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sábado, 16 de março de 2019

Vargas Llosa / Cidade imensa e triste

Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente



Mario Vargas Llosa

Cidade imensa e triste

No final dos anos sessenta criei muito carinho pela Inglaterra; fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal


16 MAR 2019

Vim a Londres pela primeira vez em 1967, para dar aulas no Queen Mary’s College. Levava uma hora de metrô de Earl’s Court para chegar à universidade e outra para voltar, de maneira que utilizava essas duas horas para preparar as aulas e corrigir os trabalhos dos alunos. Descobri que gostava de ensinar, que não o fazia mal, e que aprendia muito lendo, por exemplo, Sarmiento, cujo ensaio sobre o gaúcho Quiroga passou a ser desde então um de meus livros de cabeceira.



A Londres daqueles dias era muito diferente de Paris, onde morei nos sete anos anteriores. Na capital francesa se falava de marxismo e de revolução, de defender Cuba contra as ameaças do imperialismo, de acabar com a cultura burguesa e substituí-la por outra, universal, em que toda a sociedade se sentisse representada. Na Grã-Bretanha os jovens não se interessavam pelas ideias e pela política, a música passava a liderar a vida cultural, eram os anos dos Beatles e dos Rolling Stones, da maconha e das roupas extravagantes e chamativas, dos cabelos até os ombros e uma nova palavra, hippies, havia se incorporado ao vocabulário universal. Passei meus primeiros seis meses em Londres em um afastado e plácido distrito cheio de irlandeses, Cricklewood, e depois, sem querer e saber, aluguei uma casinha justamente no coração do universo hippie, Philbeach Gardens, em Earl’s Court. Eram bondosos e simpáticos, e lembro da surpreendente resposta de uma jovem a quem me ocorreu perguntar por que andava sempre descalça: “Para me libertar de minha família de uma vez!”.


Passava todas as tardes em que não tinha aulas na belíssima sala de leitura da British Library, que estava à época no Museu Britânico, escrevendo Conversa no Catedral e lendo Edmund Wilson, Orwell, Virginia Woolf. E, por fim, Faulkner e Joyce em inglês. Tinha muitos conhecidos, mas poucos amigos, entre eles Hugh Thomas e os Cabrera Infante, que foram por puro acaso morar a poucos metros de minha casa. No ano seguinte comecei a dar aulas no King’s College, que ficava muito mais perto de minha casa, onde tinha um pouco mais de trabalho, mas um salário melhor.
Naqueles anos criei muito carinho e admiração pela Inglaterra, e fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal. Esse sentimento aumentou tempos depois pelas coisas extraordinárias feitas por Margaret Thatcher no Governo. Nessa época já lia muito Hayek, Popper, Isaiah Berlin, e, principalmente, Adam Smith. Fui a Kirkcaldy, onde ele escreveu A Riqueza das Nações, e de sua casa só restava um pedaço de muro e uma placa, e no museu local as únicas coisas dele eram um cachimbo e uma pena de escrever. Mas, em Edimburgo, por sua vez, pude depositar um ramo de flores na igreja em que está enterrado e passear pelo bairro onde os moradores o viam vagabundear em seus últimos anos, distraído, apartado do mundo que o cercava, com seus estranhos passos de dromedário, totalmente absorto em seus pensamentos.
Em minha antiga moradia londrina, no final dos anos sessenta, não tínhamos televisão, mas sim um rádio, e saíamos somente uma vez por semana, nas noites de sábado, ao cinema e ao teatro, porque a senhora da Baby Minders que vinha tomar conta das crianças nos custava os olhos da cara, mas, apesar dessas dificuldades, acho que éramos bem felizes e é possível que, se não fosse por Carmen Balcells, teríamos ficado para sempre em Londres. Meus dois filhos e minha futura filha seriam três ingleses. Mas tenho certeza de que sempre teria me oposto ao Brexit e que teria militado ativamente contra semelhante aberração.
Eu me dava muito bem com meu chefe no King’s College, o professor Jones, especialista no Século de Ouro. Naquele final de ano acadêmico ele me propôs que, no seguinte, eu fosse uma vez por semana substituir um professor de espanhol em Cambridge que saía de férias, e aceitei. E, nisso, sem se anunciar, como uma tempestade impressionante, Carmen Balcells bateu na porta de minha casa.
Ela me foi apresentada por Carlos Barral em Barcelona, me explicando que se ocuparia de vender ao estrangeiro meus direitos de autor. Logo depois, a própria Carmen me contou que havia desistido de trabalhar na Editora Seix Barral porque a missão de uma agente literária era representar os autores contra o editor, e não o contrário. Se eu queria que ela fosse minha agente? Claro. As coisas haviam ficado mais ou menos assim.
O que veio fazer em Londres? “Ver você”, me respondeu. “Quero que você abandone imediatamente a universidade e a Inglaterra. E que todos vocês venham morar em Barcelona. O King’s College consome muito do seu tempo. Garanto que você poderá viver de seus livros. Eu me encarrego”.
É provável que eu tenha dado uma gargalhada e perguntado se ela estava louca. Viver de meus direitos de autor era um absurdo, porque eu levava dois ou três anos para escrever um romance e se precisasse fazê-lo em seis meses para alimentar meus dois filhos escreveria livros ilegíveis. Ainda não havia descoberto que quando Carmen colocava algo na cabeça era preciso fazer o que ela queria ou matá-la. Não existiam opções intermediárias. Lembro que discutimos por horas e horas, que me contou que García Márquez já estava em Barcelona, vivendo de seus livros; que ela viajou ao México para convencê-lo. E que não sairia de minha casa até eu dizer sim.
Ela me cansou e me derrotou. E nessa mesma tarde fui ver o professor Jones para dizê-lo que ia para Barcelona e que, daí em diante, tentaria viver de meus direitos de autor. Era um homem bem-educado e não me disse que eu era um imbecil fazendo semelhante disparate, mas vi em seu olhar que pensou nisso.
Não me arrependo de maneira nenhuma de ter dado ouvidos a Carmen Balcells porque os cinco anos que passei em Barcelona, entre 1970 e 1974, foram maravilhosos. Lá nasceu minha filha Morgana no hospital Dexeus e, graças a Santiago Dexeus, a vi nascer. Essa cidade se transformou, principalmente por Carmen e Carlos Barral, na capital da literatura latino-americana por um bom tempo, e lá voltaram a se encontrar e a se misturar os escritores espanhóis e hispano-americanos, que se evitavam desde a Guerra Civil. Nós que passamos aqueles anos na grande cidade mediterrânea não nos esqueceremos nunca do entusiasmo com que sentíamos chegar o fim da ditadura e a sensação reconfortante que era saber que, na nova sociedade democrática, a cultura teria um papel fundamental. Que sonhos de ópio!
A Espanha ainda não prestou a Carmen Balcells a homenagem que merece. Ela sozinha decidiu que, com suas grandes editoras e sua velha tradição de alta cultura, Barcelona deveria reunir muitos escritores latino-americanos e, juntando-os novamente com os espanhóis, unir a cultura da língua em um só território cultural. Os editores, pouco a pouco, começando por Carlos Barral, fizeram o que ela queria. Como eu, ela fez com que muitos escritores se instalassem em Barcelona, onde, naqueles anos, começaram a chegar os jovens sul-americanos, como antes a Paris, porque era lá que fazia sentido fantasiar histórias, escrever poemas, pintar e compor.
Desde o Brexit, a Inglaterra se desfez na memória e me senti profundamente decepcionado. Nesses dias, entretanto, talvez por estar velho, me lembrei com saudade dos anos que passei aqui e mais uma vez contradigo aquele poeta brasileiro de quem Jorge Edwards gostava tanto, que chamou Londres de “cidade imensa e triste” e disse de si mesmo: “Foste para lá triste e voltaste mais triste”.

