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sexta-feira, 5 de março de 2021

Denúncia de maus tratos do romancista Amos Oz à sua filha abala Israel

 

Amos Oz

Denúncia de maus tratos do romancista Amos Oz à sua filha abala Israel

A também escritora Galia Oz conta em uma autobiografia que sofreu contínuos abusos físicos e psíquicos por parte do seu pai, que morreu em 2018



Juan Carlos Sanz
Jerusalém, 23 Fevereiro 2021



“Durante minha infância, meu pai me bateu, me insultou e me humilhou.” A autobiografia da escritora de literatura infantil Galia Oz gerou um forte incômodo em Israel, onde a memória do romancista Amos Oz, morto há pouco mais de dois anos em decorrência de um câncer, é preservada como uma glória nacional com projeção universal e ícone da esquerda pacifista. As acusações, contidas nas páginas do livro Algo disfarçado de amor, não são menores. “Não era uma perda passageira de controle, nem uma bofetada aqui ou acolá, e sim uma rotina sádica”, escreve ela. A comoção causada pela denúncia no Estado judaico se manifestou, porém, com o distanciamento geralmente dedicado aos segredos de família.


Galia Oz, de 56 anos, segunda filha do autor de De amor e trevas, rompeu há sete anos com seu pai e o resto da família. A tensão gerada por sua presença no funeral do escritor, em dezembro de 2018, ainda é recordada na imprensa hebraica. “Seus abusos eram criativos: me arrastava de dentro de casa e me atirava pela escadaria da entrada”, descreve ela no seu livro de memórias. “Poderíamos dizer que me tratava como lixo, mas sem nunca perder a calma. Meu crime era ser eu mesma, por isso o castigo nunca tinha fim, até que ele tinha certeza de que eu estava destruída por dentro.”

Galia Oz


O escritor e jornalista Yehuda Atlas, amigo de Galia Oz, declarou à rádio pública israelense que “tinha ouvido falar dessas histórias [de maus tratos], mas para nós, progressistas de Israel, era difícil de aceitar. Amos Oz era nosso príncipe”. Daniel Oz, músico e poeta, filho mais novo do autor de Judas, deixou no Facebook uma enigmática reflexão: “Meu pai não era um anjo, só um ser humano. O melhor ser humano que conheci. Estou certo ―sei― que há um pingo de verdade nas lembranças de Galia. Não a apaguemos. Não nos apaguemos”.

A posição oficial da família ficou registrada em uma mensagem no Twitter da mais velha dos três filhos do romancista, Fania Oz-Salzberger, historiadora e professora. “Conhecíamos um pai diferente [do descrito por sua irmã mais nova]. Um pai amável e atento, que amava a sua família. As acusações de Galia, cuja dor parece ser real, não correspondem à lembrança, totalmente diferente, que guardamos dele ao longo de todas as nossas vidas.”

Amos Oz, nascido em Jerusalém em 1939, narrou Israel com uma voz original, que tocou a alma de seus compatriotas. O eco de sua obra, traduzida para 45 idiomas, propagou-se por todo o mundo com o reconhecimento de prêmios como o Príncipe de Astúrias (2007) e o Goethe (2008). Mas, embora seu nome figurasse anualmente nos bolões de aposta de Estocolmo, nunca recebeu o maior reconhecimento de todos, o Nobel de Literatura. “Acho que já tive minha cota de prêmios literários”, disse numa entrevista ao EL PAÍS em 2015, “e se não receber o Nobel não vou morrer insatisfeito”.

Sua vida foi um romance. Trocou seu sobrenome paterno, Klausner, pelo de Oz, e abandonou sua família de imigrantes judeus da Europa Oriental para ingressar em um kibutz aos 15 anos. O relato de sua experiência nas fazendas coletivas, que marcaram os primeiros anos do Estado judaico, foi o eixo central de uma obra de juventude que evoluiu para a descrição de personagens arquetípicos, com os quais a sociedade israelense se identifica e que atraíram a atenção de leitores de todo o planeta.

