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sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Edival Lourenço / Seríamos leões para os safáris de Deus?






Seríamos leões para os safáris de Deus?

POR Edival Louren
ço
EM 21/01/2013 ÀS 11:42 AM


Há pessoas que têm a comodidade de tomar pé de fatos relevantes, de adquirir certas sabedorias, por meio de revelações. Há revelações para todos os tipos e gostos. Há revelações suaves e melífluas e revelações toscas e rudes. Eu inclusive sou daqueles acometidos por revelações eventuais. Penso que as minhas são do gênero rude pós-apocalíptico. Em estado de sonolência tumultuada foi-me dado conhecer, por exemplo, o lado mais sombrio e desamoroso de Deus em relação às pobres almas, quando desprovidas de seus corpos e saem por aí em busca do amparo divino.
Nas revelações que tive, me foi dado saber que o passatempo preferencial de Deus é o videogame. Seu joguinho predileto é sinistro, e real do ponto de vista celeste, afetando diretamente o destino das almas. É verdade que em minhas revelações não tive o privilégio de ver a face de Deus. Vi apenas a sua nuca, porque ele estava de costas, em seu console, operando o joystick freneticamente, de olho fixo na tela. Mas sei que era Deus. Nas revelações não é necessário reunir provas para se ter certeza. Se tiver provas já não é revelação, mas descobrimento.
Eu soube que quando morremos e nossas almas chegam ao céu, demandando por salvação e sossego eterno, elas são abrigadas em baias flutuantes, com cercas e coberturas de metal gasoso, da mesma substância de que são feitos os pudins das auras dos santos. De vez em quando elas são obrigadas a se moverem das acomodações para o pátio e do pátio para larguezas celestiais, para se livrarem da leseira e do entorpecimento dos músculos etéreos. De vez em quando elas tomam banho de luz sagrada para se livrarem dos fungos, dos piolhos, das pulgas, dos percevejos e dos carrapatos transcendentes.
Ali as almas ouvem música de harpas, sanfonas, reco-recos e cuícas angelicais. Fazem cantorias, puxam ladainhas de louvação a Deus e são preservadas enquanto elas forem lembradas por alguém na terra. A memória no mundo é o que mantém uma alma viva. Uma missa, um terço em seu louvor, por exemplo, rendem tantos pontos-eternidade. Uma placa, um busto, uma estátua equestre, um nome de rua, de ponte, de viaduto, um apelido de cidade, uma citação em livro, cada lembrança tem seu peso em bônus em favor da longevidade das almas.
No entanto, quando cumprem um período mais longo do calendário divino, completamente relegadas ao esquecimento, as almas são por fim escaladas para o jogo. Deus manda apartá-las das demais e formar uma fila indiana para supostamente se alojarem em novas acomodações, de categoria mais elevada. É que as almas pensam que ainda estão no purgatório, passando pelas assepsias e depurações burocráticas e que finalmente chegarão ao paraíso para o gozo eterno.
As almas ainda não chamadas até curtem uma ponta de inveja, por verem as colegas na fila, mas se aliviam pela esperança de que seu dia há de chegar. Na verdade, quando as escaladas chegam à alça de mira, Deus puxa o gatilho da bazuca de seu joguinho e as detona para todo o sempre, fazendo pipocar enormes clarões. Deus vibra divinamente, com sua pontaria infalível. As outras pensam que se trata do arrebatamento final.
Quando não dispõe de almas vencidas para alimentar seu vício de videogame, Deus se compraz com uma reles espingarda de chumbinho a pressão. Ele não erra um tiro, abatendo dúzias e dúzias de pombos, que infestam as dependências do céu, com pinta de divino espírito santo.


sábado, 5 de agosto de 2017

Menalton Braff / Caçadores noturnos


Caçadores noturnos


Por Menalton Braff 
Em 13/04/2009 ÀS 02:17 PM


Não sou especialista em sociologia ou psicologia, tampouco em antropologia, mesmo assim ouso afirmar que o prazer que sentimos na captura de um peixe é um prazer atávico. Provavelmente tenhamos herdado tal prazer de nossos ancestrais, que, ao capturarem um peixe, garantiam a subsistência por mais um dia. Quanto prazer! Arrisco mesmo supor que grande parte de nossos prazeres, talvez todos, esteja ligada à sobrevivência. O prazer da reprodução humana, por exemplo, não tem nenhum que o supere.
Tenho muitos amigos pescadores e algumas vezes já fui pescar com eles. Quinze minutos do centro, em pesque-pague com todo conforto: cadeiras de plástico, quiosques de bebidas e guarda-sóis. Chega-se à beira d’água, joga-se o anzol com isca na lagoa e espera-se. Um peixe vai passar pelo anzol, vai pensar que encontrou comida e comido acaba sendo ele. Tudo muito limpo, tudo muito certo. Alguns escolhem o tanque da tilápia, outros preferem o pacu, talvez o piau. Eis a que foram reduzidas as aventuras de nossos avós.
Onde o prazer de romper o mato à beira do rio, observar o movimento da água, sua cor, descobrir o lugar em que se abrigam os capturandos, imaginar o que vai acontecer? Onde a sensação de vitória ao fisgar alguma coisa que não se sabe o que seja, impor-lhe nossas habilidades correndo todos os riscos, mesmo o de cair na água? Não existe mais o prazer da aventura, o gosto de encontrar o inusitado para comprovar nossa rapidez de raciocínio, o acerto de nossas decisões.
Tenho um primo que, quando criança, via-nos sair para a caça. Era um tempo em que caçar passarinhos não causava remorso, um tempo em que ninguém falava em politicamente correto ou incorreto. Isso ainda não fora inventado. Menino de calça curta, a gente não costumava levar por causa dos perigos. Como esse meu primo não era levado junto, mas já se manifestava nele a vocação de caçador, exercitava sua pontaria dentro do viveiro de seu pai.
Conheço pencas de caçadores de viveiro por aí, que tiram a noite para sonhar suas aventuras. Um deles me contou que, em viagem pela Europa, jantou com a Sofia Loren e depois... bem, não sejamos indiscretos.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Menalton Braff / Agora Inês é morta