domingo, 10 de julho de 2016

Vargas Llosa / ‘England your England’

Fernando Vicente

‘England your England’

Europa vai sofrer um descrédito considerável com o 'Brexit', mas o dano maior recairá sobre o Reino Unido com a ameaça de desmembramento e uma lenta decadência


MARIO VARGAS LLOSA
10 JUL 2016 - 10:16 COT

Vivi muitos anos em Londres e ali aprendi a admirar as virtudes inglesas: o pragmatismo que vacina seus cidadãos contra os fanatismos ideológicos, seu individualismo, base dos seus excêntricos, seu espírito tolerante e democrático, seu respeito pelas instituições, as leis e as tradições. Nos dias anteriores ao referendo estive lá e todas aquelas virtudes brilharam por sua ausência, tanto que me pareceu estar em outro país. Um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba, vertida em abundância pelos defensores do Brexit. Estes apresentavam a saída do Reino Unido da União Europeia como “a recuperação da independência da nação”, uma panaceia com a qual a Grã-Bretanha obteria a prosperidade e o absoluto controle de uma imigração que Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido, mostrava em um cartaz racista como uma invasão enlouquecida de subdesenvolvidos negros, mulatos, africanos e asiáticos, ao mesmo tempo em que o ex-prefeito de Londres Boris Johnson expressava seu temor de que a Turquia, cuja incorporação à Europa pressagiava iminente, teria o direito de inundar o Reino Unido com 78 milhões de turcos.
A demagogia, o nacionalismo mais chauvinista e estúpido, os preconceitos racistas pareciam ter transformado a Grã-Bretanha, da noite para o dia, em um paizinho terceiro-mundista. E essa impressão alcançou para mim seu apogeu quando Boris Johnson, o despenteado e falastrão líder conservador, batia o recorde de todas as mentiras protestando porque, segundo ele, os euroburocratas de Bruxelas –os inimigos a abater para devolver a liberdade ao Reino– gastavam os impostos dos esgotados cidadãos britânicos subsidiando as cruéis touradas na Espanha!




