países prósperos e os miseráveis, a de aprender a viver em outra língua, isto é, em outra maneira de entender o mundo e expressar a experiência, as crenças, as pequenas e grandes circunstâncias da vida cotidiana.
Theodor Kallifatides conta tudo isso como se fosse fácil, como se tal reconstrução linguística fosse alcançada de uma maneira natural, e não significasse algo dificílimo de conseguir, algo que está fora do alcance de uma enorme maioria de imigrantes, que jamais conseguem se integrar no seu novo país como ele conseguiu. Mas ele também conta como, ainda nos casos mais bem-sucedidos, como o seu, persiste sempre, sepultada possivelmente no recôndito mais profundo e secreto da personalidade, aquela raiz, aquele ponto de partida feito de paisagem, memória, língua, família, que, de repente, torna-se exigência peremptória, uma nostalgia que exige suas prerrogativas. Eu me lembro, em minha juventude em Miraflores, de um velhinho polonês que vendia peles e havia sobrevivido aos campos de extermínio nazistas. Dizia detestar a Polônia porque, segundo ele, os poloneses haviam cruzado os braços quando aquilo ocorria, mas, sempre que conversávamos, ele voltava à Polônia, à sua família, ao vilarejo onde passara a infância, à cidade onde seu pai e seu avô também tinham comercializado peles. Às vezes seus olhos marejavam recordando essa terra que dizia detestar.
Desde que o nacionalismo não erga sua horrível cabeça, não é ruim que uma pessoa tenha saudade da língua que perdeu, das cidades ou bairros das brincadeiras infantis, do colégio onde estudou e dos ritos familiares entre os quais cresceu. Esse é um sentimento saudável, cálido, necessário, e assim nos mostra Otra Vida por Vivir, um livro sem pretensões que é, no entanto, profundamente otimista e humano, pois descreve outra cara da imigração e apresenta o amor ao que nos é próprio sem uma gota de patriotismo em excesso nem sentimentalismo.

sábado, 28 de setembro de 2019

Vargas Llosa / As duas faces de Ezra Pound



Mario Vargas Llosa

As duas faces de Ezra Pound

Poeta e caçador de talentos literários ficou deslumbrado pelos textos de James Joyce e lhe procurou editores. Na Segunda Guerra Mundial repetiu as maldades que os nazistas atribuíam aos judeus


