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sexta-feira, 8 de abril de 2016

‘O Filho de Saul’, a um metro do inferno



‘O Filho de Saul’, a um metro do inferno

Filme, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, faz você sentir mais do que ver: o martírio de habitar o inferno e querer se manter de pé








Tratado por cima e por baixo, à direita e de cabeça para baixo, com grandiosidade e simplicidade, com ética e estética, até mesmo com esteticismo e sem ética, com justiça, com rigor, com ambiguidades, com poder didático, inclusive com humor, no cinema, o Holocausto, não raro com origem na literatura, parecia um assunto esgotado. Parecia. Até o húngaro László Nemes chegar e colocar o tema de pernas para o ar no último Festival de Cannes com seu O Filho de Saul —que agora é apontado como um dos favoritos a levar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Porque a mais terrível das tragédias do século XX é um tema inesgotável. Porque a atitude do ser humano é incompreensível.
Em questões de fundo, talvez, tudo tenha sido dito. Talvez. Mas, na forma, ainda havia um resquício, pelo menos. Um resquício brutal com base em uma das possibilidades do cinema: em vez de mostrar, tentar imiscuir, introduzir, envolver o espectador; não só mentalmente, mas também quase fisicamente. Literalmente, provocar na plateia a sensação de estar dentro de um quartel, de um corredor da morte, de um sumidouro moral, de uma guerra implacável, com o inferno dos outros e com o próprio. É o extraordinário O Filho de Saul, uma aposta na questão dotravelling como questão moral de Jean-Luc Godard, um antídoto à teoria da abjeção de Jacques Rivette, um gancho inteligentíssimo aos tabus de representação de Claude Lanzmann, diretor do documentário Shoah (1985).










‘O FILHO DE SAUL’


Direção: László Nemes.
Atores: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Sándor Zsótér.
Gênero: drama. Hungria, 2015.
Duração: 107 minutos.

O filme de Nemes atinge o objetivo através de três recursos aparentemente simples. Primeiro, um padrão de som hiper-realista no qual cada movimento, cada toque, cada grito, cada disparo, cada respiração, se pareça com uma facada no estômago de quem assiste ao filme. Em segundo lugar, uma câmera agilíssima, quase sempre por trás do protagonista, um judeu que trabalha em um dos fornos crematórios de Auschwitz, que se movimenta no ritmo de numerosos planos de sequência. E, em terceiro lugar, uma limitadíssima profundidade de campo, com menos de um metro em muitos momentos. Só importa o que está bem debaixo do nariz do personagem. Um procedimento que, ao mesmo tempo, funciona como recurso formal ético e metáfora de fundo. Porque a ambiguidade da atitude de Saul, pondo em perigo os vivos para honrar um morto, é o outro grande tema do filme. Nemes quer falar da impossibilidade de se ter uma visão global do campo de extermínio nessas condições, e isso é transmitido.
As críticas morais feitas do sofá de casa são fáceis. O terrível é estar lá e ter de agir, de tomar decisões. E isso é o que o filme apresenta; faz você sentir mais do que ver: o martírio físico e mental de habitar o inferno e querer se manter de pé.





EL PAÍS


‘O Filho de Saul’ / Como descrever o indescritível



quinta-feira, 7 de abril de 2016

‘O Filho de Saul’ / Como descrever o indescritível


‘O Filho de Saul’: como descrever o indescritível

Longa sobre o Holocausto, que concorre ao Oscar de filme estrangeiro, gera debate sobre limites da representação do horror