Enquanto os defensores do Brexit, com bom apoio dos meios de comunicação, inundavam o país com exageros, falsidades, calúnias e uma patriotada de cartazes e baixo estofo, os defensores de que a Grã-Bretanha continuasse na Europa –penso, sobretudo, no Partido Trabalhista– mostravam uma languidez e pessimismo tais, a começar por seu letárgico líder, Jeremy Corbyn (agora questionado por boa parte de seus camaradas, que exigem a sua renúncia por não ter defendido melhor a que era a política oficial do trabalhismo), que, seria possível dizer, se resignavam de antemão a uma derrota que pelo menos alguns deles secretamente desejavam. Não é de estranhar, por isso, que nas cidadelas operárias da Inglaterra o voto em favor da saída da Europa atropelasse o da permanência.
O único que defendia essa opção com energia era o primeiro-ministro David Cameron, ou seja, o mesmo que, com uma precipitação desnecessária e lamentável, convocou esse referendo, sem necessidade legal alguma, por um oportunismo político de circunstâncias, algo que pagou com o fim de sua carreira política –e um erro do qual dificilmente a história futura da Inglaterra o desculpará.



Grã-Bretanha se tornou um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba

E agora? A Europa vai sofrer um descrédito considerável com o distanciamento do Reino Unido, o país, vale a pena recordar agora mais do que nunca, que com heroísmo sem igual salvou o velho continente de Hitler e dos nazistas. E não só porque a Grã-Bretanha é a segunda potência industrial europeia, mas porque ela era, dentro da Europa, a defensora mais enérgica das políticas de livre comércio e da integração de todos os mercados do mundo. O triunfo do Brexit estabelece um péssimo precedente e é uma contribuição inestimável aos partidos, movimentos e grupúsculos antieuropeus, geralmente fascistoides, como a Frente Nacional, de Marine Le Pen, na França, a Alternativa para a Alemanha, a frente encabeçada por Geert Wilders na Holanda e aqueles que na Polônia, Áustria, Hungria e países escandinavos quiseram, em nome do nacionalismo, dar o golpe final à mais ambiciosa empreitada democrática do Ocidente nos tempos modernos.
Mas, provavelmente, como escreveu Chris Patten em um dos artigos mais lúcidos que li sobre os resultados do referendo britânico, o dano maior recairá sobre o próprio Reino Unido. Que a Grã-Bretanha desapareça, com a secessão da Escócia e da própria Irlanda do Norte– que, em consequência do Brexit, perderá suas fronteiras abertas com a República da Irlanda–, é uma perspectiva perfeitamente possível, sobretudo tratando-se da Escócia, onde mais de 62% dos eleitores defenderam a opção europeia.
Porém, mais grave ainda que seu possível desmembramento, o que ameaça agora a Inglaterra é uma lenta decadência, vítima de um nacionalismo político e econômico ultrapassado, que vai contra a tendência dominante no restante do mundo e, sobretudo, no Ocidente, uma tendência que precisamente o Reino Unido estimulou nos anos dos governos de Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair e que agora renegou de maneira pouco menos que suicida.



A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração

Uma análise superficial dos resultados do referendo mostra uma divisão geracional e intelectual inequívoca: os ingleses mais jovens e mais bem-educados, mais conscientes do risco que o isolamento significava para o seu futuro, votaram pela Europa; os mais velhos e menos preparados, pela saída. A nostalgia de um mundo que se foi e não vai mais voltar prevaleceu sobre o realismo; e preferir a irrealidade e os sonhos ao mundo verdadeiro só traz benefícios no campo da arte e da literatura; no da vida política e social, o mais comum é gerar catástrofes.
A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração, quando perceberem que sua vitória não vai impedir, nem diminuir um pingo sequer, a chegada dos temidos forasteiros, pois o que Orwell em um de seus melhores ensaios chamou ironicamente de England your England simplesmente já não existe, salvo na fantasia passadista de alguns sonhadores. (Em meio à campanha se descobriu, por exemplo, que o albiônico Boris Johnson, caudilho do nacionalismo britânico, tinha ancestrais turcos.) E que não é a União Europeia que traz essas ondas de imigrantes a suas praias, mas a necessidade que a Grã-Bretanha tem deles para prover os trabalhos que os ingleses já não fariam nem à força e as leis sociais que, com mais generosidade que realismo, foram feitas em épocas de bonança para favorecer essa imigração, que então parecia tão necessária. (Continua sendo, mais que nunca, se os países desenvolvidos aspiram a manter seus altos níveis de existência, embora as ramelas nacionalistas impeçam que se veja isso agora.)
Em O Leão e o Unicórnio, Orwell fala com muito carinho da Inglaterra e destaca, com justiça, as virtudes de sua gente comum, seu amor à liberdade, sua sobriedade, o respeito pelo outro, sua crença em que as leis foram feitas para favorecer o bem e o bom e que, portanto, têm de ser cumpridas. E resume assim suas ideias (cito de memória): “É um bom país, com as pessoas erradas no controle”. Lembrei muito desse belo ensaio nestes dias deprimentes. Porque se o “controle” da Inglaterra ficará agora nas mãos dos homens do Brexit, como pede o pequeno führer Nigel Farage, a terra de Shakespeare será, sim, transformada de tal modo que muito em breve nem sequer a boa mãe que a pariu a reconhecerá
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