22 jul 2019



A biblioteca do barco que me leva a Anchorage é pequena e pulquérrima. Com exceção de uma coleção de clássicos cuja letra microscópica os coloca fora de meu alcance, seus romances de aeroporto, de autores desconhecidos, me deixam frio, tanto como suas biografias de jogadores de beisebol, ases das corridas e do ringue, os livros de autoajuda e as fofocas de Hollywood. Mas, perdido nas estantes de Current Affairs encontro um livro de um jovem professor de Harvard, Kevin Birmingham, que é de muito proveito: O Livro mais Perigoso. James Joyce e a Batalha por Ulisses.
Versa sobre muito mais do que dizem seu título e subtítulo, ou seja, os contratempos que James Joyce passou com seus livros, pela cegueira e covardia dos editores do Reino Unido e dos Estados Unidos que, temerosos pela censura, as multas e os julgamentos, não se atreviam a publicá-los. O caso de Joyce é único: foi famoso antes de ter um só livro editado.
Ezrad Pound
Fernando Vicente
E, em boa parte, isso se deveu a esse extraordinário caçador de talentos literários que foi o poeta Ezra Pound. É bem conhecido o que ele fez por T. S. Eliot e o tempo que dedicou (renunciando ao que lhe tomava escrever) para corrigir A Terra Sem Vida. Mas provavelmente fez ainda muito mais para que o gênio de Joyce fosse reconhecido e, sobretudo, publicado. Soube dele pela primeira vez em 1914, pelo poeta W. B. Yeats, que lhe aconselhou que pedisse uma colaboração de Joyce a uma antologia dedicada à literatura irlandesa que Pound preparava. Ele o fez e Joyce, que era totalmente desconhecido, além de sua colaboração, lhe enviou vários contos de Dublinenses e fragmentos de Retrato do Artista quando Jovem, para os quais procurava editor. O deslumbramento de Pound ao ler esses textos está documentado em suas cartas. Como homem prático que era, de imediato inundou de relatórios os melhores editores ingleses e norte-americanos, exortando-os a publicar esses primeiros livros de Joyce que, lhes garantia, eram de altíssima qualidade literária e de uma grande originalidade. As respostas que recebeu são de dar nojo: nenhuma reconhecia o menor talento literário em Joyce. Afirmavam que haviam recusado seus livros porque eram mal escritos e pior organizados, tinham estruturas deficientes, além de vulgares e ordinários. Para que se arriscar a receber uma multa e processos por esses livros que não passariam por nenhuma censura se, além do mais, eram tão medíocres?
Desde o surgimento de ‘Ulisses’ todos os romancistas contemporâneos seriam discípulos de Joyce
Pound não deu o braço a torcer. Respondeu a todas essas objeções com argumentos literários, acusando os editores de cegos e medíocres e afirmando que o jovem escritor irlandês estava revolucionando a literatura de seu tempo e, em especial, a prosa literária da língua inglesa. Seu entusiasmo contagiou duas mulheres extraordinárias: Harriet Weaver, diretora de uma pequena revista literária inglesa, The Egoist, onde apareceriam os primeiros contos de Dublinenses e capítulos de Retrato do Artista quando Jovem, e Margaret Anderson, que em 1918 começou a publicar episódios de Ulisses na revista que dirigia nos Estados unidos, The Little Review. As duas enfrentaram ações judiciais por sua ousadia. Impertérritas, continuaram empenhadas em divulgar a obra de James Joyce e, inclusive, lhe enviaram dinheiro para ajudá-lo a sobreviver apesar de suas crônicas crises econômicas e do que gastava em oculistas.
Ao contrário dos editores da época, muitos escritores e livreiros (entre esses, a primeira editora de Ulisses, Sylvia Beach, a criadora da Shakespeare and Company, a livraria norte-americana de Paris) ficaram muito impressionados ao tomar conhecimento dos textos de Joyce. Ainda que provavelmente nenhum tenha demonstrado isso como Valery Larbaud (que seria o primeiro tradutor ao francês de Ulisses), que, após ler em The Little Review os fragmentos do grande romance de Joyce, lhe escreveu uma carta oferecendo-lhe sua casa (com uma criada) e sua grande biblioteca, além de sua célebre coleção de soldadinhos de chumbo. Joyce se mudou para lá com Norah, sua mulher, e seus dois filhos e por um bom tempo pôde continuar trabalhando com tranquilidade nesse romance que lhe tomaria mais de sete anos.
Na Itália uma das seitas mais radicais da ultradireita antidemocrática se chama nada menos do que CasaPound
Ainda que a primeira edição em livro de Ulisses tenha aparecido em Paris em 1922 graças a Sylvia Beach, somente 12 anos depois – 1934 – um juiz de Nova York – John Woolsey – em uma memorável sentença autorizou a circulação do romance, que apareceria pouco depois já na edição da Random House. A sentença de Woolsey foi reproduzida nessa nova edição e abriria desde então um precedente decisivo a todas as tentativas de proibir a circulação de obras “atrevidas e desavergonhadas” nos Estados Unidos. Uma sentença semelhante foi emitida na Inglaterra nesse mesmo ano.
Nos dois países a reação da crítica foi muito semelhante. Quase todos os que escreveram sobre o romance reconheceram – alguns a contragosto – o gênio de Joyce e as extraordinárias novidades que o livro trazia tanto no domínio da língua como na estrutura da narração desse dia tão minuciosamente descrito de Leopold Bloom. Mas quase todos eles denunciavam a vulgaridade atroz do palavreado “pestilento” com o qual se expressavam não só os personagens como o próprio narrador e, principalmente, no longo monólogo final de Molly Bloom, que alguns chamaram de “insolente” e até mesmo “demoníaco”.
Cedo ou tarde todos eles reconheceriam que o romance seria a partir de então algo radicalmente diferente graças a Joyce e a sua prodigiosa realização. Esse sucesso se deveu em boa parte ao instinto e aos esforços de Ezra Pound. No extraordinário ensaio que dedicou ao livro foi o primeiro a reconhecer que desde o surgimento de Ulisses todos os romancistas contemporâneos, incluindo os que nunca o leram, seriam discípulos de Joyce; e isso também reconheceu William Faulkner, outro romancista fora do comum que provavelmente nunca teria escrito sua saga sulista sem as lições que recebeu lendo Joyce.
O serviço que Ezra Pound prestou ao autor de Ulisses não consistiu somente em encontrar editores para seus textos; também conseguiu mecenas que o ajudaram economicamente e lhe permitiram, por exemplo, operar tantas vezes seu olho direito. Quando se conheceram pessoalmente, em Paris, em 1918, Ezra Pound já estava havia quatro anos multiplicando esforços para divulgar a quem chamaria de “o renovador da cultura do Ocidente”. Pound é a figura mais simpática que aparece no livro de Kevin Birmingham.
É difícil identificar esse homem generoso e altruísta com o Ezra Pound que, durante a Segunda Guerra Mundial, pedia na rádio italiana que os jovens soldados norte-americanos desertassem de suas fileiras e repetia todas as maldades que os nazistas atribuíam aos judeus. Por isso foi capturado pelo Exército norte-americano e levado por toda a Itália em uma jaula, como um louco furioso. Depois, nos Estados Unidos, um tribunal, para não o fuzilar por traição à pátria, o declarou louco. E passou alguns anos em um manicômio. Em nossos dias, na Itália fascista de Matteo Salvini, uma das seitas mais radicais da ultradireita antidemocrática se chama nada menos do que Casa Pound. Georges Bataille escreveu que o ser humano é uma jaula onde habitam os anjos e os demônios. Em poucas pessoas isso foi tão evidente como no caso de Ezra Pound.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Vargas Llosa / “O Brexit é um produto da incultura”

