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domingo, 10 de maio de 2020

Little Richard / O músico que libertou a música dos tabus



Little Richard



Little Richard

O músico que libertou a música dos tabus

Pioneiro do gênero, idolatrado pelos Beatles a David Bowie, inspirou uma geração que sem ele não teria trilhado o caminho da liberdade pregado pelo rock n’roll



Diego A. Manrique
09 May 2020

O rock n’roll, quando se manifestou em meados da década de cinquenta, trazia promessas de libertação. No entanto, Little Richard, que morreu neste sábado aos 87 anos, já tinha sido libertado quando os holofotes se voltaram para ele. Nascido em Macon, no Estado da Geórgia (EUA), em 1932, cresceu em uma família numerosa com fortes crenças religiosas. Exuberante demais para um meio tão pacato, foi expulso de casa quando ainda era adolescente. E não voltou até completar vinte anos, depois do assassinato do pai, quando teve de contribuir com o orçamento familiar, mesmo que fosse lavando pratos na rodoviária de Macon (por outro lado, um bom lugar para paquerar, reconheceu).

Little Richard


Naqueles dias, um homossexual podia se integrar sem problemas ao submundo dos “medicine shows” (espetáculos em que charlatães vendiam “remédios milagrosos”) e das casas noturnas mais libertinas do chamado chitlin’ circuit. Gravou discos avulsos para a RCA e a Peacock quando ainda não tinha um estilo definido: para conseguir essa diferenciação foram essenciais os ensinamentos de Esquerita, um selvagem do piano vindo da Carolina do Sul, que também dominava as artes da maquiagem, dos penteados e da indumentária de fantasia.

Richard Wayne Penniman tinha uma banda própria eficaz, os Upsetters, mas o selo californiano Specialty exigiu que gravasse em Nova Orleans. Lá, no agora mítico estúdio de Cossimo Matassa, sob a direção de Bumps Blackwell, com instrumentistas que trabalhavam regularmente para Fats Domino, aconteceu uma espécie de fusão nuclear: Tutti Frutti (1956), com seu delirante grito de “A-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom”, que mais tarde daria título a um livro memorável de Nik Cohn.

Little Richard


Tutti Frutti foi ofuscada, como era habitual então, pela versão asseptizada de um cantor branco, Pat Boone. Mas entre 1956 e 1957 Little Richard estava incandescente: a cada poucas semanas lançava singles irresistíveis, frequentemente reforçados por lados B ―Slippin’ and Slidin, Ready Teddy― que também alcançaram enorme popularidade. Seus shows eram terremotos e algo disso se nota em Sabes o que Quero, um filme disparatado que misturava Jane Mansfield com algumas das figuras do emergente rock n’roll. Sem explicitá-lo, pregava a possibilidade de ser sexualmente diferente. Do outro lado do Atlântico, um futuro camaleão, David Bowie, entendeu imediatamente a mensagem.


Tudo mudou de rumo em 1957, em uma turnê pela Austrália, quando durante um voo noturno achou que tinha visto uma luz celestial ―segundo seus companheiros, poderia ser o combustível do próprio avião ou inclusive do Sputnik soviético― algo que interpretou como uma mensagem divina que o instava a se arrepender dos pecados e voltar à música de igreja. A verdade é que a gravadora continuou lançando avassaladoras canções profanas, como Good Golly Miss Golly e Oh My Soul. Somente em 1959, depois de se formar pregador batista em uma escola no Alabama e de se casar com Ernestine Harvin, começou a gravar gospel. Sem muita sorte, apesar de ter produtores como Jerry Wexler e Quincy Jones.

Os Beatles o salvaram da irrelevância. Idolatrado especialmente por Paul McCartney, os ingleses interpretaram temas dele (ou que haviam descoberto em sua voz, caso de Kansas City). Pouco a pouco Little Richard entendeu que podia ganhar a vida no nascente circuito da nostalgia, onde só precisava recriar seus sucessos e exagerar seus maneirismos. Não tolerava concorrentes: desistiu dos serviços guitarrísticos de um ainda desconhecido Jimi Hendrix por sua espetacularidade cênica. Anos depois, tampouco teria conexão com Prince, que era visualmente seu descendente.

