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sábado, 9 de março de 2019

Quando os pais de Gabo perceberam que tinham um filho mentiroso


GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ


Quando os pais de Gabo perceberam que tinham um filho mentiroso



JESÚS RUIZ MANTILLA
Madri 7 MAR 2019 - 13:58 COT

Gustavo Tatis percorre o universo de García Márquez e seus segredos de família, intimamente ligados à obra que a Netflix adaptará para as telas


Quando Gabito era pequeno, doña Luisa e don Gabriel se preocupavam que o menino piscasse tanto. Seu pai chegou a lhe pingar um colírio homeopático, mas de pouco serviu. Anos depois, quando aquele tique parecia desaparecido, sua mãe se atreveu a lhe perguntar: “Ele me disse que fazia assim para ver as coisas melhor”, contou ela. “Para recordar…”, observou Gabriel García Márquez a quem o trouxe ao mundo em Aracataca (Colômbia), durante uma das visitas que lhe fez Gustavo Tatis Guerra, jornalista, escritor, amigo da família e autor do livro La Flor Amarilla del Prestidigitador.
Tatis apresenta sua obra nesta quinta-feira na Casa da América de Madri, junto com Dasso Saldivar, autor do prólogo, e Juan Cruz, um dia depois de a Netflix anunciar que produzirá uma série baseada em Cem Anos de Solidão. Em suas páginas, o autor esmiúça segredos de família e chaves ocultas da obra de Gabo: todo um constante malabarismo entre realidade e invenção a serviço do autor, para criar um dos mundos literários mais ricos da literatura universal. As testemunhas de tudo aquilo, seus pais, costumavam despir o imaginário de García Márquez com um jorro de realidade que colocava a magia em seu devido lugar.




“Tinha uma capacidade de inventar além da realidade que via. Sempre disse que tinha dois cérebros. Ninguém me tira da cabeça que Gabito é bicéfalo.”
GABRIEL ELIGIO MÁRQUEZ, PAI DE GABO

Algo que, por outro lado, engrandece sua genialidade criatividade sobre bases muito firmes. “Era o maior embusteiro do mundo”, confessou donGabriel Eligio García Martínez a Tatis. “Tinha uma capacidade de inventar além da realidade que via. Sempre disse que tinha dois cérebros. Ninguém me tira da cabeça que Gabito é bicéfalo”, confessou-lhe o pai ao autor do ensaio. Também ele uniu seu ofício de telegrafista ao de escritor. “Sempre sentiu certa concorrência do filho por causa disso”, comenta Tatis.
Ao menos o pai do Nobel de Literatura de 1982 pôde comprovar sobre as obras de seu filho a escala de sua transmutação. Esse mecanismo que o levava da realidade à invenção de uma mentira, e que por sua vez refletia uma grande verdade. “Nada do que García Márquez conta em seus romances é falso, tudo foi tirado daquele mundo”, diz Tatis.
Don Gabriel leu seus livros com atenção. Não foi o caso da mãe, que se orgulhava mais de ter em casa uma filha freira que um rebento ganhador do Nobel. Dentro de seu insuperável ceticismo, tentou tirar um único proveito da honraria dada ao filho: que finalmente arrumassem o telefone da sua casa. Seu mantra foi minimizar a importância. Assim, Luisa Márquez repelia as entrevistas, entre outras coisas, porque os repórteres que compareciam à sua casa costumavam saber mais que quem devia responder.
Mas com Tatis tudo foi diferente. Tratavam-no como alguém da família, alguém que ficava por lá ouvindo histórias até a hora do jantar. Uma delas foi do germe de Remédios, a bela, personagem de Cem Anos de Solidão que se elevava ao céu.
Baseia-se, segundo a mãe, em uma criada do mesmo nome que fugiu com seu amante. Quando um dia perguntaram a dona Luisa o que tinha acontecido com ela, respondeu: “Foi embora voando”. E Gabito, presente, associou os termos até transformar a explicação em literatura. Dona Luisa se vangloriava de não ter lido o romance porque já tinha vivido tudo aquilo. Tampouco se interessou por Crônica de Uma Morte Anunciada, mas isso por uma razão diametralmente oposta: “Porque aquela eu sofri”.
As razões de Luisa talvez incomodassem seu filho. Mas, como ele havia descrito Úrsula segundo seus parâmetros, como uma mulher mais que submissa a Deus, com atitude de combate contra ele, deve ter entendido. Com as histórias que pegava no ar, García Márquez começou a construir seus métodos característicos: “A chave está em saber atarraxar as mentiras”, confessou o escritor a Tatis Guerra.
O mesmo havia ocorrido com Melquiades. Era o retrato vivo de seu avô, o coronel Nicolás Márquez, militar entre alquimista e curandeiro, aficionado a desenhar peixes coloridos em sua oficina e a fundar povoados. Melquiades tem duas bases: “Seu avô e Nostradamus”, comenta Tatis. "Contou-me isso em 1992 durante a primeira entrevista que fiz com ele", acrescenta. Conheceram-se antes que desse a volta ao mundo com seu prêmio em Estocolmo. Mas depois chegaram várias outras conversas que completaram aquele primeiro encontro. “Dei o suficiente a você para um livro”, comentou o escritor ao amigo.
Uma obra que Tatis vinha escrevendo desde que o conheceu. Agora sai publicada. Isso é La Flor Amarilla del Prestidigitador. O retrato de um homem que soube tirar partido do seu gênio natural de romancista entre o impulso poético e a precisão do jornalista. Um mentiroso eminente que ao receber a notícia de que ganhara o Nobel não teve vergonha de exclamar: “Merda, eles acreditaram!”.