Mario Vargas Llosa

Vargas Llosa: “O Brexit é um produto da incultura”

Vencedor do Nobel de literatura defende que "livros geram cidadãos com um espírito crítico, e a democracia não pode sobreviver sem um espírito crítico”


JUAN CRUZ RUIZ
Los Llanos De Aridane - 13 SEP 2019 - 14:48 COT

As duas intervenções públicas de Mario Vargas Llosa no Festival Hispano-Americano de Escritores de Los Llanos de Aridane (Espanha) foram cartas de batalha em favor da leitura. Diante das crianças que se concentraram no município das Canárias para ouvir a narração de seu conto Fonchito e a Lua (que a colombiana Paula Acuña encenou) e dos adultos aos quais, apresentado por Juan Jesús Armas Marcelo, pediu que lessem para não serem enganados. Ele continuou falando sobre isso, horas mais tarde, ao EL PAÍS. Referia-se à importância que o entretenimento alcançou sobre a literatura. “Não se pode negar-lhe qualidade. O entretenimento é divertido e fácil de digerir, mas não acho que, como a literatura, forme cidadãos ideais para uma sociedade democrática. Os livros deixam uma marca muitíssimo maior; geram cidadãos com um espírito crítico, e a democracia não pode sobreviver sem um espírito crítico.”