A relação familiar vivida por Amos Oz durante sua infância foi complexa. Esforçou-se para ser “o mais diferente possível” do seu pai, um bibliotecário nacionalista judeu, em busca do sonho do socialismo comunitário no campo. Mergulhada em uma depressão, sua mãe se suicidou quando ele tinha 12 anos. “Acho que há um gene fanático em quase todos nós. O ser humano tenta mudar os outros. Dizemos às crianças: ‘Você tem que ser como eu’”, declarou numa entrevista ao EL PAÍS poucos meses antes de morrer, quando apresentou sua última obra, Caros fanáticos, que definiu como “um legado”.

Pouco mais se sabe da vida privada do escritor mais reconhecido do Israel. Sua amabilidade era proverbial entre os correspondentes da imprensa estrangeira, a quem seduzia gerando manchetes sobre uma solução com dois Estados para o conflito palestino-israelense, ao mesmo tempo em que esmiuçava com habilidade ao longo das conversas a riqueza da obra que sua editora estivesse divulgando.

“Não tive remédio senão tentar superar a violência, o secretismo, o costume de guardar isso tudo para mim e o medo do que dirão”, confessa a filha do escritor em sua autobiografia. “Mas não consegui. Por isso tive que escrever.” Esperou a morte do pai. Alega que ele havia difundido inverdades entre os intelectuais israelenses para desacreditá-la, caso se atrevesse a revelar os maus tratos que diz ter sofrido. Analistas e críticos de sua obra citados pela imprensa local disseram enxergar no romance Conhecer uma mulher, de Oz, um paralelismo entre a filha obstinada e epilética do protagonista ―um ex-espião que acaba de enviuvar― e sua própria filha Galia.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Amos Oz / Combatente pela paz



Amos Oz


Amos Oz

Combatente pela paz

Todas as vezes em que disse em minha vida que Israel era o único país onde sempre me senti um homem de esquerda, era pelas coisas que ali fazia, dizia e escrevia Amos Oz, que faleceu há poucos dias


Mario Vargas Llosa
7 Jan 2019

Conheci Amos Oz em novembro de 1976, em minha primeira viagem a Israel. Fui visitá-lo no kibutz Hulda, onde estava desde os 14 anos. (Sua mãe se suicidara dois anos antes). Seu primeiro romance, de título intraduzível ao espanhol, Quizás en Otro Lugar(Talvez em outro lugar) seria o mais aproximado, havia provocado uma grande controvérsia em seu país porque nele fazia uma minuciosa análise da vida nesses pequenos recintos idealistas —os kibutz— que buscavam, como disse ironicamente anos mais tarde, “criar pessoas boas e saudáveis, sem sequer suspeitar que os seres humanos não somos nem bons nem saudáveis”.

Vivia modestamente em uma casinha de madeira e tinha que se levantar ao alvorecer para trabalhar no campo com as mãos. Mas estava muito contente porque os dirigentes do Hulda lhe permitiam dedicar as tardes a escrever. Era jovem, otimista, incansável, e creio que desde o primeiro momento ambos soubemos que seríamos bons amigos. Nas sete ou oito vezes em que estive depois em Israel sempre demos um jeito para almoçar ou jantar juntos, e o mesmo em conferências e congressos literários pelo mundo, nos quais sempre arranjávamos uma brechinha para tomar um café. Todas as vezes em que disse em minha vida que Israel era o único país onde eu sempre me senti um homem de esquerda, era pelas coisas que ali fazia, dizia e escrevia Amoz Oz.
Tudo o que escreveu —seus romances, ensaios, reportagens— tinha a ver com problemas reais e imediatos, e essa preocupação com a vida política e social, inevitável para um escritor israelense, não era incompatível com a excelência literária, como se constata nesta obra prima que foi sua autobiografia, De Amor e Trevas (2002), e seu romance Meu Michel, traduzido em quase todo o mundo. Ao mesmo tempo que grande escritor, foi um lutador encarniçado pela paz e um dos fundadores do Movimento Paz Agora, que nos anos 80 chegou a ter milhões de seguidores em Israel. Lutou toda sua vida pela paz entre os israelenses e os palestinos porque conhecia os estragos terríveis que as guerras causam, já que havia participado de duas delas, a Guerra dos Seis Dias e a Guerra do Yom Kipur.