Inês de Castro


Agora Inês é morta



POR MENALTON BRAFF 
EM 03/07/2010 ÀS 02:49 PM
Que a expressão significa alguma coisa como tarde demais ou algo parecido, isso toda gente sabe. Um prazo vencido, uma oportunidade perdida, algum acontecimento irreversível, e lá vem alguém e diz: Agora Inês é morta.
O que nem todos sabem é a origem da expressão. Até outro dia este cronista também não sabia.
Em várias obras literárias, desde Fernão Lopes (pai de todos nós, os que escrevemos crônicas, cronista-mor que ele foi del Rei D. Duarte, no século XV), passando por Sá de Miranda e chegando a Camões, encontra-se a história da infeliz Inês de Castro. Esta, uma nobre galega, veio para Portugal como aia de Dona Constança, futura esposa de Dom Pedro I, de Portugal. O príncipe, cujo casamento fora arranjo da corte, apaixonou-se pela dama de companhia de sua mulher. Até aí, nada de extraordinário, situação bastante comum naquelas épocas em que o sangue bom, mas bom mesmo, ainda era o sangue azul. E olha que logo depois Camões diria que o amor é fogo que arde sem se ver.
Morta Dona Constança, os conselheiros de Afonso IV exigiram que o príncipe Dom Pedro tomasse esposa indicada por eles e rompesse as relações com sua amada. Temiam que, por sua influência, Portugal perdesse a independência. Não houve jeito de convencer o príncipe, por isso, e por conspiração dos conselheiros, ele foi mandado para a guerra. Enquanto fora o príncipe, reunida a corte, Inês de Castro foi trazida do interior, onde se encontrava, e num julgamento sumário foi condenada à morte e ali mesmo, no palácio, foi degolada.
Tudo isso por amar o príncipe e ser doidamente amada por ele.
Dois anos depois, morreu D. Afonso e Dom Pedro, seu filho e príncipe herdeiro, foi coroado, iniciando sua vingança. Mandou executar todos os participantes do cruel julgamento. Dois deles tiveram os corações extraídos do peito — um pela frente e o outro pelas costas. Em seguida, ordenou que fossem trazidos os restos mortais de Inês de Castro para o palácio. Assentada no trono, todos os cortesãos foram obrigados a desfilar perante ela para o beija-mão. E isso, depois de Inês de Castro ter sido coroada rainha.
Mas a coroação já não fazia mais sentido, pois agora Inês já estava morta. A coroa chegou atrasada. 


terça-feira, 1 de agosto de 2017

Menalton Braff / Tudo outra vez


Tudo outra vez


Por Menalton Braff 
Em 30/07/2012 ÀS 10:43 PM

E não me venham dizer que sou antidemocrático ou alienado, pois não é nada disso. Pelo menos numa opinião de que às vezes desconfio, mas mesmo assim respeito: a minha. Que a nossa democracia está muito longe da perfeição, me parece que não há necessidade de provar: isso é consensual. Ou deveria ser. Mas o que me caceteia, e muito, é a eleição, e eleição não é democracia. Pode ser um de seus instrumentos, mas não é o único. E o problema, em verdade, não é exatamente com a eleição, senão com sua propaganda — a forma como é feita. 
Sofro muito quando começam a passar aqueles caminhõezinhos com alto-falantes. Já não falo daqueles monstros que bombardeiam para todos os lados, atingindo céus e terra, e estremecendo  tanto a litosfera quanto nosso débil esqueleto. Não tenho notícia confiável de sua origem, mas é um negócio que vi pela primeira vez em noticiário sobre o carnaval da Bahia; uma invenção, enfim, para que em lugar nenhum do Brasil se tivesse sossego. Para mim basta o caminhãozinho. Não consigo pensar em mais nada com aquele negócio trovejando em meus ouvidos. Fecho portas e janelas, fecho a casa toda, e não consigo me ver livre do barulho. Então, eu, que amo o silêncio, a música suave, a voz ciciada, ligo a televisão ou o aparelho de som no máximo volume, apenas para selecionar o barulho. Continuo preferindo alguns em detrimento de outros.
Mas não é só isso. Os caminhõezinhos passam dizendo que o fulano de tal é o melhor candidato, por isso você tem de votar nele. Caramba! O melhor candidato! Então me lembro de minha juventude, quando li o "Elogio à Loucura", de Erasmo de Roterdam. Em certa passagem, o autor diz que se ninguém te elogia, elogia-te a ti mesmo.
E fico pensando: se ele se elogia, é provavelmente porque mais ninguém o fará. E se ninguém mais o elogia, e ele mesmo tem de dizer que é o melhor, então não sei, não, mas acho que além da mãe e da esposa, além das duas mulheres mais importantes de sua vida, eu acho que ninguém mais vai votar nele. Eu confesso que não vou. Jamais votaria numa pessoa que me perturbou em minhas horas de trabalho, que invadiu minha casa com afirmações de que suspeito.   
O que pode levar um ser humano tão parecido com todo mundo a perturbar o sossego dos outros com seu nome berrado pelas ruas?   


segunda-feira, 31 de julho de 2017

Menalton Braff / Falando de amor




Falando de amor
Menalton Braff
09/09/2011 ÀS 11:38 AM
Isso não é privilégio de nossa cidade. Cenas idênticas tenho visto em toda parte. Mais fácil acreditar que seja característica de nosso tempo. O beijo de bico de minha época, que os jovens de hoje apelidaram de “selinho”, o beijo de boca, discreto ou cinematográfico, isto é, de perder o fôlego, de todos conheço como de todos experimentei. Sem esquecer o beijo de língua, o mais sensual de todos. Poderia ser chamado de beijo-véspera com muita propriedade. Pois outro dia fiquei assombrado ao presenciar um beijo de língua. Não por ser muito moralista, é que o beijo se deu entre uma garota e um cachorro. Meu liberalismo tem limites e meu estômago é fraco.
O que a língua andou limpando momentos antes  ou se a proprietária contraiu cinomose, nada disso importa na hora do beijo, que é a demonstração maior de carinho. Aliás, me cochichou agora meu anjo da guarda, dizendo que cinomose é doença de cachorros e não costuma acometer mocinhas que os beijem. Na boca e com algum requinte cuja razão desisti de entender. Mas antes que me acusem de anticanino, devo declarar que sempre amei os cães e foram muitos os que tive. E juro que nunca usei de crueldade com eles. Se não foram inteiramente felizes em minha companhia, é porque não entenderam que em nossas relações jamais abdiquei de meus direitos. Mesmo quando os afagava, e o fazia com frequência, mantinha alguns princípios, como o da hierarquia, em vigor.
Comecei a observar melhor as relações entre os seres humanos e os caninos e descobri que os antigos guardas, em alguns casos, ou agregados, em outros, vão-se tornando aos poucos os verdadeiros titulares das residências, com todos os privilégios que a titularidade impõe. Aos humanos, seus servidores, resta cada vez menos espaço, como convém aos súditos, mesmo quando humanos.
Outro dia uma sobrinha, na defesa de seu cão, disse que a humanidade que se frega. Bem assim: que se frega. Porque o homem e sua maldade.
Nada contra o amor pelos animais, mas para isso é necessário odiar o ser humano? Mas ela ainda não anda de quatro, como seria justo supor. Apesar de que, ultimamente, ela vem treinando um som gutural muito estranho. Acho que em breve ela estará rosnando.



domingo, 30 de julho de 2017

Jorge Amado / Um dia, um autógrafo



Jorge Amado

Um dia, um autógrafo

Por Menalton Braff
Em 18/04/2012 ÀS 10:36 PM


Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo gentílico — soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me tornei frequentador renitente da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia uma daquelas estantes me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco, naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo “O País do Carnaval”, da Editora Martins. 


Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso, assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão, que por fim explodiram numa certeza: —  Eu vou ser escritor, foi o que disse quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem ser levados muito a sério. 
Velho conhecido de Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de minha existência. 


Jamais talvez seja exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no salão da Rádio Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória. 
Foi uma das grandes emoções de minha vida. Eu estava ali sentado (e me beliscava para ter certeza de que não era sonho) e lá, sobre o palco, um escritor de verdade, vivinho da silva como um ser humano. Enquanto ele dizia “nóish”, sotaque inteiramente desconhecido para um porto-alegrense, enquanto ele falava manso e mole, como ele falava, eu não conseguia conter a baba, que escorria dos dois lados. 


No fim da palestra/entrevista, ele desceu do palco e veio pelo corredor, na direção em que eu estava, que era a direção da saída. Quando se aproximou, não tive dúvida, saltei em sua frente com o livro de latim aberto (o único que trouxera) e pedi um autógrafo. Foi a única vez em que tietei dessa maneira desavergonhada na vida. Foi o único autógrafo que o adolescente guardou por muitos anos. A vida me roubou o livro de latim, mas não me roubou o prazer de ter apertado  a mão de meu ídolo. Nunca mais nos cruzamos. 
Hoje, mais uma vez, esta sensação dolorida da orfandade.   




quinta-feira, 27 de julho de 2017

Internet / Aproximando quem está longe, distanciando quem está perto



Internet: aproximando quem está longe, distanciando quem está perto

Eberth Vêncio

18/01/2013 ÀS 08:03 PM
Antes que alguém me incomode com as suas críticas comezinhas, adianto que a pérola que dá título a esta crônica não é da minha autoria (os fominhas da internet já a conhecem muito bem). Por sinal, eu a li num e-mail enviado por um amigo próximo que, ironicamente, se encontra deveras longe: o sujeito é pesquisador e caminha pelo trajeto de Santiago de Compostela, municiado com o peculiar espírito da pesquisa e da descrença na raça humana, imbuído em descobrir um ou mais sentidos que tornem o viver mais palatável. Ele já teve muito dinheiro, muita solidão, muito desamor e um câncer de sinuca de bico (aparentemente, sem saída). Que eu saiba, até o momento, moeu dois pares de tênis pelos caminhos tortuosos e pedregosos das suas dúvidas existenciais.
Em termos de convivência social, talvez estejamos capengando pelo período mais chato da História da Humanidade. Um ermitão do século 18 conversando com um alce velho numa montanha gelada talvez fosse um exemplo de comunicação mais promissor entre dois seres vivos, do que o que temos hoje. O monturo de informações e desinformações a invadir as telas dos computadores e dos smartphones é tão avassalador quanto frívolo. Mais espertos que os telefones são os índios comancheiros que abandonaram os sinais de fumaça e hoje se comunicam com a utilização apenas das bocas e das gotículas de cuspe.
Em tempos de tempestades de blogs, em que cada um se julga a cereja do bolo da internet, no que tange à notoriedade sobra irrelevância. Em matéria de engajamento neste efeito manada digital, sinto-me meio leproso, embora dê as minhas cutucadas no teclado. Os meus pares simplesmente não concebem como é que até hoje eu não tenha aderido ao feice ou a outra pujante rede social da internet.
Companheiros desta ignóbil caminhada terrena: mal tenho tempo de ler as duplicatas e multas de trânsito que chegam aos borbotões pelos correios, quem dirá, saber das iniciativas auto-promocionais de sujeitos que alardeiam suas filantropias pilantras. Também não me interessa saber que o perfil de fulana mudou porque está de namorado novo (certamente contrairá também um novo tipo de herpes vírus); ou se cicrano perdeu mais cinco quilos desde que foi submetido a uma cirurgia bariátrica. Podem procurar: há tanta gordura entremeada no cérebro dessa gente que haja lipoaspiração para se dar um jeito.
Outro dia fui jantar na praça de alimentação de um shopping (confesso que, depois de devorar pratadas de doce de leite com figo, este é um dos meus piores defeitos) e, enquanto aguardava que uma corneta e um display luminoso anunciassem que o meu pedido já se encontrava à disposição no balcão, eu percorri com os olhos o salão para verificar em quantas mesas havia pessoas acessando a internet pelo telefone celular. Pasmem, queridos dementes associados: em todas as mesas havia ao menos uma pessoa se entretendo com o vício do diálogo quilométrico silencioso. Em várias delas, todos os ocupantes se ocupavam em ocupar as redes sociais com aquele comportamento, a meu ver, extremamente ocioso e anti-social.
“O anti-social aqui é você”, reclamam amigos e familiares. Aliás, tenho perdido coquetéis, festas, gratificações e velórios pela falta de engajamento às tribos virtuais. Ao que parece, poucos se dispõem a gastar papel e saliva para formalizar convites. Um simples telefonema já bastava para anunciar um batizado, uma morte. Aliás, faço aqui um adendo dos mais irrelevantes e fora do contexto: às vezes, se diverte mais num cemitério do que num salão do country clube. Não riam. Eu falo sério.
Certa vez compareci a um funeral tão animado que quase se esqueceram de enterrar o velho comendador. Vocês sabem, às vezes, a morte conserta muita coisa: livra o próprio falecido das obsoletas e decrépitas relações com a parentalha, paga as dívidas dos herdeiros, resgata orgasmos aos casais à beira do divórcio. Mais do que crer no Altíssimo, é fundamental acreditar que o dinheiro não somente traz felicidade, como une as pessoas. Já perceberam o quanto os ricos estão sempre risonhos e bem entrosados nos seus banquetes regados a uísques 12 anos e adultérios de todas as idades?
Outro exemplo de exagero digital, da matança desenfreada do tempo: enquanto não atingia o orgasmo, a frígida decana postava às amigas fotos inéditas da última cirurgia plástica que fizera com o doutor maníaco da moto-serra. Neste ínterim, o esposo ejaculava treponemas na sua vagina semi-nova, recauchutada, ao passo que o pessoal curtia as fotos, escrevia mimos, tornando o teto daquela suíte menos branco que o habitual, e a sua teta operada mais empinada que a original. Estou sendo ácido demais? Vai ser cruel e amargo assim lá no Haiti? É por aí, caras pálidas. Reajam! Larguem os seus ai-fones e caiam dentro!
Tem gente que perdeu, não só a virgindade, mas a compostura e alguns gramas de massa cinzenta, por conta dos excessos e desmandos da comunicação virtual. Nunca antes na história das cadeirinhas colocadas sobre as calçadas defronte aos portões das cidadezinhas interioranas, fez-se tanta fofoca. Mais que uma esposa infiel, a difamação come solta na internet. Efeito privada de rodoviária: fala-se muita titica. Especula-se à vontade. Mente-se à beça. Caiu na rede, deve ser verdade. Aos olhos dos incautos, dos imbecis e dos profanos, a internet praticamente tornou-se, se não uma Penthouse ou uma Hustler, uma verdadeira bíblia.
Ajoelhou, tem que rezar? Não. Aqui não, cabritinhos. Aqui vocês berram. Não vou me adaptar. Falo com a autoridade de quem demorou 12 anos para fumar um cigarro, 16 para ficar bêbado, 18 para perder a virgindade, e 05 para trocar uma televisão de tubo de 29 polegadas por uma de tela plana modelo LED. Já traçaram o meu perfil? Então ponham aí no feice de vocês, já que eu não possuo nenhum.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Eberth Vêncio / Guia rápido pra se fugir do carnaval