Mario Vargas Llosa, na última terça-feira na ilha da Palma.VASCO SZINETAR

"Infelizmente", diz o vencedor do Nobel de literatura, "esse espírito está se perdendo muito na Europa: o Brexit, os movimentos nacionalistas e independentistas na Espanha, são fundamentalmente o produto da incultura, o que permitiu que essas deformações ideológicas adquirissem grande protagonismo. Esse espírito crítico se perde e isso tem a ver com uma literatura de puro entretenimento, que não tem mais a capacidade de manter vivo o descontentamento com a realidade.”
Acredita que o Brexit parece "uma série trágica". “Nada na história indicava que a Inglaterra pudesse derivar nesse chauvinismo grotesco. E a Itália foi salva por milagre, esperemos que não seja momentâneo. Os rebrotes de nacionalismo frenético já estão nos países mais instruídos, como a Suécia e a Suíça.”
O autor insta “os escritores a que se mobilizem. Estão moralmente obrigados, pelo que a literatura representou, a estar cientes do drama que estamos vivendo e a dar novamente à literatura essa presença crítica que sempre teve nos melhores tempos”.
Ele se mobilizou e, há 60 anos, publicou Conversa na Catedral. Não tinha consciência de estar escrevendo um livro político. “Queria deixar um testemunho literário da ditadura de Odría. Foi muito mal recebido. Para muitas pessoas pareceu longo, difícil. Agora tem mais leitores do que quando saiu. Eu me alegro. É o livro que me deu mais trabalho. Deixou um testemunho que, infelizmente, fala de feridas semelhantes sofridas em cada um dos países da América, com muito pouquíssimas exceções, dos estragos que uma ditadura causa.”
O Nobel também se pronunciou sobre o melhor da literatura contemporânea. Pôs em primeiro plano a escrita de não-ficção da jornalista argentina e colunista do EL PAÍS Leila Guerriero. "Jornalismo do bom, negação das falsidades, um esforço extraordinário para dizer a verdade que significa literatura ao mesmo tempo.”

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Vargas Llosa / A capitã e o ministro


Fernando Vicente

Mario Vargas Llosa

A capitã e o ministro

Devemos estar atentos ao julgamento de Carola Rackete, que poderia ser condenada a 10 anos de prisão, e exigir que os juízes salvem a honra e as boas tradições da Itália, hoje pisoteadas por Salvini e a Liga