Seu sionismo não o impedia de ver as injustiças que os colonos cometiam nos territórios ocupados

Era um sionista convicto e confesso, porque acreditava que os israelenses tinham direito a ocupar uma terra à qual estavam ligados historicamente e um país que haviam construído, mas seu sionismo não o impedia de ver as injustiças que os colonos cometiam nos territórios ocupados. Por isso, defendeu até o fim de seus dias a ideia dos dois Estados —um israelense e outro, palestino—, apesar de que muitos de seus antigos amigos, após a direitização tão atroz experimentada pelo Governo israelense e o canceroso crescimento dos assentamentos ilegais nos territórios ocupados, achavam isso impossível e tendiam a apoiar a ideia de um só Estado laico e compartilhado pelas duas comunidades. Para Amos Oz esta solução parecia absolutamente irreal e inoperante (“isso só na Suíça”, insistia), algo que o levou a distanciar-se politicamente de outro grande escritor israelense, A. B. Yehoshua, de quem tinha sido muito amigo.
A última vez que o vi foi há dois anos, em um almoço em Jerusalém. Estava irreconhecível, de tão desanimado e silencioso, ele que parecia a alegria de viver encarnada e derramava energia por todos os poros. Era o câncer, sem dúvida, que começava a fazer estragos em seu organismo. Mas eu atribuí ao tom sombrio daquela conversa, da qual participavam Yehuda Shaul, fundador do grupo Breaking the Silence, no qual os próprios soldados denunciam os abusos que o Exército de Israel comete. Gideon Levy, um jornalista progressista muito conhecido; o romancista David Grossman —que sem dúvida o sucederá como consciência moral de seu país— e Juan Cruz, de EL PAÍS.
É verdade que não deve ser fácil ser um escritor laico e progressista em um país como Israel, onde, em cada eleição, sempre voltam ao governo as mesmas pessoas e as mesmas políticas extremistas, graças a pequenos partidos de fanáticos religiosos —aos quais Amos Oz dedicou precisamente um de seus últimos ensaios— cujos votos garantem a maioria ao Governo imperante. Em Israel, a democracia existe e funciona de maneira impecável para os israelenses (para os palestinos, claro, não). Há liberdade de imprensa, não existe a censura, os juízes são independentes, e a vida política é multíplice, livre, muito intensa. Mas se um visitante se embrenha na Cisjordânia já é outra coisa. As cidades e vilas palestinas estão praticamente cercadas pelos assentamentos ilegais, submetidas a um controle policial e militar rigidíssimo, e bloqueadas e retalhadas por uma muralhona gigantesca que separa as famílias de suas escolas e campos de trabalho. Etcétera. Claro que a ameaça do terrorismo é uma realidade e exige que sejam tomadas precauções para evitá-lo. Mas a impressão que se tem é que Israel já excluiu de seu programa as negociações de paz e que a tese de Sharon —nós imporemos a paz— passou a ser, pura e simplesmente, a política de todos os Governos israelenses. Para mim, esta possibilidade parece ainda mais irreal e disparatada que a do Estado único. Porque ela só se sustentaria convertendo o diminuto Israel em uma anacrônica África do Sul dos tempos do apartheid, cercado de inimigos pelos quatro costados.



Raras vezes falava de seus livros e, quando não havia mais remédio, fazia isso subestimando-os, e como se estivesse enfastiado