Guia rápido pra se fugir do carnaval

Eberth Vêncio
08/02/2013 ÀS 11:54 AM


Note que o trânsito na cidade já melhorou sobremaneira. O povo arrumou as malas, pegou a estrada, vai cair na folia. Prepare-se para desaproveitar o carnaval sem sentir culpa: sacie-se com as migalhas; anote no verso da duplicata bancária que vence em março o que não fazer (e desfazer) no feriadão que se avizinha.
Ponha tento: admire o corpo da vizinha. Deixe o carro na garagem. Ande de ônibus e pague os pecados. Experimente ler uns versos enquanto chacoalha. Se sentir enjoos, vomite a coalhada matinal com rimas ricas sobre os romances comerciais de conteúdo pobre. Visite um sebo, adote um livro. Visite um asilo, leia um velho nas entrelinhas. Aprenda com os mais novos o que não se deve fazer jamais.
Plante uma muda de árvore na rua da sua casa. Case, mude de endereço ou compre uma bicicleta. Não dispense a feia Anacleta: em feriados prolongados fica difícil arrumar um par.
O por do sol entre as torres da cidade é ímpar: aproveite sem moderação mas, cuidado com as balas perdidas e com o excesso de monóxido de carbono na atmosfera. Nota do editor: há tanto cianeto nas ruas quanto nas boates em chamas. Vá ao cinema, beije de língua. Permita que as decepções amorosas morram à míngua.
Lustre a mobília. Limpe as coronárias. Cuide do seu coração. Evite frituras. Derreta as gorduras. Coma quem você quiser. Se você não gosta nem de homem, nem de mulher, não há mais por que chicotear o próprio lombo. Arquive os seus recalques em local apropriado: no limbo de todo esquecimento.
Lembre-se que, em condições normais de alienação e loucura, o carnaval dura só quatro dias (a minha chatice, no entanto, dura um pouco mais do que isso) e, em breve, os foliões estarão de volta à rotina, buzinando os seus carros, escarrando intolerância em via pública, lamentando o dinheiro curto, rolando dívidas, sofrendo como porcos nas filas do SUS, reclamando do governo, contribuindo para o caos urbano, aumentando o passivo de Deus com seus incessantes pedidos. Faça como o Pai: não lhes dê ouvidos. Assuma a cidade e curta momentos incríveis de solidão a dois.
Vá pentear macaco. Plantar bananeira. Ver se eu tô na esquina. Tomar banho na soda. Matar cachorro a grito. Vá se lascar. Lamber sabão. Catar coquinhos. Secar gelo. Chover no molhado. Enfim, no anti-carnaval deste ano, faça qualquer coisa, exceto aquilo que você não gosta, como dançar frevo, rebolar o poposão até o chão, cheirar lança-perfume, urinar uns nos outros pelas ruas de Olinda, vomitar atrás de um trio elétrico, tomar pílulas-do-dia-seguinte antes do desjejum.
Se, com tamanha pasmaceira na cidade, pintar uma melancolia e você sentir vontade de entrar numa igreja, não há mal nenhum (a porta estará sempre aberta aos cães, sejam eles bípedes ou quadrúpedes). Massageie os bíceps, o ego. Arranque um prego da cruz. Enlouqueça. Todos têm os seus momentos de fraqueza. Portanto, malhe a musculatura, mas deixe Judas em paz. Peque, peque só um pouquinho, nada que faça o consumo de carne de porco cair ainda mais durante a quaresma. Ajoelha e não reza (nada tema: tudo o que estiver na alçada dos arcanjos será resolvido na Semana Santa).
Se encontrar alguma das criaturas a seguir durante este feriado, aproveite e faça caridade: compre o CD de uma nova dupla sertaneja; doe a Sua Santidade dez sacos de cimento para as obras de ampliação da igreja; mande uma cartinha elogiando as propagandas da Revista Veja; resista à tentação de pagar um cafezinho ao guarda de trânsito que o flagrou no bafômetro por conta daquela caneca de cerveja.
Colabore com a prefeitura local no combate à dengue, afinal, os mosquitos continuam se reproduzindo à despeito dos pontos facultativos do Governo. Aproveite a calmaria do anti-carnaval, imite um aedes, chupe um pescoço. Mas, cuidado: gaste os seus gametas com moderação. Use a camisinha, o quadril e o bom senso. O coração não. O coração só atrapalha.
Entre num cortejo, siga um féretro qualquer e confira onde é que vai dar. Participe do funeral de um estranho e preste bastante atenção no semblante dos vivos e do morto. Já que está num cemitério mesmo, enterre o rancor, telefona pro seu pai, faça as pazes com o velho. Confira a lista de medicamentos da sua mãe (faça um check-list das doenças por ordem alfabética, assim fica muito mais fácil). Difícil mesmo é enterrar gente no Natal: esta, sim, uma data inconveniente e das mais tristes.
Compre alpiste pro seu passarinho, abra a gaiola e deixe bem claro àquela ave que será a última vez que lhe oferece comida. Retribua o amor de um cão. Se tiver tempo, abane o rabo pros seus filhos, afinal, a babá viajou com o namorado pra Salvador e só voltará (Deus é Pai!) na quarta-feira de cinzas. Bem vindo ao caos doméstico.
Pare de fumar. Pare de beber. Pare de se drogar. Pare de ler tantos best-sellers ruins. Pare de tomar a pílula, senão ela não deixa o nosso filho nascer. Pare de desmerecer a obra do Odair José. Pare de dizer que o Padre Zezinho desafina pracaralho. Não diga um palavrão dentro de um templo religioso. Não declame a tábua dos Dez Mandamentos para a corja de um covil. Pare de valorizar tantos os meus trocadilhos enquanto escrevo. Pare de acreditar em tudo que eu digo.
Se tiver coragem, coloque um peercing no umbigo. Se tiver peito, coloque outro no mamilo. Agora, se pra você a dor for apenas um detalhe, grampeie o próprio clitóris com uma argola. Tatue o Submarino Amarelo no dorso do pênis. Vá jogar tênis com um joãozinho-sem-braço. Vem cá e me dá um abraço: estou me sentindo tão soul.
Ouça um disco de blues, tome meia garrafa de vodca (eu bem que avisei pra você parar de beber, de fumar, de rezar, de trepar, de ler tantos tons de cinza, etc etc...), mas não se abra com alguém: toda a verdade poderá ser usada contra você no futuro. Não se preocupe com o amanhã: nada vai dar certo mesmo.
Não se declare indignado (você é o tal louco bradando no deserto). Não se sinta diminuído porque o país praticamente parou durante a folia, a inflação devora-nos pelos calcanhares, o PIB do vovô já não sobe mais, e muitos compatriotas continuam chapando o melão neste carnaval. Não se sinta o bicho da goiaba. O manifesto dos excluídos e o guia anti-carnaval estão aí inteiros a seu dispor.
Mas, atenção, faça tudo sozinho. Nem pense em montar o seu próprio bloco, um clube, um blog, uma liga, um sindicato, uma banda, uma quadrilha organizada, uma academia de imortais, uma seita psicodélica, uma ONG, um grupo de estudo, um partido político, uma confraria de antissociais, um clube da luta, um grupo terrorista ortodoxo. Faça qualquer coisa que tiver vontade, mesmo que, no calor da folia, alguém o acuse de estranho, antissocial, triste, chato, neurastênico, mal humorado, lazarento, problemático, sorumbático, lunático, apocalíptico, bipolar, má companhia, enfim, só por não gostar do carnaval. É para pessoas como você que este texto foi escrito.