Little Richard




Mas Little Richard acreditava ser capaz de fazer música do momento, especialmente soul. Embora não tenham ocupado o topo das paradas se sucesso, durante os anos sessenta e início dos setenta, já instalado em Los Angeles, fez grandes canções com Don & Dewey, Johnny Guitar Watson, H. B. Barnum, Don Covay e ―o mais perigoso de todos― Larry Williams. Como contaria em sua fantasiosa biografia, Quasar of Rock, é quase um milagre que Richard e Williams tenham evitado sérios aborrecimentos com policiais, traficantes e amantes despeitados.

Houve recaídas nas drogas e em sua muito flexível religião, até que em meados dos anos oitenta estabeleceu-se em Hollywood. Conseguiu fazer pontas em filmes de sucesso e se transformou em algo como o pastor favorito das celebridades, especializado em unir casais em matrimônio, com ambientação de rock n’roll. Podia entender melhor as extravagâncias dos milionários californianos do que os jogos do glam rock a partir da identidade sexual. De fato, durante temporadas detestou seu papel de ídolo gay: “Fazia isso para que os brancos aceitassem que era capaz de comover suas namoradas”.

Diante da indiferença do mercado, abandonou a gravação de discos, mas não os shows. Pude vê-lo em ação em um festival realizado em Gijón (Espanha) em 2005, quando esgotou a paciência dos organizadores ao exigir as chaves de uma igreja onde pudesse rezar em solidão. Para ir do camarim até o palco pediu um carro de luxo que chacoalhava por um terreno montanhoso, sem estradas. É verdade que, uma vez que encarou o público, parecia entrar em combustão. Como seus espectadores, que sentiram seus corpos renascerem. Esse era o verdadeiro prodígio do reverendo Penniman.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

A vida secreta de Louis Armstrong


Louis Armstrong

A vida secreta de Louis Armstrong

A Casa Museu do trompetista digitalizou suas coleções, revelando facetas desconhecidas de Satchmo


DIEGO A MANRIQUE
Madri, 29 Dez 2018


Poucos artistas foram mal interpretados como Louis Armstrong (1901-1971), conhecido como Satchmo. Sua imagem pública era a do negro risonho, cantando com uma boca grande e dentes branquíssimos, disparando rajadas de trompete e secando o suor com um lenço. Onipresente durante cinco décadas, chegou aos primeiros lugares inclusive nos anos sessenta, com canções adoráveis como Hello Dolly e What a Wonderful World. No entanto, e foi tão revolucionário em seu tempo quanto Jimi Hendrix: com suas gravações dos anos vinte, transformou uma música grupal (o hot, o primeiro jazz) em expressão de solistas intrépidos, de grande talento físico e criatividade inesgotável.

Tão suave acabou sendo sua reputação que causa certa surpresa verificar que por trás dessa imagem havia uma pessoa briguenta e curiosa. Já sabíamos de alguma coisa, graças a sua extensa bibliografia, mas agora podemos ver a que Louis Armstrong se dedicava em seu tempo livre. Sua Casa Museu digitalizou cartas, fotografias, manuscritos, colagens, partituras, livros de recortes e outros documentos aos quais se pode ter acesso de qualquer parte do mundo (www.louisarmstronghouse.org).
Armstrong vivia em uma casa modesta no bairro de Corona, no distrito nova-iorquino do Queens. Sua quarta esposa, Lucille, com quem conviveu por trinta anos, teria preferido um endereço mais elegante, mas Louis apreciava as vantagens de estar rodeado por sua gente. Ali ninguém se escandalizava que Pops, como o chamavam, fumasse maconha, um “hábito medicinal” que causava consternação em admiradores brancos (e puritanos) como o produtor John Hammond. Diz a lenda que, em 1953, encontrou Richard Nixon na pista de um aeroporto. O então vice-presidente o respeitava: carregou uma de suas malas e o conduziu para a entrada das autoridades, evitando sua passagem pela alfândega. Sem saber, Nixon tinha autorizado o contrabando de Armstrong.
Riscos que Louis assumia conscientemente (só foi detido pelo consumo de erva em Los Angeles, depois da denúncia de um concorrente, e se saiu bem do incidente). Tinha vivido situações muito mais difíceis nos anos vinte e trinta, quando atuava em clubes controlados por mafiosos que — como no caso de Al Capone — até podiam apreciar o jazz, mas exigiam que os músicos atendessem suas exigências. A solução foi aliar-se a um deles, Joe Glaser, que o representou até morrer em 1969.