12 JUL 2019

Carola Rackete, a capitã do barco Sea-Watch 3, que fazia 17 dias estava à deriva no Mediterrâneo com 40 imigrantes a bordo resgatados no mar, atracou na madrugada da sexta-feira retrasada na ilha italiana de Lampedusa, apesar da proibição das autoridades desse país. Fez bem. Foi de imediato detida pela polícia italiana, e o ministro do Interior e líder da Liga, Matteo Salvini, se apressou a advertir a ONG espanhola Open Arms, que navega pelos arredores com dezenas de imigrantes resgatados no mar, de que “caso se atreva a chegar perto da Itália terá a mesma sorte que a jovem alemã Carola Rackete”, que poderá ser condenada a dez anos de prisão e a pagar uma multa de 50.000 euros [a acusação contra Rackete foi arquivada após a conclusão deste artigo]. O fundador da Open Arms, Óscar Camps, respondeu: “Da prisão se sai, do fundo do mar, não”.
Quando as leis, como as invocadas por Matteo Salvini, são irracionais e desumanas, é um dever moral desacatá-las, como fez Carola Rackete. O que deveria ter feito, a não ser isso? Deixar que morressem esses pobres imigrantes resgatados no mar e que, depois de 17 dias à deriva, se encontravam em condições físicas muito precárias, alguns deles a ponto de morrer? A jovem alemã violou uma lei estúpida e cruel, agindo de acordo com as melhores tradições do Ocidente democrático e liberal, as quais têm como antípodas precisamente o que a Liga e seu Matteo Salvini representam: não o respeito da legalidade, mas uma caricatura preconceituosa e racista do Estado de direito. E são precisamente ele e seus seguidores (numerosos demais, aliás, e não só na Itália, mas em quase toda a Europa) que encarnam a selvageria e a barbárie de que acusam os imigrantes. Não merecem outros qualificativos os que haviam decidido que, para não pisarem o sagrado solo da Itália, melhor seria os quarenta sobreviventes do Sea-Watch 3 se afogarem ou morrerem de doenças ou de fome. Graças à valentia e decência de Carola Rackete pelo menos estes quarenta infelizes se salvarão, pois já há cinco países europeus que se ofereceram para recebê-los.
Contra a imigração há preconceitos crescentes que vão alimentando o perigoso racismo que explica o ressurgimento do nacionalismo em quase toda a Europa, a ameaça mais grave para o mais generoso projeto em marcha da cultura da liberdade: a construção de uma União Europeia que no dia de amanhã possa competir de igual para igual com os dois gigantes internacionais, os Estados Unidos e a China. Se o neofascismo de Matteo Salvini e companhia triunfasse, haveria Brexits por toda a parte no velho continente, e seus países, divididos e antagonizados, teriam à espera um triste porvir a fim de resistir aos abraços mortais do urso russo (veja-se a Ucrânia).
Apesar de as estatísticas e as vozes de economistas e sociólogos serem conclusivas, os preconceitos prevalecem: os imigrantes vêm tirar trabalho dos europeus, trazem crimes e violências múltiplas, sobretudo contra as mulheres, suas religiões fanáticas os impedem de se integrar, com eles cresce o terrorismo, etcétera. Nada disso é verdade, ou, se for, está exagerado e adulterado a um extremo irreal.
Não serei o único a pedir que seja dado a esta jovem capitã o Prêmio Nobel da Paz quando chegar a hora
A verdade é que a Europa necessita de imigrantes para poder manter seu alto nível de vida, pois é um continente em que, graças à modernização e ao desenvolvimento, um número cada vez menor de pessoas precisa manter uma população aposentada mais numerosa e que continua crescendo sem trégua. Não só a Espanha tem as mais baixas taxas de nascimento no ano. Muitos outros países europeus seguem seus passos de perto. Os imigrantes, queiramos ou não, terminarão preenchendo esse vazio. E, para isso, em vez de mantê-los à margem e persegui-los, é preciso integrá-los, removendo os obstáculos. Isso é possível com a condição de erradicar os preconceitos e medos que, explorados sem descanso pela demagogia populista, criam os Matteo Salvini e seus seguidores.
Sem dúvida, a imigração tem de ser orientada para que beneficie os países que os recebem. Convém recordar que ela é uma grande homenagem que prestam à Europa esses milhares e milhares de miseráveis que fogem dos países subsaarianos governados por gangues de ladrões e, ainda por cima, às vezes, fanáticos que transformaram o patrimônio nacional na caverna de Ali Babá. Além de estabelecer regimes autoritários e eternos, saqueiam os recursos públicos e mantêm suas populações na miséria e no medo. Os imigrantes fogem da fome, da falta de emprego, da morte lenta que é a existência para a grande maioria deles.
Não é um problema da Europa? A verdade é que é, sim, pelo menos parcialmente. O neocolonialismo fez estragos no Terceiro Mundo e contribuiu em boa parte para mantê-lo subdesenvolvido. Claro que o erro é compartilhado com os que adquiriram os maus costumes e foram cúmplices dos que os exploravam. Não há dúvida de que, em última instância, só o desenvolvimento do Terceiro Mundo manterá em suas terras essas massas que agora preferem se afogar no Mediterrâneo a serem exploradas pelas máfias, a continuar em seus países de origem, onde sentem que não há mais a esperança de mudança.
Europa necessita imigrantes para poder manter seu alto nível de vida e uma numerosa população aposentada
O fundamental na Europa é a transformação da mentalidade. Abrir as fronteiras a uma imigração que é necessária e regulá-la de modo que seja propícia, e não fonte de divisão e de racismo, nem sirva para incrementar um populismo que no passado provocou consequências tão horrendas. É preciso recordar sempre que os milhões de mortos das duas últimas guerras mundiais foram obra do nacionalismo, e que este, inseparável dos preconceitos raciais e fonte irremediável das piores violências, deixou em todas as partes rastros das atrocidades que causou e que poderá voltar a causar se não o contivermos a tempo. É preciso enfrentar os Matteo Salvini de nossos dias com o convencimento de que eles não são mais do que o prolongamento de uma tradição obscurantista que encheu de sangue e de cadáveres a história do Ocidente, e foram o inimigo mais encarniçado da cultura da liberdade, dos direitos humanos, da democracia, nenhum dos quais teria prosperado e se espalhado pelo mundo se os Torquemada, os Hitler e os Mussolini tivessem vencido os Aliados na guerra.
Escrevo este artigo em Vancouver, uma bela cidade aonde cheguei ontem. Esta manhã tomei o desjejum em um restaurante do centro da cidade no qual travei conversa com quatro “nativos” de origem japonesa, mexicana, romena e, só o último deles, gringo. Os quatro tinham passaporte canadense e pareciam estar contentes com sua sorte e se entenderem muito bem. Esse é o exemplo a seguir na Europa, o do Canadá.
Temos de estar atentos ao julgamento de Carola Rackete e exigir que os juízes salvem a honra e as boas tradições da Itália, hoje pisoteadas por Salvini e a Liga. Estou certo de que não serei o único a pedir que seja dado a esta jovem capitã o Prêmio Nobel da Paz quando chegar a hora.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Vargas Llosa / Um sátrapa