JOSÉ EMILIO BURUCÚA
12 FEV 2016 - 13:27 COT










É provável que nenhuma proibição cultural tenha motivos para ser respeitada além de certo tempo após o fenômeno, sem dúvida terrível, que a engendrou. A exceção a isso seria a ruptura simbólica do Quinto Mandamento de Moisés e dos dois maiores tabus da civilização – o parricídio e o incesto. Por ruptura simbólica seria preciso entender uma apologia, acima de tudo estética, da matança dos nossos semelhantes, das relações incestuosas ou do assassinato do pai. Isto não significa que as artes e o pensamento se abstenham de refletir sobre esses crimes ou de representá-los. Pelo contrário. A poesia, o teatro, as artes visuais, o cinema e o exame ético ou antropológico provaram-se os instrumentos mais eficazes para educar os seres humanos sobre o espanto racional que os atos bárbaros devem nos inspirar, em nome da continuidade da nossa vida social.
Entretanto, foi compreensível e até necessário que, ao escolher o Holocausto como matéria-prima, o ato estético tenha procurado evitar durante duas ou três gerações a abordagem ficcional do ocorrido nos campos de extermínio e sua representação em imagens, sobretudo a do núcleo infernal, o do abismo que devorou todo rastro do humano nas câmaras de gás. A premissa do filme húngaro Filho de Saul – que estreou no Brasil em 4 de fevereiro e é um dos favoritos a levar o Oscar de melhor filme estrangeiro – desobedece tanto o dictum de Adorno sobre a impossibilidade de fazer poesia depois de Auschwitz como a oposição tenaz de Claude Lanzmann a incluir em seu filme Shoah fotos ou cenas documentais tomadas nos Lager [campos de concentração]. Ambas foram formas quase coercitivas de expressar a certeza de que o respeito às vítimas exigia transformar tais precauções em mandamentos.
O ensaio de Georges Didi-Huberman intitulado Imagens Apesar de Tudo, sobre as fotos que Alex, um Sonderkommando (prisioneiro obrigado pelos nazistas a colaborar na execução e ocultação do extermínio de seus semelhantes), tirou do interior de uma câmara de gás para revelar à resistência polonesa e aos aliados o que estava ocorrendo em Birkenau, abriu uma polêmica entre o autor, um historiador da arte, e dois seguidores da postura de Lanzmann, Gérard Wajcman e Élisabeth Pagnoux. Foi tão áspero o debate que Didi-Huberman chegou a ser identificado com são Paulo, uma espécie de traidor irredimível da proibição de fabricar imagens. Sua resposta ao ataque foi contundente: a valentia e o risco enfrentado pelo Sonderkommando Alex, que fez as fotos para mostrar ao mundo fatos inconcebíveis que deveriam ser conhecidos, justificam não só nosso interesse em observar e compreender as imagens possivelmente mais perigosas da história como também nosso agradecimento reverencial por elas.









Talvez Filho de Saul passe a formar parte da série histórica de descrições infernais explícitas assumidas por Dante

A verdade é que já em 1955 – bem antes, portanto, desse debate travado nos anos 2001-2003 – o cineasta Alain Resnais e o músico Hanns Eisler, no filme Noite e Neblina, haviam quebrado o tabu das imagens e da metamorfose estética do Holocausto. Claro que agora Filho de Saul, que recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2015, foi muito mais longe ao inventar a história desse homem no último grupo de Sonderkommandos, rebelado contra as SS em 7 de outubro de 1944. O personagem Saul acredita reconhecer seu filho entre um dos cadáveres da câmara e busca para ele a redenção minúscula de celebrar o rito judaico do sepultamento.
O despontar de uma piedade absurda e deslocada é o tema deste filme de ficção, porque só um impulso, uma emoção, ou melhor, um paroxismo anímico dessa natureza parece concebível naquela circunstância. Além do recurso à poiesis[criação artística] em um marco histórico estrito, ou seja, uma ficção que ultrapassa por completo o documentário, László Nemes, seu diretor, um estreante de 38 anos, ambientou a trama no cenário mais recôndito, maldito e indescritível do devir humano. Mas nunca vemos esse espaço de tal modo a podermos percorrê-lo, desenhá-lo em nossas mentes, porque é mostrado fora de foco, em uma gama de verdes e ocres neutralizados no cinza, e porque a passagem de um ambiente a outro é sempre vertiginosa e caótica. Nem sequer os gritos e golpes nas portas da câmara – abafados sob as palavras que os personagens trocam – nos permitem captar pela audição as dimensões do lugar.
Quando a ação se transfere para o exterior, os incêndios e os uivos prevalecem nas visões noturnas. Claustrofobia, desintegração espaço-temporal, escuridão, fogo: acumulam-se os elementos da antiga fórmula infernal para representar os locais do massacre, os fios e nós da rede de palavras, metáforas, imagens e movimentos que, desde os tempos de Bartolomé de las Casas, os europeus utilizaram na hora de se referirem à destruição de seres humanos indefesos. Frei Bartolomé talvez tenha sido o primeiro escritor a conceber o disparate factível de um inferno vivido por inocentes, e pôde, então, comparar o aniquilamento dos povos com as violências imaginárias do reino do diabo.
Talvez Filho de Saul passe a formar parte da série histórica de descrições infernais explícitas assumidas por Dante, El Bosco, Beccafumi, Rubens e Milton, e das metafóricas de Joseph Conrad, Francis Ford Coppola e os romances sobre o ciclo da borracha na América Latina. Assim como estas, Filho de Saul constrói – apesar de, e também devido a, seu caráter estético – uma representação do verdadeiro ocorrido em um fenômeno de crueldade em massa e radical (o Holocausto, neste caso), capaz de competir com o relato historiográfico. Mas há algo mais. Os episódios diurnos na floresta nos preservam das visões infernais – como, por exemplo, a do final, quando os rebeldes do Sonderkommando buscam refúgio dentro de uma cabana semidestruída entre as árvores. A aparição fugaz de um menino rechonchudo e curioso no meio da natureza, que Saul contempla por um momento, corresponde a um menino de verdade ou é mais uma projeção ilusória do protagonista, um fantasma no sentido epicurista, um sósia do filho de suas fantasias cuja volta à vida vislumbrada substitui a multidão incontável de vítimas?