Quando se acompanha a obra de um escritor como Amoz Oz à medida que vai sendo produzida, observa-se a importância de que a literatura se alimente do que são as preocupações e angústias —e também exaltações e alegrias, é evidente— da gente comum, aquela que lê os livros e se reconhece neles, e, ao mesmo tempo, eles lhe permitem tomar distância desse mundo e encará-lo de uma perspectiva mais profunda e de mais alcance. Isso é o que a grande literatura tem sido sempre: uma maneira melhor de compreender tudo aquilo que constitui a vida, enriquecer a perspectiva dos fatos mais íntimos e pessoais, e, também, claro, dos coletivos, e a maneira mais eficaz de substituir os estereótipos, preconceitos e lugares comuns por ideias. Isto é o que Sartre dizia que devia ser a literatura em seu extraordinário ensaio Situations II, antes de desdizer-se de tudo aquilo quando recomendou aos escritores africanos que renunciassem a escrever para fazer primeiro a revolução socialista e criar países onde a literatura fosse possível. (Se tivessem seguido esse conselho, os países africanos nunca teriam literatura).
Na homenagem que lhe prestou, Gideon Levy (que foi tão crítico de suas posições políticas) fala de seu “encanto, de sua incrível modéstia, de sua magia”. É verdade. A vaidade costuma ser imensa entre os que nos dedicamos a escrever. Uma das exceções era Amoz Oz. Raras vezes falava de seus livros e, quando não havia mais remédio, ele fazia isso subestimando-os, e parecendo enfastiado. Certa vez o ouvi dizer que não entendia por que sua obra era tão conhecida em tantas partes e por tantos leitores diferentes. Vai fazer muita falta para todos nós. E, sobretudo, para Israel: poucos israelenses fizeram tanto por seu país como Amos Oz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Gaza, além da faixa

Gaza

Gaza, além da faixa

Gaza não é uma estreita faixa de terra, mas uma imensa região que sangra copiosamente em, pelo menos, três hematomas



Com o cessar-fogo, é mais fácil avaliar a extensão do incêndio: logo se percebe que Gaza não é uma estreita faixa de terra semiarrasada, com seis ou doze quilômetros de largura. É uma imensa região -- coração do Oriente Médio -- que sangra copiosamente em, pelo menos, três hematomas.
O conflito Israel versus Hamas, ora suspenso, é apenas um deles. Outro é a guerra civil na Síria onde o governo enfrenta há três anos rebeldes de diferentes etnias e convicções. O terceiro localiza-se no Iraque, parcialmente ocupado por um levante de fundamentalistas de origem waabita (a mesma dos sauditas), que pretendem chegar à Síria para formar um novo califado, o Estado Islâmico do Iraque e Levante.
No momento, ameaçam arrasar o enclave dos curdos no norte do Iraque, razoavelmente próspero e autônomo, para chegar às montanhas onde se abrigam os yazidis (minoria também curda, oriunda do zoroastrismo).
A nova ofensiva do exército pró-califado, nesta quinta, levou o presidente Barack Obama a autorizar os ataques aéreos a alvos selecionados no Iraque, três anos depois da retirada das tropas americanas do país. Considerando que o chamado Curdistão compreende não apenas o Iraque, mas também parte da Síria e principalmente a Turquia, evidencia-se a extensão desta Grande Gaza que a trégua informal entre Israel e o Hamas permite entrever.
Esta assustadora convulsão ao sul de um império russo subitamente tornado insano com a derrubada do seu títere, Viktor Yanukovich, na Ucrânia, recria justo no centenário da Grande Guerra um cenário de entrelaçamentos e vinculações, efeitos-dominó e efeitos-cascata de triste memória. As rememorações com entonação pacifista começam a ser substituídas por um “espelhismo” compulsivo que tenta assemelhar dissemelhanças mesmo em circunstâncias, momentos e com teores diametralmente opostos.
Aflitas Cassandras já se movimentam: agosto com seus habituais desgostos e setembro com a lembrança do início da 2ª Guerra Mundial, ao invés de estimular remissões inspiradoras cria um culto determinista e fatalista que só agrava a asperezas da realidade.
O tabuleiro da 3ª Guerra Mundial não está armado, sequer pode ser cogitado. O impensável permanece impensável, distante. A atual turbulência tem ingredientes capazes de desativa-la e mesmo crenças baseadas na autoimolação e no sacrifício são insuficientes para anular no ser humano a sua capacidade de gozar os frutos do seu espírito e talento.
Já tivemos momentos de igual gravidade e os líderes por eles forjados souberam perceber as brechas por onde avançar.



sábado, 9 de agosto de 2014

Vargas Llosa / Entre os escombros

Entre os escombros
Fernando Vicente

MARIO VARGAS LLOSA

Entre os escombros

Os radicais do Hamas saem fortalecidos após os ataques de Israel graças ao rancor, ao ódio e à sede de vingança que a população de Gaza sentirá depois dessa onda de morte e destruição