Robert Mugabe
Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

Um sátrapa

Robert Mugabe dominou o Zimbábue durante 37 anos. Submeteu seu povo a matanças e fomes, embora tenha sido declarado “herói nacional” pelo mesmo Governo que o expulsou do poder


17 SEP 2019

Você sabe por que milhões de africanos querem entrar na Europa como for, arriscando-se a morrerem afogados no Mediterrâneo? Porque, para sua infelicidade, ainda há na África um bom número de tiranetes como Robert Mugabe, o sátrapa que durante 37 anos foi amo e senhor do Zimbábue e que acaba de morrer no Hospital Gleneagles, em Singapura. Tinha 95 anos de idade, era muito aficionado do críquete, das lagostas e do champanhe francês, costumava gastar 250.000 dólares em cada uma de suas festas de aniversário, e calcula-se que deixa à sua viúva, Grace – apelidada Gucci por sua afeição pelas roupas e bolsas dessa célebre grife, e várias décadas mais jovem que seu marido –, uma herança de nada menos que aproximadamente um bilhão de dólares.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

As chaves do sucesso esmagador de ‘La La Land’

Ryan Gosling e Emma Stone, em 'La La Land'


As chaves do sucesso esmagador de ‘La La Land’

Musical de Damien Chazelle, recordista no Globo de Ouro, tem pré-estreia nesta quinta no Brasil


GREGORIO BELINCHÓN
Madri, 9 janeiro 2017

Damien Chazelle talvez não tenha descoberto a pólvora, mas conseguiu fogos de artifício espetaculares. A pouco mais de uma semana de completar 32 anos, esse cineasta, filho de um professor francês de teoria e engenharia informática em Princeton e de uma professora de história no The College de Nova Jersey, que quando criança queria ser músico de jazz – especificamente baterista, até descobrir que seu talento não dava para tanto –, dificilmente será contrariado por algum executivo de Hollywood... como aconteceu nos últimos cinco anos. Se para algo serviu a cerimônia de premiação do Globo de Ouro (além de permitir que La La Land – Cantando Estações superasse com seus sete prêmios o recorde de troféus que pertencia a Um Estranho no Ninho, com seis) foi para transformar Chazelle em um cineasta popular, cujo rosto começa a ser identificado pelos espectadores, e para reconhecer sua persistência, forjada nas portas (fechadas) dos estúdios. Entenda algumas das chaves que justificam o sucesso esmagador do musical, que tem pré-estreia nesta quinta-feira nos cinemas do Brasil. O filme estreia oficialmente nas salas brasileiras em 19 de janeiro.