terça-feira, 25 de julho de 2017

Eberth Vêncio / Como saltar de um prédio sem ferir a multidão lá embaixo



Como saltar de um prédio sem ferir a multidão lá embaixo

Eberth Vêncio 

26/01/2013 ÀS 12:52 PM


O pobre Coitado (Sim. Isso mesmo. Seu nome era Coitado.) tomara a decisão mais radical da sua vida: suicídio. Lá estava ele (eu me lembro como se fosse hoje) com aquela cara aparlemada, sentado no beiral do terraço do Edifício Fácil. Vestido sempre com as mesmas roupas desbotadas, parecia uma personagem de desenho animado. Não somente o pano velho do vestuário, mas, a vida, para ele, já tinha perdido todas as matizes.
A gota d’água: flagrou a esposa ouvindo sinos com um terceiro dentro do ofurô do barracão (por “ofurô” leia-se “tanque de alvenaria com três metros cúbicos de água fria”). O pegador não era outro senão um seu primo-compadre, o feirante Nabucodonosor, mais conhecido no bairro como o Rei Nabo, por ser muito bem dotado em matéria de hortifrutigranjeiros.
Com tantos adultérios proliferando por aí a todo instante, o episódio do affair dentro do tanque poderia parecer banal e démodé à maioria dos seres humanos sexuados, ao ponto de conduzir um sujeito à melindrosa decisão de se autodestruir. Acontece que a decepção com a companheira foi apenas mais um grão de areia na gigantesca duna de justos motivos que Coitado carregava sobre os ombros.
Analfabeto desde que nascera (ai!), Coitado morava mal à beça num casebre de invasão às margens do Córrego Caganeiras. Saía pela cidade puxando a carrocinha baú feito um cavalo, a catar papelão, plástico, latinhas de alumínio e toda espécie de lixo urbano que pudesse render alguns trocados na usina de reciclagem. Assim como se faz aos dejetos inorgânicos, ele tentou, sem sucesso, reciclar os pensamentos ruins: precisava largar aquele serviço, a mulher, os problemas, a vida enfim, que estava mesmo — tal e qual aquele ribeirãozinho fedorento — uma verdadeira merda.
Nos últimos meses enveredara na pinga e no álcool absoluto 92,8 graus. Certa feita, como estivesse sem moedas, cismou de degustar etanol furtado de um veículo e quase virou ao avesso de tanto vomitar. O casal tinha cinco filhos, sendo quatro meninas (todas já iniciadas — por puro desamparo e deseducação — na fornicação, na gravidez precoce, na parição desenfreada ou no aborto clandestino) e um rapagão que, para desgosto de Coitado, assumira recentemente, na efervescência testosterônica dos seus 17 anos, que gostava mesmo era de homem. Coitado só não expulsou o filho de casa porque ninguém lhe dava ouvidos: nem a mulher, nem a prole, nem os ratos.
Coitado era franzino e seu corpo tremia como sói ocorre àqueles à beira de qualquer morte, no alto do velho Edifício Fácil, tantas vezes utilizado para espetáculos bizarros daquele naipe. Uma atenta plateia formara-se lá embaixo, visto que Coitado escolhera a dedo o horário do rush, numa das ruas mais movimentadas daquela maldita cidade. A Imprensa, sempre disposta a flagrar incríveis acontecimentos vendáveis no caos urbano, já se encontrava com as lentes a postos para cobrir o show de suicídio.
Fazia meia hora que Coitado estava posicionado no terraço, tempo mais que suficiente para aparecer nos principais canais televisivos do país. Seu salto mortal seria transmitido, ao vivo (que piada!), em cadeia nacional de rádio e TV. Seria injusto supor que a demora em saltar fosse premeditada. Afinal, Coitado não possuía nem comida em casa, quem dirá televisão.
Aliás, além da água salobra misturada com o sêmen dos amantes, aquele muquifo tinha praticamente nada, senão um amontoado de estranhos convencionados “família”, um grupo maltrapilho à margem da sociedade, sem a mínima condição de sonhar, um biguebróder miserável e com audiência nenhuma, do qual todos desejavam um dia escapar, entorpecendo-se, prostituindo-se, ou morrendo. Aliás, a esperança de que todo o mal se extinga um dia é a última de morre.
Coitado gritou lá de cima que era pra alguém dizer à desgraçada da sua mulher (o adjetivo grotesco foi copiado, ipsis litteris, sem qualquer exagero, por este escriba que se encontrava no meio da multidão naquela tarde modorrenta e fedendo a enxofre) que ele a odiava mais que a própria vida. Uma vizinha do casal, igualmente imersa em miséria, correu e contou à mulher que Coitado estava na TV ameaçando pular do enorme Edifício Fácil. “Que pule, aquele corno...”, esbravejou sem nenhum remorso, sem vestígios de afeto.
Com a demora do bebum em saltar no vazio da tarde, o povão começou a vaiar. Vocês sabem, movido por um curioso sentimento interior, o Homem nunca está plenamente satisfeito com as coisas. Ora, a vida não é feita só de espetáculos. Todos ali precisavam retomar à rotina, tocar o barco, cuidar dos afazeres, cumprir os compromissos, atingir as metas, correr atrás de dinheiro, meter os pés pelas mãos. Não podiam permanecer a tarde inteira a aguardar que um derrotado pulasse do terraço e proporcionasse à massa alguns instantes de drama, emoção e pura adrenalina. Tanto assim que o coro “Pula! Pula! Pula!” não tardou a brotar. A galera insistiu. Uma cidade inteira não podia parar por conta das vacilações de um covarde. Era agora ou nunca.
Coitado ficou em pé na pontinha. A galera apupou. Os profissionais do resgate apressaram os passos para coibir o sujeito de consumar o ato. Mesmo à luz do dia, os flashes pipocaram. Evangélicos e outros crentes do rebanho balançaram as suas bíblias, rogaram com veemência, socaram o próprio peito a interceder junto ao Pai por mais aquele pecador. Lá de cima, Coitado enxergava um mar de bracinhos esticados segurando smart-fones. Ninguém — nem fodendo — deixaria de registrar aquela cena.
Ele balançou o corpo como se fora um centroavante na marca do pênalti, defronte a bola, a ludibriar o goleiro. Abriu os braços magricelos de veias salientes e gritou “ai, mamãe” (notem: na hora da morte, 100% dos Homens, mesmo os filhos-da-mãe, recordam-se das genitoras). Saltou no espaço. Bateu os braços como se fossem asas, imitando passarinho. Então, um esplêndido fenômeno fez com que ele levitasse, flutuasse sobre a multidão, misturando-se a um bando de urubus que desde cedo rodopiavam no céu, atraídos pela catinga diuturna de peixe podre do mercado.
O povo ficou insano, estupefato, decepcionado horrores com aquele viés kafkaniano de última hora. Foi quando um estranho (mais uma criatura invulgar dentre tantas) sacou uma pistola e disparou seis vezes. Abatido, Coitado perdeu a proa, abandonou seus penados colegas de revoada, e despencou no vazio, drasticamente, com o corpo desnutrido cravejado de projéteis que interferiram no seu projeto de voo panorâmico sobre a carniça. Como diria o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, “morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
Respingados de amargura e sangue anêmico, os transeuntes despertaram daquele transe vespertino e foram cuidar das suas vidas. Exceto os urubus e o pessoal do IML, indispensáveis criaturas especializadas em se ocupar com os mortos.