O estúdio de Louis Armstrong em sua casa no Queens, Nova York.
O estúdio de Louis Armstrong em sua casa no Queens, Nova York.  AFP/GETTY IMAGES


Louis não era bobo nem inocente, como muitos acreditavam. Muito consciente de sua relevância artística, tentava analisá-la redigindo suas lembranças e opiniões. Escrever lhe permitia enriquecer o personagem que se apresentava ao vivo. Ali tudo eram risadas e caretas; sozinho, refletia sobre suas vivências. Dedicado e muito exigente consigo mesmo, mostrava-se tolerante com os vícios e caprichos de seus colegas.
Desenvolveu uma escrita que refletia seu domínio da gíria do mundinho do jazz e explicitava suas crenças mais profundas. Assim, era um defensor da aliança entre negros e judeus, duas minorias que se irmanaram de forma harmoniosa, pelo menos até o surgimento do movimento Black Power. Apesar de viajar com uma máquina de escrever, em sua casa gravava a si mesmo com gravadores de fita aberta. Anos depois, quando John Lennon soube disso, imitou a ideia.
Armstrong passava para a fita muitos discos de sua coleção, incluindo registros piratas dos insurgentes do be-bop; sabia que o criticavam, mas não podia deixar de reconhecer a intensidade expressiva de Charlie Parker e companhia. Louis adorava trabalhar como locutor de rádio. Era um disc jockey erudito e veemente: no meio do “programa” podia se por a discutir afirmações de companheiros já falecidos, como o pianista Jelly Roll Morton, formidável ambicioso, que alardeava para si os méritos que correspondiam a Armstrong, como a popularização do scat (improvisação vocal com vocábulos inventados).
Também usava seus aparelhos para gravar entrevistas com jornalistas em quem não confiava. Recordava experiências ingratas com redatores a quem tinha proporcionado informação com generosidade (e, em algum caso, pequenas quantidades de dinheiro) e que depois não cumpriram o prometido. Como o jazz tinha uma reputação duvidosa (Armstrong guardava o recorte de um jornal britânico no qual era descrito como “um gorila”), o reflexo midiático favorável era uma necessidade básica.
Com cola e tesoura, Armstrong fazia colagens que revelavam seus gostos e preocupações. Apareciam, por exemplo, figuras políticas que combatiam o apartheid norte-americano. Tinha conhecimento suficiente dos mecanismos de Washington para entender que seu simpático amigo Nixon não foi o responsável por enviar tropas federais a Little Rock, capital do Arkansas, para garantir a entrada de estudantes negros em um colégio reservado a brancos: Louis mandou um telegrama efusivo de felicitação ao presidente Eisenhower, depois de ter declarado que o persistente racismo sulista tornava difícil agir como embaixador dos Estados Unidos nas turnês pelo exterior organizadas pelo Departamento de Estado.
As colagens funcionavam também como lista de ícones musicais. Incluía instrumentistas brancos como Bix Beiderbecke, prodigioso trompetista de origem alemã que faleceu aos 28 anos. Sua presença merece ser destacada, já que Bix vinha de uma boa família e isso, para Louis, era um inconveniente: acreditava que a pobreza funcionava como estímulo para a criatividade.
No entanto, convertido em presença habitual em programas de televisão e comédias de Hollywood, ficou marcado com o estereótipo do Pai Tomás. Sabia que era injusto e que um dia as particularidades de sua trajetória seriam reconhecidas. Durante as gravações de seu último LP, um de seus colegas mais ariscos apareceu no estúdio: Miles Davis. Mas para Davis era claro: “No trompete de jazz, não há nada que não venha de Louis”.