9 AGO 2014 - 17:00 COT

Escrevo este artigo no segundo dia do cessar-fogo em Gaza. Os tanques israelenses se retiraram da Faixa, pararam os bombardeios e o lançamento de foguetes, e as duas partes negociam no Cairo uma extensão da trégua e um acordo de longo prazo que assegure a paz entre os adversários. A primeira parte é possível, sem dúvida, sobretudo agora que Benjamin Netanyahu declarou estar satisfeito – “missão cumprida”, foi o que disse – com os resultados do mês de guerra contra os moradores de Gaza, mas o segundo – uma paz definitiva entre Israel e Palestina – é, por enquanto, pura quimera.
O balanço desta guerra de quatro semanas é (até agora) o seguinte: 1.867 palestinos mortos (entre eles 427 crianças) e 9.563 feridos, meio milhão de desabrigados e cerca de 5.000 casas destruídas. Israel perdeu 64 militares e 3 civis, e os terroristas do Hamas lançaram sobre seu território 3.356 foguetes, dos quais 578 foram interceptados pelo sistema de defesa e os outros causaram apenas danos materiais.
Ninguém pode negar a Israel o direito de defesa contra uma organização terrorista que ameaça sua existência, mas também cabe a pergunta se uma carnificina semelhante contra uma população civil, a destruição de escolas, hospitais, mesquitas, locais onde a ONU acolhia refugiados, é tolerável dentro de limites civilizados. Semelhantes matança e destruição indiscriminada, além do mais, se abatem contra a população de um retângulo de 360 quilômetros quadrados ao qual Israel, desde que impôs em 2006 um bloqueio por mar, ar e terra, já submete a uma lenta asfixia, impedindo importar e exportar, pescar, receber ajuda e, resumindo, privando a região a cada dia das mais elementares condições de sobrevivência. Não falo de ouvir falar; estive duas vezes em Gaza e vi com meus próprios olhos o amontoamento, a miséria indescritível e o desespero com que se vive dentro dessa ratoeira.




O conflito pode ser estendido a todo o Oriente Médio e provocar um cataclismo

A razão de ser oficial da invasão de Gaza era proteger a sociedade israelense destruindo o Hamas. Isso foi conseguido com a eliminação dos 32 túneis que o Tsahal capturou e destruiu? Netanyahu diz que sim, mas ele sabe muito bem que está mentindo e que, ao contrário, em vez de afastar definitivamente a sociedade civil de Gaza da organização terrorista, esta guerra vai devolver o apoio da população que o Hamas estava perdendo a passos largos por seu fracasso no governo da Faixa e por seu fanatismo demencial, o que o levou a se unir à Al Fatah, seu inimigo mortal, aceitando não ter nenhum representante nos Governos da Palestina e de Gaza, inclusive admitindo o princípio de reconhecimento de Israel, que tinha sido exigido por Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Nacional Palestina. Por desgraça, o moribundo Hamas sai revigorado desta tragédia, com o rancor, o ódio e a sede de vingança que a dizimada população de Gaza sentirá depois desta chuva de morte e destruição que padeceu durante estas últimas quatro semanas. O espetáculo das crianças arrebentadas e as mães enlouquecidas de dor escavando as ruínas, assim como o das escolas e clínicas em pedaços – “Um ultraje moral e um ato criminoso”, segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon – não vai reduzir, e sim multiplicar, o número de fanáticos que querem fazer Israel desaparecer.
O mais terrível desta guerra é que não resolve, pelo contrário, agrava o conflito palestino-israelense e é apenas mais uma sequência em uma corrente interminável de atos terroristas e enfrentamentos armados que, em curto ou longo prazo, podem se espalhar por todo o Oriente Médio e provocar um verdadeiro cataclismo.
O governo israelense, desde os tempos de Ariel Sharon, está convencido de que não há negociação possível com os palestinos e que, portanto, a única paz possível de alcançar é a imposta por Israel através da força. Por isso, embora faça declarações rituais a favor do princípio dos dois Estados, Netanyahu sabotou sistematicamente todas as tentativas de negociação, como ocorreu com as conversas que o presidente Obama e o secretário de Estado John Kerry se empenharam em promover, assim que este assumiu seu cargo, em abril do ano passado. E por isso apoia, às vezes com sigilo, e às vezes abertamente, a multiplicação dos assentamentos ilegais que transformaram a Cisjordânia, o território que o Estado palestino teoricamente ocuparia, em um queijo gruyère.
Esta política tem, lamentavelmente, um apoio muito grande entre o eleitorado israelense, no qual aquele setor moderado, pragmático e profundamente democrático (o do Peace Now, ou Paz Agora) que defendia a resolução pacífica do conflito mediante negociações autênticas foi se encolhendo até se tornar uma minoria quase sem influência nas políticas do Estado. É verdade que ali existe, ainda, tentando fazer com que suas vozes sejam ouvidas, pessoas como David Grossman, Amos Oz, A. B. Yehoshua, Gideon Levy, Etgar Keret e muitos outros, salvando a honra de Israel, assumindo suas posições e protestando, mas a verdade é que são cada vez menos e que cada vez têm menos eco em uma opinião pública que foi se tornando mais extremista e autoritária. (Sabemos que em seu próprio Governo Netanyahu têm ministros como Avigdor Lieberman, que o consideram moderado e ameaçam retirar o apoio de seus partidos se ele não castigar com mais dureza o inimigo.) Cegados pela indiscutível superioridade militar de Israel sobre todos seus vizinhos, em especial a Palestina, chegaram a acreditar que selvagerias como a de Gaza garantem a segurança de Israel.