segunda-feira, 24 de julho de 2017

Eberth Vêncio / Eu quero ser o próximo Papa

Francis Bacon

Eu quero ser o próximo Papa

Por Eberth Vêncio
22/02/2013

O Papa é pop, e o pop não poupa ninguém
Engenheiros do Hawaii

Pasárgada, 22 de fevereiro de 2013.
Carta dirigida aos cardeais da junta médica.
Rogo as Vossas Eminências que coloquem especial tenência nesta mensagem em que manifesto o meu real e inarredável desejo de pleitear o trono de maior mandatário da igreja, a ser desocupado nos próximos dias conforme amplamente noticiado aos quatro cantos do mundo.
Não me cabe julgar, analisar, lucubrar, intuir, criticar, zombetear, comemorar ou desconfiar dos reais motivos que fizeram com que o Papa-Almas Joseph Blater Mengele jogasse a batina e renunciasse ao cargo — um dos mais cobiçados que se tem notícia desde o Reinado de Elvis “The Pelvis” — embora todo cardeal negue, peremptoriamente, que o deseje ocupar.
Eu não. Abdicações franciscanas não me atingem. Eu não posso negar. Não sei mentir sem levar alguma vantagem. De tal forma que, sem falsa modéstia, eu digo e repito que estou no páreo desta sacrossanta peleja para o que der e vier; e é dando que se recebe (parodiando os políticos e as prostitutas desta pátria). E quando a fumacinha da cuia de santo-daime vazar pela chaminé doidona dos subterrâneos do Pelicano, é o meu nome que espero ouvir alardeado pelas trombetas de mil decibéis.
Tomei o cuidado de enviar as Vossas Eminências o mesmo perfil que utilizo no facebook sagrado (quero crer que cardeais também se amarrem em redes sociais), a fim de analisarem com a máxima misericórdia, durante o vosso conclave-de-sol, os requisitos que fazem de mim um dos candidatos mais atrevidos e tarimbados para assumir um cargo tão relevante a este mundo cão no qual latimos.

Sou latino, 47 anos de idade, portanto tenho muito incenso pra queimar em prol do crescimento e domínio da igreja, após a minha eleição. Sexo: masculino (obviamente). Espero que o fato de eu não ser um afro-descendente facilite a vossa escolha. Essa estória de “europeização do Poder” já está me dando nos nervos.
Nasci ao vigésimo dia do mês de setembro, portanto, signo de virgem. Uma vez virgem, é natural que eu também condene o uso da camisinha de força Made in China, o DIU, o coito em pé atrás da capelinha, as pílulas de ontem e as do dia seguinte também, o sexo anual, o orgasmo feminino enquanto instrumento de transformação social, as poluções noturnas nos lençóis de cambraia do internato, a poluição industrial em São Paulo e o Aborto Elétrico, antiga banda do Renato Russo (que Deus o tenha). É claro que eu também abomino o aborto, principalmente dos outros.
Nunca fui santo. Nunca fui padre. Mas decorei a bíblia de cabo a rabo (perdoem-me pelo palavreado vulgar) e as paredes da cela com miçangas de Aparecida do Norte e pôsteres do Padre Marcelo, do Padre Fábio e do Padre Huguinho-Zezinho-e-Luizinho. Enfim, a patota inteira estava lá.
Sexo antes do casamento: sou contra. Sexo depois do casamento: sou a favor, desde que 100% tolerado até que a morte os separe. Sexo depois das refeições: o perigo é a congestão. Portanto, se comerdes muitas hóstias, não dirijais vós imediatamente aos aposentos. Aguardai a santa sesta.
Eu também sou contrário aos questionamentos basais acerca dos bastidores das igrejas, da origem da vida e das reais intenções divinas no tocante à Humanidade; ao avanço da ciência; às pesquisas com utilização das células-tronco; às cédulas de 100 patacas sem a inscrição “O jardineiro é fiel”; e a denominar o próprio pênis como “tronco” (é muita grosseria e mau gosto!). Enfim, se precisarem de mim para queimar um astronauta ou um ateu na fogueira, contem comigo. Fé e gasolina não me faltam.
Tenho uma quedinha por carne de porco durante a quaresma, além praticar a auto-imolação ao menos uma vez por semana: costumo esbofetear a parte interna das coxas com um livro de capa dura do bruxo Paul Rabbit. Mas são defeitos que ainda posso corrigir. Juro remeter os colegas pedófilos mais problemáticos para tratamento com matemáticos da Esbórnia. Aos nove anos sentaram-me no colo de um sacristão novato e eu sei o quanto esses operários da evangelização-a-qualquer-custo sofrem daquele misto de tesão e culpa na Hora do Ângelus.
Considerando que Deus seja mesmo brasileiro, o fato de eu ter nascido em Safira do Norte faz de mim, além de um pobre miserável, mais um conterrâneo do Pai. Nunca antes na história clínica dos surtos psicóticos, um cardeal brasileiro foi eleito o Papa-Almas de Pasárgada. Portanto, penso que a hora seja agora, nem que, para tal intento, sejam recolhidos e trancafiados todos os utensílios banhados em ouro, os castiçais de marfim e a prataria chique do Pelicano. Se eu fui capaz de domar a natureza dos meus testículos até aqui, poderei controlar também a velha cleptomania. Quanto ao Banco do Pelicano, prefiro não ficar com as chaves para não cair em tentação. Certa feita, perdi as chaves do portão do manicômio e fui castigado com eletrochoques e a audição diuturna da Ave Maria na voz da Fafá de Belém. Amém.