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Aretha Franklin / Casaco de vison, pés de porco


A cantora Aretha Franklin
 

Casaco de vison, pés de porco

Aretha Franklin teve uma fase extraordinária, mas depois seus dotes foram desperdiçados


17 ago 2018

Esta história da Aretha Franklin ocorre num hotel de luxo nova-iorquino. A cantora entra no saguão, com suas joias e seu casaco de vison; saiu para fazer compras e segura contra o peito uma sacola grande de papelão. De repente, a sacola arrebenta e seu conteúdo se esparrama pelo piso encerado. Funcionários e clientes ficam horrorizados. São miúdos de animais: tripas, focinhos, orelhas, pés de porco. Como se não fosse com ela, Aretha continua andando até o elevador e, sem olhar para trás, sobe para sua suíte.

Nesse relato intuímos a verdadeira Aretha. Uma estrela capaz de se dedicar a cozinhar a saborosa comida do sul dos EUA, a chamada soul food, em um hotel de Manhattan. E também a diva altiva, preparada para ignorar os desastres causados por seus modos imperiais. O apreço pelo autêntico revela a profundidade de suas raízes, esse poço de gospel ancestral – sem esquecer o blues – que ela utilizava para exorcizar suas dores íntimas.
E havia também a superestrela. Ela usava suas exigências como lembretes da sua natureza sobre-humana. Inimiga do ar condicionado, fazia sofrerem os privilegiados que haviam pagado quantidades absurdas para vê-la ao vivo. Sua fobia de avião era a desculpa perfeita para frustrar os empresários europeus, que alegavam inutilmente que também era possível cruzar o Atlântico de navio.
Europa sempre foi uma solução para artistas afro-americanos em momentos delicados da sua carreira. Mas Aretha não procurava a respeitabilidade dos palcos britânicos e franceses. Ela jogava em outro time, o do show business norte-americano, em tempos nos quais eram poucas as mulheres que aspiravam à Primeira Divisão. A rivalidade se estabelecia em cifras de vendas, condições dos contratos, honras oficiais, inclusive em aspectos intangíveis que só elas podiam avaliar.
Entretanto, não se discutiam os méritos musicais. E é possível que nisso também Aretha levasse vantagem. Conforme reconheceu Jerry Wexler, um dos hipstersda Atlantic que pilotaram seu grande lançamento em 1967, ela era perfeitamente capaz de produzir-se a si mesma, e de fato o fez em muitas de suas gravações. Só que Wexler e companhia não lhe davam crédito, supostamente para que não lhe subisse à cabeça.
Uma desculpa péssima, que oculta a luta por royalties de produção e o desejo inconfessável de se aproveitar das inseguranças de Aretha. Como qualquer outra cantora, ela necessitava de desafios e de competidores musicais à sua altura, como evidenciou em Sparkle, o LP de 1976 no qual colaborou com Curtis Mayfielfd.
A partir de 1980, depois de sua contratação pela Arista, Aretha se habituou ao automatismo de trabalhar com produtores acomodados, como Narada Michael Walden, Luther Vandross e Michael Powell – que dizia ter o segredo do sucesso: bastava que ela entrasse com sua voz monumental. Era o início da era dos duetos, que caíam nas graças dos programadores das rádios e geravam sucessos meia-boca. Pode-se sonhar que algum dia montarão um tribunal de Nuremberg para julgar os responsáveis por juntá-la com Puff Daddy e Kenny G.




domingo, 16 de outubro de 2016

Bob Dylan, 75 anos / A lenda continua na estrada

Bob Dylan
Foto de Ken Regan
Poster de T.A.