Creio que nesse caso a ruptura dos tabus representada por Filho de Saul vale a pena por dois motivos: primeiramente, por nos proporcionar um conhecimento válido, lúcido, coerente e impregnado de emoção de um momento paralisante da História, o Holocausto; e em segundo lugar, porque nos reconcilia com a esperança da recuperação de um sentido, graças ao regresso imaginário da figura do menino durante o repouso sob a cabana na floresta. Não há nele nenhuma falta de respeito para com os mortos. Atrevo-me a pensar que, pelo contrário, as vidas interrompidas dos Sonderkommandos reais terminaram de se configurar na narração fictícia sobre Saul e seus companheiros.
Pelo episódio sobre Elpenor contado por Homero na Odisséia, pelas respostas que, segundo Heródoto, Sólon deu a Creso a respeito da felicidade e da morte, pelo relato de são Lucas sobre o peregrino cujo reconhecimento completou o arco e o significado da existência de Jesus, sabemos que toda vida humana exige a representação completa outorgada a ela pelo fato de os sobreviventes poderem nos contar sobre as condições de sua morte, compreender sua passagem pela Terra, e construir, real ou simbolicamente, um monumento em sua memória. Filho de Saul é um passo na direção desse saber histórico e estético cada vez mais abrangente sobre a dor e a vergonha do Holocausto.









O longa húngaro constrói uma representação do verdadeiro ocorrido em um fenômeno de crueldade em massa e radical

Caberia expor uma terceira razão para dar as boas-vindas ao filme de Nemes. A produção nos permite realizar comparações (exercício que nós, historiadores, consideramos fundamental em nossa ciência) com outros relatos excêntricos do Holocausto, e com narrações de outros genocídios e assassinatos em massa sistemáticos de pessoas. Em tal operação também se leva a cabo a quebra de um terceiro tabu relativo ao Holocausto: a proibição de compará-lo aos demais massacres da era contemporânea. No campo da historiografia, apenas o israelense Omer Bartov se atreveu a superar essa imposição.
Em relação às representações excêntricas do Holocausto, me ocorre citar Maus: A Survivor’s Tale (Maus: História de um sobrevivente, em tradução literal), livro em quadrinhos de Art Spiegelman, e o filme A Vida É Bela (Roberto Benigni, 1997), premiado com o Oscar. Quanto às catástrofes humanas produzidas em outros contextos, a transformação em ficção e a exibição do perigo foram ferramentas básicas em filmes como Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999), sobre os desaparecimentos na Argentina; Valsa com Bashir (2008), animação de Ari Folman que trata dos massacres de Sabra e Chatila, ocorridos no Líbano em 1982; e ainda A Imagem que Falta (Rithy Panh, 2013), que combina documentários autênticos e personagens animados para nos contar de maneira comovente o genocídio do Camboja, indo mais a fundo do que havíamos presenciado na produção Os Gritos do Silêncio (Roland Joffé, 1984).