domingo, 23 de julho de 2017

Eberth Vêncio / Valle a pena ler



Valle a pena ler


POR EBERTH VÊNCIO
EM 11/07/2009 ÀS 09:04 AM

Eu gosto quase nada dos aforismos. Desgosto deles porque quase sempre expressam a verdade. E verdades incomodam como aquela que diz “santo de casa não faz milagre”. O escritor Fausto Valle enquadra-se neste seleto grupo de relegados.
Mineiro da sulfurosa Araxá, Fausto veio para Goiás ainda atado às fraldas. Percorreu o interior do Estado e há anos reside em Goiânia, capital bonita cada vez mais entupida de carros e motos (a idéia do Governo de baixar o IPI foi mesmo “ótima”...), e com um povo ruim de entender milagreiros. Fausto Valle criou a filharada zelando dos filhos dos outros. Foi médico pediatra renomado e professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, onde ajudou a formar mais doutores.
Hoje em dia, septuagenário, com a saúde física naturalmente rateando, mas o cérebro fumegando acima dos cem graus Celsius, o escritor gasta tempo com atividades na maçonaria e, especialmente, enfurnado em seu apartamento confortável onde faz literatura de alta qualidade. Tem oito livros publicados, a maioria deles pelas editoras Kelps e RF, ambas situadas em Goiânia. Não adianta procurar pelos títulos nas prateleiras das livrarias do eixo sul-suldeste do Brasil que vocês não vão encontrar de jeito nenhum. Entrem em contato com as editoras e providenciem os seus exemplares (usem a internet, companheiros!).
Escrever é um exercício de perseverança e gana, para não dizer o vício da tolice. Além de pouco valorizado pelos seus pares goianos, Fausto ainda não conseguiu distribuir a sua obra fora das fronteiras, senão através da remessa pessoal de exemplares aos críticos literários e amigos escritores Brasil afora.
É aquela velha estória: escrever, publicar um livro, até que é fácil. Basta ser alfabetizado, ter noções básicas do “word”, e possuir algum dinheiro sobrando no banco. Difícil mesmo é colocar o livro dentro de uma livraria e fazer com ele chegue às mãos do leitor. Se o gênero for poesia, então, esquece. Os infames livros de autoajuda (sim, eu os considero infames), desde que tenham um título didático, chamativo, e uma capa bem produzida, correm o risco de venderem um pouquinho. Afinal, o povo está a cada dia mais aturdido e necessitado de placas que sinalizem aonde ir. Estamos perdidos...
Ao contrário do Senado e do Congresso Nacional, nem tudo são horrores. Fausto Valle tem visibilidade e reconhecimento junto ao público interessado em literatura que vagueia pela internet, inclusive fora do Brasil, em países nos quais se fala e se fere a língua portuguesa. Feri-la por descuido, até que é perdoável. Cruel mesmo é maltratá-la por preguiça e desinteresse.
Fausto Valle começou a se embrenhar na literatura pelas portas da poesia. É poeta dos bons, conforme se atesta nos livros “A fonte de sal”, “Cravos sobre a mesa” e “Aldeia absurda”. Absurda de verdade é aldeia goiana que vive buscando noutras plagas, por ignorância, desdém e preconceito, escritores que valham a pena serem lidos.
O poeta Gabriel Nascente, por exemplo, é outro que também produz literatura em território goiano, tem uma obra formidável subestimada pela comunidade local e por grande parte dos nossos educadores, estudantes, em especial, nas escolas particulares, mais preocupadas em sanar a inadimplência dos alunos caloteiros e os adestrar para o escroto suplício dos vestibulares, do que primariamente os educar. O poetinha Gabriel (este tem nome de anjo, mas também passa ao longe da santidade, graças a Deus...) possui mais de trinta livros publicados, é um poeta extremamente talentoso, mas fica teimando poesia aqui no Goiás. Contudo, o tema desta crônica não é o vate Gabriel. Voltemos ao Fausto.
Nos últimos anos, ele dedica o seu labor literário à prosa. Dos oito livros já publicados, três são constituídos por contos. “Além do vão da janela”, publicação mais recente, reúne vinte contos inéditos do autor. A antologia é um autêntico balaio de gatos (no melhor dos sentidos: balaio bom, gatos de raça) que deve agradar a todos os gostos. Uma colcha de retalhos bem cosida e que não deixa o leitor com os pés nem com as cabeças descobertas, à mercê das muriçocas ou da friagem. Predominam estórias ambientadas no meio rural e nas cidades interioranas, contudo, sem aquela chatice reticente do palavreado chulo e errôneo que se fala na roça, infestando os livros rotulados de “regionalistas”. Êita, rótulo maldito...
O livro “Além do Vão da Janela” parece bolsa de mulher. Há de um tudo ali dentro. Estórias fantásticas, o sobrenatural, violência nua e crua, maldade, traições, suicídio, crises existenciais e outros dilemas humanos com os quais nos identificamos. Além da diversidade que atrai e captura, na estrutura do livro se percebe a categoria do escritor, a sensibilidade e lirismo, além do evidente conhecimento de causa e da língua portuguesa. Pode-se dizer, sem a mínima intenção de depreciar, que o escritor sai disparando para todos os lados. É atirador de elite, pistoleiro experiente que mata dando vida (?!). O tiroteio dura o tempo inteiro, pois as estórias são construídas com esmero e técnica, invejados atributos dos autores competentes. Lê-se o livro numa só sentada. Enfim, uma obra que “valle” a pena, a tinta e o papel.
Quem se interessa pela literatura feita no cerrado goiano, sabe que Fausto Valle é um poeta que joga de titular na seleção dos escritores tarimbados. Parece ter pendurado suas chuteiras de bardo. Mergulhou fundo na prosa como se fora nas águas amareladas e barrentas do Rio Araguaia (é urgente que se preservem as matas ciliares, mas os bons escritores também!). Apesar de não ter formação acadêmica em literatura, estou convicto que o Fausto figura entre os melhores contistas da atualidade. Seu azar foi fincar raízes fora do grande “eixo do mal” que controla e monopoliza a literatura no Brasil. O pior pecado, entretanto, quem comete são os seus conterrâneos, leitores que negligenciam os bons autores da terra, bem ao estilo roceiro, como se fossem bezerros enjeitados. Os escritores inábeis que se autoelegem imortais em saraus baratos regados a “risoles” frios e refrigerantes “diet”, estes sim, devem mesmo ser apartados.
Fausto Valle, repito, não é santo. Apesar de viver próximo à cidade de Trindade (terra milagreira onde o povo temente peleja e reza), não opera milagres. Mas já deixou cravada a sua decente marca na literatura brasileira. Confiram.
 