Bob Dylan, 75 anos: a lenda continua na estrada


Músico americano mantém uma projeção invejável e uma carreira imprevisível. Sua única constante é a paixão pelo ao vivo: faz cerca de cem shows por ano


DIEGO A. MANRIQUE
Madri 24 MAI 2016 - 13:59 COT

Bob Dylan chega nesta terça-feira aos 75 anos com a cabeça bem erguida. Recebido na Casa Branca, é citado por juízes e filósofos. Acumula reconhecimentos suficientes para se dar ao luxo de ir receber os prêmios... ou não. Até mesmo Duluth, a cidade de Minnesota onde nasceu, promove uma reconciliação com o filho ingrato. E surge até uma nova oportunidade na ficção audiovisual, já que, com patrocínio da Amazon, a produtora Lionsgate prepara uma série baseada na sua obra.
modus operandi de Dylan não tem nada de normal, mas é amplamente aceito. Desde 1988, ele faz cerca de cem shows por ano. Não age assim por imperativos econômicos, como tantos veteranos da canção, já que os direitos autorais e a participação no lucro dos seus discos lhe permitiriam se aposentar ou dosar suas aparições. Trata-se mesmo de uma opção pessoal: Dylan entende sua existência como uma atualização do ofício do trovador, em perpétuo movimento, mas fechado em sua bolha.
Dylan entende sua existência como uma atualização do ofício do trovado. Faz cem shows por ano
Seu posicionamento inclui também a reinvenção do seu repertório. Nada fez tão mal à sua reputação como os persistentes maus tratos à sua obra ao vivo, agravados por suas carências vocais. Pode-se suspeitar que tampouco Dylan se sinta muito seguro quanto aos seus frutos, já que, após quase trinta anos da sua Never Ending Tour, ele não lançou nem um só álbum gravado ao vivo, apenas singles. Parece haver certo equilíbrio entre as suas misteriosas necessidades criativas e as expectativas do seu público.
Poucos artistas mantêm uma relação tão antagônica com seus primeiros seguidores. Só é possível conceber essa tensão se assumirmos que Dylan foi muito mais que um cantor: nos anos sessenta, carregava a tocha que iluminava a insurgência geracional. Na primeira oportunidade, rejeitou o papel de profeta(algo perfeitamente compreensível, considerando o fim que tiveram Malcolm X, Robert Kennedy e Martin Luther King), o que gerou uma sensação de orfandade entre seus fiéis. Com o tempo, esses discípulos aceitaram a contragosto algumas das suas guinadas: a aproximação com o country, o valor musical dos seus coléricos discos de cristão fundamentalista.
Mas sobra uma ponta de rancor. Felizmente para Dylan, seu rebanho foi se renovando. Incorporaram-se fãs de gerações seguintes, que não compartilham dessa sensação de terem sido traídos nem fazem comparações com o Dylan imperial (1965-66). Livrou-se assim de processos revisionistas: as luminares do feminismo passaram a ignorar seus venenosos retratos das mulheres, tão desprezados nos anos sessenta, enquanto Mick Jagger foi triturado pela misoginia das canções que fazia nessa época.
Dylan alcançou um extraordinário grau de liberdade: move-se nas sombras, restringe as entrevistas, evita se comprometer. Um exemplo de sua ductilidade: o homem que se gabava de ter liquidado o negócio do Tin Pan Alley (a fábrica de standards que nutria crooners e cantoras sentimentais) agora pode se permitir a oferecer sua visão do chamado Grande Cancioneiro Americano.
Rebobinemos! Em 1985, durante uma entrevista por ocasião do lançamento da caixa Biograph, ele alardeava que “o Tin Pan Alley já não existe mais; eu acabei com aquilo”. Aqueles mestres das letras e melodias cederam ao modelo de Dylan, que primava pela autoexpressão e não reconhecia limites em temos de temática ou linguagem. Essa aposentadoria forçada foi uma catástrofe cultural, mas Bob hoje acena com a bandeira branca, ao lançar sua segunda coletânea de standards, unidos pelo tênue fio de terem sido cantados por Frank Sinatra.