Os bombardeios contra a população civil de Gaza tiveram no mundo inteiro um efeito terrível

A verdade é exatamente a oposta. Embora ganhe todas as guerras, Israel é cada vez mais fraco, porque perdeu toda aquela credencial de país heroico e democrático, que converteu os desertos em pomares e foi capaz de assimilar em um sistema livre e multicultural pessoas vindas de todas as regiões, línguas e costumes, assumindo cada vez mais a imagem de um Estado dominador e prepotente, colonialista, insensível às exortações e chamados das organizações internacionais, confiando somente no apoio automático dos Estados Unidos e em sua própria potência militar. A sociedade israelense não pode imaginar, em seu ensimesmamento político, o terrível efeito que tiveram no mundo inteiro as imagens dos bombardeios contra a população civil de Gaza, das crianças despedaçadas e a das cidades transformadas em escombros e como tudo isso vai convertendo-o de país-vítima em país-carrasco.
A solução do conflito Israel-Palestina não virá de ações militares, mas de uma negociação política. Foi o que disse, com argumentos muito lúcidos, Shlomo Ben Ami, que foi ministro de Relações Exteriores de Israel precisamente quando as negociações com a Palestina – em Washington e Taba, nos anos 2000 e 2001 – estiveram a ponto de dar resultados. (O que impediu foi a insensata negativa de Arafat de aceitar as grandes concessões que Israel tinha feito.) Em seu artigo A Armadilha de Gaza (EL PAÍS BRASIL, 29 de julho de 2014), ele afirma que “a continuidade do conflito palestino debilita as bases morais de Israel e sua posição internacional” e que “o desafio para Israel é vincular sua tática militar e sua diplomacia a uma meta política claramente definida”.
Espero que vozes sensatas e lúcidas como as de Shlomo Ben Ami terminem sendo escutadas em Israel. E espero que a comunidade internacional atue com mais energia no futuro para impedir atrocidades como a que acaba de sofrer Gaza. Para o Ocidente, o que ocorreu com o Holocausto judeu no século XX foi uma mancha de horror e de vergonha. Que não seja assim, no século XXI, com a agonia do povo palestino.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Gaza / Efeitos colaterais

Moradores correm em busca de refúgio na Faixa de Gaza. / Hatem Ali (AFP) / HATEM ALI (AFP)