José Emilio Burucúa é historiador e escritor argentino. Junto com Nicolas Kwiatkowski, é autor deCómo Sucedieron Estas Cosas – Representar Masacres y Genocidios.
EL PAÍS



‘O Filho de Saul’, a um metro do inferno





quarta-feira, 6 de abril de 2016

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi






Primo Levi

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi

Escritor relatou sua experiência de Auschwitz em depoimentos para julgamentos de criminosos



Como ocorre com outros grandes escritores que relataram sua experiência de sobreviventes do Holocausto, como Elie Wiesel e Imre Kertèsz, o valor da obra do italiano Primo Levi vai muito mais além do literário (mesmo sendo imenso nesse terreno). A era dos que presenciaram a Shoah está prestes a acabar. Os últimos sobreviventes, e também os últimos carrascos, vão pouco a pouco se apagando e a memória desaparece com eles. Por isso obras com a Trilogia de Auschwitz são mais importantes do que nunca: somente através da leitura dos relatos dos que lá estiveram é possível tentar entender, mesmo remotamente, o horror incompreensível do nazismo e do Holocausto, cujo dia internacional se comemora nesta quarta-feira.

Primo Levi (1919-1987) escreveu também uma série de relatórios para diferentes instituições e para prestar depoimentos em processos penais contra criminosos de guerra, nos quais descreve sua passagem pelos campos da morte, que acabam de ser resgatados em um volume, Assim foi Auschwitz (Editora Península, na tradução ao espanhol de Carlos Gumpert; e traduzido ao português pela Companhia das Letras). Secos, quase sem adjetivos, carregados de horror, uma leitura que é difícil de esquecer.
Primo Levi

Químico de formação, o escritor de Turim foi membro da resistência italiana. Em um obscuro episódio resgatado recentemente por Sergio Luzzato em seu livro Partisanos, sua brigada executou dois homens acusados de roubo, mas tudo indica que Levi não participou diretamente. Em setembro de 1943 foi preso pela polícia fascista e, ao se declarar judeu, ao invés de ser imediatamente executado por ser guerrilheiro, foi deportado a Auschwitz. Sobreviveu graças ao seu ofício de químico e a grandes doses de força e sorte no campo satélite de Monowitz (Auschwitz III). Nesse local eram colocados os que, como relata o próprio Levi, estavam condenados a ser exterminados ao longo de vários meses com o trabalho escravo, não imediatamente nas câmaras de gás.
Ao voltar dos campos escreveu É isso um Homem?, um dos livros mais importantes do século XX que, entretanto, demorou muito tempo a encontrar um editor, talvez por ser ainda muito cedo para que a sociedade enfrentasse a magnitude do ocorrido durante a noite do terror nazista. A Trilogia de Auschwitzse completa com A trégua e Os afogados e os sobreviventes, apesar de Levi também ter escrito livros muito diferentes como A tabela periódica e Se não agora, quando? sobre um grupo de guerrilheiros. Em 11 de abril de 1987 se suicidou atirando-se da escada de sua casa em Turim.
A obra de Levi obteve um impacto gigantesco e pode-se dizer que passou a fazer parte da memória do horror da humanidade. Nunca deixou de ser traduzida, reeditada e, sobretudo, lida. Suas obras completas acabam de ser publicadas em inglês, com um prólogo de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel. Em uma das resenhas, publicada no The New York Review of Books, o tradutor, romancista e especialista em literatura italiana Tim Parks escreve que “Levi sempre quis colocar o leitor diante do Holocausto com toda a crueza, sem jamais lhe oferecer uma zona de conforto”. Este princípio se aplica especialmente aos documentos contidos em Assim foi Auschwitz, vários deles escritos em parceria com seu amigo, o médico Leonardo De Benedetti, com quem compartilhou o cativeiro.
Primo Levi

“Informe sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz”, o texto central do volume, escrito a pedido do Exército soviético, é um dos primeiros relatos que descrevem o sistema de funcionamento de Auschwitz, desde a atuação dos Sonderkommando, os internos obrigados a cuidar das câmaras de gás, e os crematórios que aparecem no impactante filme O filho de Saul, até a anulação da vontade dos prisioneiros, que se tornavam zumbis capazes apenas de esperar a morte, a fome e o castigo. Também é devastador quando descreve a procedência dos presos com quem compartilhou aquele campo satélite de Auschwitz: judeus de toda a Europa, de todos os ofícios e classes sociais, arrastados pelos nazistas até os confins da Polônia para serem assassinados.
São também muito interessantes seus testemunhos para diferentes processos, entre eles o de Adolf Eichmann, sobre o qual Hannah Arendt escreveu sua famosa teoria da banalidade do mal. Naqueles textos, alguns muito precoces, tanto De Benedetti como Levi já consideravam que a responsabilidade do horror “recai de forma coletiva sobre todos os soldados, suboficiais e oficiais das SS ali atuantes”. Nos últimos dois anos vários guardas de Auschwitz foram processados na Alemanha com base nesse mesmo princípio: o fato de terem trabalhado no campo de extermínio, independentemente do cargo ou da missão, já é um crime em si. Levi também denuncia um assunto crucial: o papel da indústria alemã no trabalho escravo. “Os campos não eram um fenômeno marginal: a indústria alemã se baseava neles; eram uma instituição fundamental da Europa marcada pelo fascismo e parte dos nazistas não escondia que o sistema se manteria, melhor dizendo, se estenderia e se aperfeiçoaria”. São textos que carecem da intensidade literária de É isso um homem?, mas que colocam o leitor diante do horror, sem concessões ou filtros, só com a memória de uma testemunha.