sábado, 22 de julho de 2017

Nabokov rejeitou parte da adaptação de Kubrick para Lolita

Nabokov rejeitou parte da adaptação de Kubrick para Lolita

POR  EM 19/12/2012 ÀS 09:10 PM
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O diretor de cinema Stanley Kubrick (1928-1999) adorava literatura. Ou, pelo menos, adaptar obras literárias para o cinema. Um de seus filmes mais conhecidos, “Laranja Mecânica”, de 1971, foi baseado no livro do escritor inglês Anthony Burgess. Este não gostou muito do filme, mas admitiu que não é dos piores. “Laranja Mecânica” permanece cult. A esquerda brasileira o adora, menos pela linguagem, e sim pela denúncia do totalitarismo estatal. É incrível: um joyciano de esquerda!
Outra grande adaptação de Kubrick — um diretor de qualidade, mas superestimado, como quase todo “cult” — é “Lolita”, de 1962. A adaptação foi feita pelo próprio autor do romance, o russo-americano (talvez um sem-lugar) Vladimir Nabokov, um grande escritor às vezes desvalorizado pelas modas. Depois de edições desleixadas da Record, com as versões de Pinheiro de Lemos, editoras de qualidade, como a Companhia das Letras e a Alfaguara, redescobriram sua prosa — na qual há uma mescla, intencional, de traços antiquados e inventivos (talvez a intenção de Nabokov tenha sido “inovar” o romance russo do século 19). O complexo romance “Fogo Pálido”, uma das histórias mais inventivas da literatura universal, ganhou tradução precisa de Jorio Dauster e Sérgio Duarte. Mas o autor das orelhas é no mínimo descuidado. Em vez de Kinbote, com “n”, como está no livro, escreve Kimbote, com “m”.
Mas, seguindo os diretores que se acreditam autores (“O Gênio do Sistema — A Era dos Estúdios em Hollywood”, de Thomas Schatz, demole a “teoria” de “cinema de autor”), Kubrick mexeu no roteiro. O texto “Nabokov duela com seus críticos e afirma que só há a escola do talento” mostra a insatisfação do escritor. É possível discordar de Nabokov e, claro, de Kubrick.


O filme, nos seus longuíssimos 152 minutos, pode até ser chato e modificar a “poesia” do texto original, mas, como cinema, é belo, não parece inatual e continua universal. A arte não raro esbarra no moralismo ao relatar comportamentos, por assim dizer, socialmente inadequados, como o de Humbert. O moralismo é necessário, mas não é útil para compreender fenômenos humanos, ainda que sejam anomalias condenáveis, como a pedofilia.
Claro que não é fácil comparar livro e filme. São linguagem diferentes e a invenção formal não é possível de ser adaptada por intepretações (fica incompreensível ou chatíssima) e imagens. Portanto, difíceis de comparar com argumentos simplistas — tipo: “O livro é superior”. Óbvio que, para quem gosta de literatura, o melhor está no livro. Porém, para os amantes de cinema, o filme interpreta bem o essencial do romance. Bem adaptado ou não, o filme sustenta-se em pé e não faz feio. O que, no fundo, deve ter desagradado Nabokov é que a película “roubou” parte da fama do livro. “Lolita” tornou-se, por assim dizer, mais de Kubrick do que de Nabokov.


Sem o filme, feito apenas quatro anos depois da publicação do romance, a repercussão de Na­bokov seria muito menor. Então, há um probleminha que nunca vai chegar a ser um problemão: o cinema às vezes simplifica, reduz e até distorce uma obra literária — Henry James perde ambiguidade e ganha solenidade nos filmes adaptados de seus romances, principalmente “A Taça de Ouro” e “As Asas da Pomba” —, mas é visceralmente útil como peça publicitária pra divulgá-la para um público mais amplo. Não há dúvida que, se as pessoas continuam comprando e lendo romances, é certo que o índice de leitura caiu — o que é camuflado por leitores que o fazem para prestar concursos (ou exigência escolar, quando um livro se torna, não um objeto de prazer, e sim um cadáver), porém não têm interesse genuíno em romances, contos e poesia. Os “citadores” do Facebook e do Twitter descobriram os lugares certos para colher frases de efeito, extirpadas do contexto, e as republicam à exaustão (chega-se a confundir autores com personagens). Mas não sabem citar nem mesmo as obras de onde foram retiradas. As redes sociais reforçam a tradição bacharelesca do Brasil.
Com acertos e desacertos e choques de opiniões (de Nabokov e Kubrick), “Lolita”-filme enriquece a leitura de “Lolita”-romance. Evidente que o grande criador, o ponto de partida, continua sendo Nabokov e há histórias paralelas, detalhes enriquecedores, que não aparecem no filme (nem em 500 minutos seria possível adaptar tudo).
Vale acrescentar: “Lolita” não é a principal obra de Nabokov. O romance sobre a ninfeta que “faz” um homem de meia-idade ficar apaixonado — ou seria o velhusco que a teria seduzido — chamou atenção para sua obra e, ao mesmo tempo, criou aquela fama estranha, enviesada, de que Nabokov “é o autor de ‘Lolita’”. É mais apropriado sugerir que Nabokov é também autor de “Lolita”. Mas isto é filigrana.