Efeitos colaterais

A questão central é que Israel nunca permitiria um Estado palestino soberano


O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirma que o propósito da invasão de Gaza é destruir os túneis que ligam a Faixa com Israel, por onde escorregam os terroristas do Hamas. Por que, então, os 10 dias de bombardeios prévios à invasão terrestre? Por que o Hamas recusou um cessar-fogo que teria diminuído a carnificina? E, se isso tem sentido, quem sai ganhando ou perdendo com o massacre?
O grande perdedor só pode ser o povo palestino, que sofreu uma orgia de efeitos colaterais, ou seja, mulheres e crianças entre as várias centenas de mortos, milhares de feridos e detidos, inumeráveis casas destruídas, e a demolição total ou parcial de seus já exíguos serviços públicos.
A opinião israelense e de seu primeiro-ministro é sim, ao que parece, de confiança de ter ganhado, pelo menos no curto prazo. Netanyahu sabe que uma campanha assim produz uma união em apoio ao Exército, que com sua Operação Limite Protetor combate tanto a ameaça dos foguetes e as infiltrações do Hamas, quanto procura manter sob controle sua extrema direita, que pede a reocupação da Faixa e uma punição ainda mais exemplar, como se a matança não fosse suficiente. E, em uma estranha simetria, o Hamas pode pensar que ganha também porque, em comparação com a Autoridade Palestina de Mahmud Abbas, pode se ufanar de ser o único que enfrenta os invasores.
Há limites, no entanto, para tanta ganância. Ao establishment israelense não interessa a destruição completa do inimigo, se isso fosse possível, porque o vazio assim criado seria preenchido por uma dúzia de facções, a maioria divisões do Hamas, de um jihadismo ainda mais radical, enquanto que a organização que governa a Faixa cumpre com perfeição um útil propósito político: permite a Israel afirmar que não há negociação de paz possível com terroristas, condenados à destruição do Estado sionista.
Como destaca o jornalista libanês Rami G. Khouri, tanto quanto a destruição dos túneis, o que importa a Netanyahu é “cortar a grama” sob os pés da guerrilha, destruir a infraestrutura do Hamas, operação que, pelo visto, convém repetir por vários anos —a última vez foi em 2008-2009, com um saldo de 1.400 palestinos e 13 israelenses mortos— para impedir que a organização reconstrua seu aparato militar, ao mesmo tempo em que a mantém permanentemente na defensiva. Isso explicaria os 10 dias de bombardeios, antes do início da busca dos túneis.
Longe do teatro da ação aparece, no entanto, outro grande perdedor: Barack Obama, ou a viva imagem da impotência. A matança dispara e o presidente norte-americano expressa “sua preocupação” por telefone a Netanyahu, e quando este dê por finalizada a operação, até deverá agradecê-lo. A questão central, em qualquer caso, foi manifestada pelo primeiro-ministro israelense em uma entrevista coletiva, com a invasão já mediada, ao dizer que Jerusalém nunca permitiria a existência de um Estado palestino plenamente soberano. E sua justificativa chama-se Hamas.





domingo, 1 de dezembro de 2013

David Grossman / “Não se pode tolerar que invadamos diariamente a vida dos palestinos”



David Grossman: “Não se pode tolerar que invadamos diariamente a vida dos palestinos”

O escritor israelense, em um encontro com Vargas Llosa, fala da necessidade da paz com a Palestina para fazer de Israel “um lar”


Juan Diego Quesada
Guadalajara, 1 Dez 2013





Os dois escritores, durante o encontro na Feira Literária.
Os dois escritores, durante o encontro na Feira Literária. SAÚL RUIZ