INESGOTÁVEL HOLOCAUSTO


Em um de seus textos, Levi lamenta que “a dez anos da libertação dos campos de concentração é triste e significativo ver-se obrigado a constatar que, na Itália pelo menos, o tema dos campos de extermínio, longe de terem virado história, se encaminha ao mais absoluto esquecimento”. É uma das poucas coisas sobre as quais o escritor italiano se engana: 70 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Shoah continua sendo objeto de atenção constante em novos livros e filmes.
Em 2015, foram publicadas duas obras muito importantes, KL. A história dos campos de concentração (publicada na forma de e-book no Brasil), de Nikolaus Wachsmann, e Terra negra (Galaxia Gutenberg, ainda não editado no Brasil), enquanto em 15 de janeiro estreou na Espanha O filho de Saul, um filme do húngaro László Nemes que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes (estreia prevista para fevereiro de 2016). O filme acompanha um membro do Sonderkommando e tenta refletir o horror de Auschwitz aos olhos de um prisioneiro. O filme obteve um enorme impacto e revitalizou a interminável polêmica sobre a legitimidade de narrar o holocausto por meio da ficção.

EL PAÍS




terça-feira, 5 de abril de 2016

Josef Mengele / As últimas horas do monstro nazista no Brasil


As últimas horas 

do monstro nazista no Brasil

Ex-cabo da Polícia Militar brasileira revela, 35 anos depois, detalhes da morte de Josef Mengele no litoral de São Paulo


