terça-feira, 25 de julho de 2017

Eberth Vêncio / Como saltar de um prédio sem ferir a multidão lá embaixo



Como saltar de um prédio sem ferir a multidão lá embaixo

Eberth Vêncio 

26/01/2013 ÀS 12:52 PM


O pobre Coitado (Sim. Isso mesmo. Seu nome era Coitado.) tomara a decisão mais radical da sua vida: suicídio. Lá estava ele (eu me lembro como se fosse hoje) com aquela cara aparlemada, sentado no beiral do terraço do Edifício Fácil. Vestido sempre com as mesmas roupas desbotadas, parecia uma personagem de desenho animado. Não somente o pano velho do vestuário, mas, a vida, para ele, já tinha perdido todas as matizes.
A gota d’água: flagrou a esposa ouvindo sinos com um terceiro dentro do ofurô do barracão (por “ofurô” leia-se “tanque de alvenaria com três metros cúbicos de água fria”). O pegador não era outro senão um seu primo-compadre, o feirante Nabucodonosor, mais conhecido no bairro como o Rei Nabo, por ser muito bem dotado em matéria de hortifrutigranjeiros.
Com tantos adultérios proliferando por aí a todo instante, o episódio do affair dentro do tanque poderia parecer banal e démodé à maioria dos seres humanos sexuados, ao ponto de conduzir um sujeito à melindrosa decisão de se autodestruir. Acontece que a decepção com a companheira foi apenas mais um grão de areia na gigantesca duna de justos motivos que Coitado carregava sobre os ombros.
Analfabeto desde que nascera (ai!), Coitado morava mal à beça num casebre de invasão às margens do Córrego Caganeiras. Saía pela cidade puxando a carrocinha baú feito um cavalo, a catar papelão, plástico, latinhas de alumínio e toda espécie de lixo urbano que pudesse render alguns trocados na usina de reciclagem. Assim como se faz aos dejetos inorgânicos, ele tentou, sem sucesso, reciclar os pensamentos ruins: precisava largar aquele serviço, a mulher, os problemas, a vida enfim, que estava mesmo — tal e qual aquele ribeirãozinho fedorento — uma verdadeira merda.
Nos últimos meses enveredara na pinga e no álcool absoluto 92,8 graus. Certa feita, como estivesse sem moedas, cismou de degustar etanol furtado de um veículo e quase virou ao avesso de tanto vomitar. O casal tinha cinco filhos, sendo quatro meninas (todas já iniciadas — por puro desamparo e deseducação — na fornicação, na gravidez precoce, na parição desenfreada ou no aborto clandestino) e um rapagão que, para desgosto de Coitado, assumira recentemente, na efervescência testosterônica dos seus 17 anos, que gostava mesmo era de homem. Coitado só não expulsou o filho de casa porque ninguém lhe dava ouvidos: nem a mulher, nem a prole, nem os ratos.
Coitado era franzino e seu corpo tremia como sói ocorre àqueles à beira de qualquer morte, no alto do velho Edifício Fácil, tantas vezes utilizado para espetáculos bizarros daquele naipe. Uma atenta plateia formara-se lá embaixo, visto que Coitado escolhera a dedo o horário do rush, numa das ruas mais movimentadas daquela maldita cidade. A Imprensa, sempre disposta a flagrar incríveis acontecimentos vendáveis no caos urbano, já se encontrava com as lentes a postos para cobrir o show de suicídio.
Fazia meia hora que Coitado estava posicionado no terraço, tempo mais que suficiente para aparecer nos principais canais televisivos do país. Seu salto mortal seria transmitido, ao vivo (que piada!), em cadeia nacional de rádio e TV. Seria injusto supor que a demora em saltar fosse premeditada. Afinal, Coitado não possuía nem comida em casa, quem dirá televisão.
Aliás, além da água salobra misturada com o sêmen dos amantes, aquele muquifo tinha praticamente nada, senão um amontoado de estranhos convencionados “família”, um grupo maltrapilho à margem da sociedade, sem a mínima condição de sonhar, um biguebróder miserável e com audiência nenhuma, do qual todos desejavam um dia escapar, entorpecendo-se, prostituindo-se, ou morrendo. Aliás, a esperança de que todo o mal se extinga um dia é a última de morre.