David Grossman (Jerusalém, 1954) conversou com Mario Vargas Llosa sobre as leituras da sua infância e sobre o compromisso dos escritores com a palavra precisa. Mas, quando chegou o momento de falar de política, torceu a cara: “Precisamos arruinar uma linda manhã”. Foi só uma maneira de dizer, porque suas palavras tiveram a força e a integridade de um intelectual que navega a contracorrente da sua experiência vital. Grossman é o protagonista de um discurso de reconciliação, apesar de ter perdido a um filho na guerra, um episódio que teria levado muitos outros a hospedarem os sentimentos mais obscuros. A reticência inicial do autor de Fora do Tempo não reduziu o valor das suas poderosas palavras em torno da necessidade de obter um acordo de paz entre Israel e a Palestina. “Como judeu, isso vai me permitir ter um lar. As fronteiras de meu país mudaram tantas vezes que ele já não existe. É como viver em uma casa com paredes móveis e onde a terra treme de tempos em tempos”, expôs ele neste domingo perante um auditório lotado, na Feira do Livro de Guadalajara.
Os judeus – havia explicado Grossman minutos antes – protagonizaram uma das grandes histórias da humanidade (“Somos um povo com um passado glorioso, enorme e eventualmente muito trágico”). Desde sua dispersão como povo, passando pelas expulsões que sofreram em alguns países na Idade Média, até desembocar no Holocausto e na criação do Estado do Israel. Uma existência maníaco-depressiva, observou o escritor, segundo o qual chegou o momento de abandonar esse caminho grandiloquente e de contínua tomada de decisões tremendamente dolorosas. Um momento, diz ele, “de ser um país como os outros. De começar a escrever uma história maravilhosa, como a dos mexicanos, e abandonar essa vida conflitivae inflamada”.
Essa necessidade de paz e estabilidade, no caso de Grossman, não está focada apenas sob um ponto de vista egoísta. Existe a preocupação pelo outro. “Acredito que os palestinos devam ter seu próprio país livre, independente e soberano. Têm de ter privilégios, não mais como palestinos, como seres humanos. Eu lhes desejo uma vida normal, que não sejam humilhados. Definitivamente, não posso tolerar que invadamos diariamente suas vidas”, afirmou o escritor, alguém que já percorreu os territórios palestinos e olhou nos olhos dos seus vizinhos.
Grossman e Vargas Llosa (Arequipa, 1936), dois dos mais celebrados escritores contemporâneos, inauguraram no âmbito da feira o Salão Literário Carlos Fontes, um encontro moderado pelo jornalista Juan Cruz. Uma vez acabado o debate, Silvia Lemus, viúva do escritor mexicano falecido no ano passado, homenageou com uma comenda os dois criadores, e estes fizeram o mesmo em relação ao autor de Aura ao falar de literatura.
O Nobel recordou o que pressupôs para ele, sendo um menino, ler Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, de Pablo Neruda. Leu às escondidas, porque sua mãe o tinha proibido, e isso não fez senão despertar ainda mais sua curiosidade. “Li: ‘Meu corpo de lavrador selvagem te escava e faz saltar o filho do fundo da terra’. Não sabia exatamente o que dizia, mas, por algum motivo, comecei a associar a leitura com o pecaminoso, o secreto, o proibido”, disse o peruano. Depois, descobriu a importância das formas com o norte-americano Faulkner, a quem lia com papel e lápis.
Cruz recordou a Grossman algumas palavras suas transcritas em 1990 pela revista Paris Review, nas quais dizia que escrevia para escapar da tristeza. O escritor israelense observou que tinha a impressão de se contradizer, mas que o que o faz se sentar e escrever tem mais que ver mais com a necessidade de se agarrar a uma forma de estar neste mundo. “A liberdade das pessoas consiste em escrever sua tragédia com suas próprias palavras. Tentam nos impor as palavras, mas é preciso se rebelar contra isso. O escritor se sente claustrofóbico nas palavras do outro”, salientou.
Se Grossman tinha torcido a cara na hora de falar de política, Vargas Llosa já havia feito isso antes, ao recordar que recentemente, ao abrir o The New York Times, leu que os departamentos de humanidades das grandes universidades tendem a diminuir pela falta de interessados. “Cada vez se tende mais a pensar que a técnica e a ciência podem mudar o mundo, enquanto que as humanidades são para os ociosos. (…) Isso nos levaria a uma sociedade de autômatos sem espírito crítico, que conduziria a uma realidade totalitária”, lamentou o escritor peruano.
Para concluir, Grossman – que já havia colocado o público no bolso – leu em hebraico um trecho de Fora do Tempo. Ninguém entendeu nada, nem era preciso. Todo mundo sentiu o que ele queria dizer.