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Na pequena cidade de Bertioga, no litoral do estado brasileiro de São Paulo, um monstro nazista vivia seus últimos momentos há 35 anos. De forma bem diferente da que muitos imaginariam após a descoberta de suas atrocidades, ele morreu em um banho de mar, possivelmente devido a um ataque cardíaco.Talvez o nome Josef Mengele, ou mesmo o seu apelido, Anjo da Morte, possam soar desconhecidos para as novas gerações. Mas o seu trabalho como médico do regime de Adolf Hitler simbolizou como poucos os horrores dos campos de concentração.
Um homem em particular jamais esquecerá o dia 7 de fevereiro de 1979. O brasileiro Espedito Dias Romão, então com pouco mais de 30 anos, era cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo e chegou ao local da ocorrência na praia da Enseada, próxima ao centro comercial de Bertioga, logo depois. No fim de uma tarde de sol, ele diz ter recebido uma chamada informando sobre um corpo na praia. Ao chegar ao local em uma viatura, ele afirma ter visto uma pequena aglomeração em volta de um senhor na areia.
Tratava-se do austríaco Wolfgang Gerhard, segundo constava na modelo 19, um documento antigo de identificação de estrangeiros no Brasil. “Quando cheguei, o corpo estava estirado na faixa de areia. Tudo indicava que ele foi retirado do mar já sem vida. Era um senhor bem branco e de bigode, e que não apresentava sinais de afogamento comuns, como vômitos e água expelida pelas laterais e pela boca. Fui levado a pensar que se tratava de um caso de mal súbito”, conta.
No boletim de ocorrência lavrado logo após a morte, e que apontava como naturezas do óbito um mal súbito e afogamento, informava-se que Wolfgang tinha 54 anos, era viúvo, trabalhava como técnico mecânico e residia no bairro do Brooklin Novo, em São Paulo. “Segundo apurado entre as testemunhas, a vítima banhava-se no mar, sentiu-se mal, vindo a perecer afogada, embora socorrida por populares”, afirma uma cópia do documento mostrada por Dias ao EL PAÍS.
Wolfgang era, na verdade, Mengele, segundo revelaria um intenso trabalho de pesquisa científica anos depois, mas que, ainda hoje, levanta polêmicas e suscita teorias de que o médico nazista teria como destino outros países, inclusive os Estados Unidos. Aquele homem encontrado morto na pequena Bertioga era um dos criminosos mais procurados do mundo desde o fim da Segunda Guerra, e teria passado por outros países da América Latina, como a Argentina, antes de aportar no Brasil.
Como médico em Auschwitz, além de capitão da força nazista SS, Mengele foi um dos responsáveis pela seleção dos prisioneiros que seguiriam para o trabalho forçado e os que morreriam nas câmaras de gás. Suas experiências em seres humanos, sobretudo crianças gêmeas judias e ciganas, foram responsáveis por alguns dos capítulos mais desumanos do século XX.
A morte de Mengele não foi presenciada por muitas pessoas no Brasil, ainda de acordo com o ex-cabo da PM. Não havia quase ninguém na praia no momento da ocorrência. Bertioga, que era um distrito da cidade de Santos até obter sua emancipação em 1991, possui atualmente cerca de 50 mil habitantes. Na época, Dias estima que o número de moradores se aproximasse de seis mil. “Estava tudo praticamente deserto e o mar, calmo. Parecia que só havia os três na Enseada”, recorda.
O ex-cabo da PM se refere, assim, ao casal de austríacos que acompanhava Mengele no passeio, Wolfram e Liselotte Bossert. Os três dividiam uma casa de temporada localizada a cerca de quatro quadras da praia, em uma área não asfaltada, ainda de acordo com Dias. Liselotte acabaria sendo processada em 1985 por falsidade ideológica no Brasil, após apresentar o documento falso de identidade de Mengeleno dia do óbito. Wolfram, por sua vez, é apontado como um ex-oficial do Exército nazista que morava no Brasil desde a década de 1950.
“O (Wolfram) Bossert acabou sendo levado para o Pronto Socorro por conta do esforço para tirar o Wolfgang da água. E ele tinha uma estrutura óssea bastante forte”, comenta Dias. O corpo de Wolfgang, por sua vez, foi encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) de Santos para a realização de exames complementares. A causa oficial da morte segue um mistério.
Wolfgang acabaria enterrado no dia seguinte no cemitério do Rosário, na cidade de Embu, na região metropolitana de São Paulo.

Reviravolta

Em 1985, no entanto, uma reviravolta marcou o caso registrado por Dias naquela tarde ensolarada de fevereiro. A dimensão do fato assumiu contornos históricos e atraiu a atenção de diversos meios de comunicação brasileiros e internacionais. “Um repórter me ligou e começou a perguntar se havia sido eu quem tinha atendido uma ocorrência em 1979. Daí para frente tudo começou a vir à tona.”
Ele conta que teve início uma grande busca de informações a respeito do caso, inclusive por parte dos peritos, que acabariam exumando os ossos de Mengele - análises feitas através de exames de DNA confirmariam, em 1992, que os restos mortais seriam mesmo do monstro nazista. Entre inúmeras entrevistas concedidas, Dias foi convocado para relatar a ocorrência à Polícia Federal em São Paulo. O ex-cabo da PM lembra que, com a enorme repercussão do caso no Brasil e no exterior, Bertioga alterou sua rotina na época.
“A cidade, que era mais tranquila, pacata, sofreu um impacto muito grande”, diz. “Eu ficava pensando depois quantas vezes ele (Mengele) pode ter passado por mim ainda em vida”, acrescenta. Isso porque Dias havia trabalhado também em uma base da PM em um dos pontos de entrada da cidade, a balsa que a liga ao município do Guarujá.
Hoje, o ex-cabo é chefe de fiscalização do setor de trânsito e transporte do município de Bertioga, após entrar na reserva da PM como primeiro-sargento. Aos 68 anos, o mineiro que chegou à cidade ainda no fim da década de 1960 como policial rodoviário, se dedica aos desafios da ocupação do sistema viário. E, de forma singela, mas ao mesmo tempo muito objetiva, resume o seu sentimento em torno do caso Mengele, antes de retornar à sua ocupação pública.
“Fica o sentimento de compaixão das pessoas que perderam a vida de forma tão trágica. Hoje o mundo é um lugar melhor.”