Coitado gritou lá de cima que era pra alguém dizer à desgraçada da sua mulher (o adjetivo grotesco foi copiado, ipsis litteris, sem qualquer exagero, por este escriba que se encontrava no meio da multidão naquela tarde modorrenta e fedendo a enxofre) que ele a odiava mais que a própria vida. Uma vizinha do casal, igualmente imersa em miséria, correu e contou à mulher que Coitado estava na TV ameaçando pular do enorme Edifício Fácil. “Que pule, aquele corno...”, esbravejou sem nenhum remorso, sem vestígios de afeto.
Com a demora do bebum em saltar no vazio da tarde, o povão começou a vaiar. Vocês sabem, movido por um curioso sentimento interior, o Homem nunca está plenamente satisfeito com as coisas. Ora, a vida não é feita só de espetáculos. Todos ali precisavam retomar à rotina, tocar o barco, cuidar dos afazeres, cumprir os compromissos, atingir as metas, correr atrás de dinheiro, meter os pés pelas mãos. Não podiam permanecer a tarde inteira a aguardar que um derrotado pulasse do terraço e proporcionasse à massa alguns instantes de drama, emoção e pura adrenalina. Tanto assim que o coro “Pula! Pula! Pula!” não tardou a brotar. A galera insistiu. Uma cidade inteira não podia parar por conta das vacilações de um covarde. Era agora ou nunca.
Coitado ficou em pé na pontinha. A galera apupou. Os profissionais do resgate apressaram os passos para coibir o sujeito de consumar o ato. Mesmo à luz do dia, os flashes pipocaram. Evangélicos e outros crentes do rebanho balançaram as suas bíblias, rogaram com veemência, socaram o próprio peito a interceder junto ao Pai por mais aquele pecador. Lá de cima, Coitado enxergava um mar de bracinhos esticados segurando smart-fones. Ninguém — nem fodendo — deixaria de registrar aquela cena.
Ele balançou o corpo como se fora um centroavante na marca do pênalti, defronte a bola, a ludibriar o goleiro. Abriu os braços magricelos de veias salientes e gritou “ai, mamãe” (notem: na hora da morte, 100% dos Homens, mesmo os filhos-da-mãe, recordam-se das genitoras). Saltou no espaço. Bateu os braços como se fossem asas, imitando passarinho. Então, um esplêndido fenômeno fez com que ele levitasse, flutuasse sobre a multidão, misturando-se a um bando de urubus que desde cedo rodopiavam no céu, atraídos pela catinga diuturna de peixe podre do mercado.
O povo ficou insano, estupefato, decepcionado horrores com aquele viés kafkaniano de última hora. Foi quando um estranho (mais uma criatura invulgar dentre tantas) sacou uma pistola e disparou seis vezes. Abatido, Coitado perdeu a proa, abandonou seus penados colegas de revoada, e despencou no vazio, drasticamente, com o corpo desnutrido cravejado de projéteis que interferiram no seu projeto de voo panorâmico sobre a carniça. Como diria o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, “morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
Respingados de amargura e sangue anêmico, os transeuntes despertaram daquele transe vespertino e foram cuidar das suas vidas. Exceto os urubus e o pessoal do IML, indispensáveis criaturas especializadas em se ocupar com os mortos.





Um comentário:

  1. Adorei este conto. Eu acabei de encontrar um texto seu sobre Tarantino, que salvei não sei de onde. Como sou fã de Tarantino, cheguei ao seu texto, provavelmente, sem querer. Você escreve pra teatro também? Esses contos já foram encenados? Aguardo retorno. Abraços, Raul Franco. Qualquer coisa meu e-mail é: raulfranconeto@gmail.com

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