terça-feira, 11 de março de 2014

Yoko Ono / A vida começa depois dos 80


Yoko Ono, 2013

A segunda vida de Yoko Ono 

começa depois dos 80


Em paz com McCartney e otimista sobre a evolução do mundo, a administradora de parte do legado dos Beatles inaugura nesta semana uma ampla retrospectiva no museu Guggenheim de Bilbao


Yoko Ono, em julho do ano passado. / L. JACKSON (REUTERS)
Ninguém diria, se a observasse caminhar lentamente, vestida de preto, diminuta, com um maravilhoso chapéu de cachemir, óculos escuros e casaco, que essa anciã amável e sorridente se aproximando de seu esconderijo de Broome Street —no Soho nova-iorquino— é Yoko Ono. Mas sim, poderíamos ter uma ideia de que ela se encontra serena e em paz, após ter sido de tudo. Desde artista ativista, adolescente com tendências suicida, mulher alvo, culpada por centena de milhares por todos os males, “dragon lady”, diz ela, ou “a bruxa”, como ela mesma reivindicou em uma canção: Yes, I'm a witch. Tudo isso e mais um pouco, assume, embora não esteja de acordo: “Sou pacífica e pragmática”, confessa antes de viajar para a Espanha, onde no próximo dia 14 inaugura uma retrospectiva sua no Guggenheim de Bilbao.
Para a cidade basca, ela se dirige otimista e em pleno desfrute do que, admite, “minha segunda vida”. Um período que começou depois que ela completou 80 anos. Yoko resulta de perto em uma mulher amável mas brincalhona, extrovertida para certos temas, mas sutilmente evasiva para outros tantos, paciente, mas determinante, irônica sobre si mesma, sábia, em suma.
Em Bilbao poderá ser visto o trabalho que ela realiza desde os anos cinquenta: obra gráfica, desenhos, pintura, instalações... “Sessenta anos de atividade! Minha nossa”, parece se surpreender, e vai para seus devaneios com a vanguarda nova-iorquina mais radical na música —com compositores como John Cage ou Lamonte Young— a experiências com Fluxus antes de conhecer John Lennon e atrair o Beatle para o caminho da máxima experimentação que, paradoxalmente, acabou com ele como um pacífico e atarefado pai e amo de casa em seu apartamento do edifício Dakota. Ali foi onde compôs em seus últimos meses de vida esse hino ao estoicismo que se intitulou Watching the wheels e que dá ideia de sua sã posição vital antes da tragédia.
Ela mostrará os trabalhos realizados desde os anos cinquenta: desenhos, pinturas, instalações...
Muito próximo da casa onde foi assassinado no ano 80 por Mark David Chapman, Yoko foi testemunha do ódio universal que as massas professavam em grande parte por ela mesma, que foi culpada globalmente em grande parte injustamente do desaparecimento dos Beatles. É algo que até McCartney negou nos últimos tempos, saldando uma dívida histórica. “Teria ocorrido do mesmo jeito”, disse o músico. “Na realidade, não tivemos uma relação tão ruim”, comenta Yoko. “Foi a imprensa e as pessoas que mais queriam nos ver brigados, mas isso não correspondia à realidade”.
Isso talvez tenha acontecido em tempos de vida de Lennon, quando enviava cartas ferozes ao seu amigo de adolescência, o culpando do vazio tremendo que o faziam viver, tanto ele, como sua mulher Linda. Mas isso são águas passada, parece. E esse sentido prático, depois de sua morte, predominou em Yoko Ono, ainda que apenas para se ocupar de um legado que, quando o mito morreu chegava a três milhões de dólares, e, pouco depois, se converteu em 300.

Yoko Ono e John Lennon

Entre outras coisas, a viúva sempre disse que o fazia por Sean, o filho de ambos, que agora usa seu estúdio no Soho para atender as pessoas, já que ela se mostra resistente à ideia de receber estranhos em sua casa próxima ao Central Park. Sean colaborou em grande parte para que as bandas e os artistas indies mais arriscados de sua geração —de Peaches, Le Tigre, Polyphonic Spree, The Flaming Lips a Cat Power, Antony, Craig Armstrong ou DJ Spooky— contribuam em reivindicar a arte de sua mãe. É outra das razões pelas quais Yoko Ono sente que voltou a nascer.
Empenhada em seus aspectos pacifistas, deseja o melhor para todo mundo menos para Chapman, que faz questão de não perdoar. “Não, não o fiz”, comenta. Entusiasmada com sua exposição no Guggenheim, aproveita para insinuar que seus antepassados podem ter procedência espanhola. “Não era muito bem visto isso em meu país, essa coisa das misturas, mas os espanhóis e os portugueses se deixaram cair por Nagasaki e parece que tiveram algum contato com a minha família”. Uma família de ascendência nipônica que, apesar de contar com um pai banqueiro, não houve rejeição no fato de sua filha se converter em uma artista de vanguarda. “Em absoluto, meu pai era músico e minha mãe pintava, de modo que eles se entendiam”, explica Yoko.