Caprichos de estrela

Esses caprichos foram facilitados por sua decisão, em 2001, de se autoproduzir, sob o pseudônimo de Jack Frost. Eliminava assim sua maior dor de cabeça: os sucessivos choques com produtores que pretendiam modernizá-lo. Acelerava o processo de gravação, aproveitando a disciplinada banda dos seus shows, que entende sua ideia do classicismo sonoro e dos arranjos funcionais. Ainda assim, quando concluiu as sessões de gravação no estúdio da Capitol que se materializariam nos álbunsShadows in the Night e Fallen Angels, foi à casa de Daniel Lanois para que este escutasse os resultados. Explicou ao produtor canadense que aquelas sofisticadas canções o haviam comovido quando adolescente. Como assim? Não havíamos combinado que ele era um filho do rock and roll revitalizado pelo folk?
Talvez estivesse reincidindo no seu esporte favorito: reescrever sua biografia. Porém, após o primeiro volume de Crônicas, nunca concluiu a sua prometida trilogia autobiográfica. Fez bem: com as atuais ferramentas informáticas, seus “empréstimos” são facilmente detectáveis. Dado o grau de fanatismo que desperta, foi inevitável a descoberta de dezenas de dívidas de Crônicas Vol. 1com Jack London, Mezz Mezzrow e outras fontes inesperadas (até uma edição da revista Time de 1961!). Na música, seu álibi é aceito; afinal, ele trabalha na tradição folk, onde os achados do passado se reciclam constantemente, embora se espere que o original seja citado. No universo literário, por outro lado, o plágio costuma ser tratado com mais rigor. Mas calma: não há muitas possibilidades de que lhe concedam o Nobel.

MEIO SÉCULO DO TORRENCIAL ‘BLONDE ON BLONDE’

Durante décadas, Dylan fugiu do seu passado. Deixou o campo livre para os piratas, que inundaram o mercado com infinidade de bootlegs. Sua tentativa de parodiar essa obsessão, em Self Portrait, lhe rendeu as piores críticas da sua carreira. Em 1991, seu agente Jeff Rosen o convenceu a competir seriamente nesse terreno e se dedicou a centralizar e enriquecer seu arquivo, acumulando fitas, filmes, fotos e documentos.
Desde então, já saíram 10 maravilhosos volumes da Bootleg Series, além do documentário No Direction Home; apesar de atribuído a Martin Scorsese, o cineasta trabalhou sobre entrevistas previamente realizadas por Rosen.
Dylan não só se desvincula desses projetos como também despreza o marketing moderno e se recusa a publicar versões ampliadas dos seus discos. Completam-se agora 50 anos do torrencial Blonde on Blonde, e não há lançamentos oficiais. A comemoração coube à revista britânica Mojo, que o estampa na sua capa e edita uma recriação de Blonde on Blonde por artistas contemporâneos.
EL PAÍS


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

David Bowie / O mais eclético dos inventores do pop

David Bowie

David Bowie, o mais eclético dos inventores do pop

O crítico musical do EL PAÍS analisa a figura de David Bowie e sua influência em várias gerações





11 JAN 2016 - 13:41 COT
Diego A. Manrique

David Bowie faleceu em Nova York, após 18 meses de luta contra o câncer. De repente, tudo faz sentido: os vídeos sombrios ao apresentar seu novo trabalho, Blackstar, anunciado em um dia incomum para lançamentos: na sexta-feira, 8 de janeiro, quando completava 69 anos. Também explica o segredo em torno de sua pessoa nos últimos anos.

Sua figura abrange seis décadas de história do rock. Pertencia à geração que viu a Europa cinza do pós-guerra se iluminar com o surgimento do rock and roll. Uma música que, curiosamente, trazia outras mercadorias de contrabando: a beat generation, a atração pela vitalidade africana, a heterodoxia sexual.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Amy Winehouse / Mito y naufrágio



Amy Winehouse, mito e naufrágio


Documentário de Asif Kapadi, de 'Senna', mostra retrato devastador da cantora







Amy, o documentário que triunfou em Cannes e que estreou no Reino Unido e em vários países neste mês (no Brasil, a expectativa é que ele chegue aos cinemas até setembro), apresenta uma questão inquietante: quais novidades se pode contar sobre uma celebridade do século XXI? Como a de tantas celebridades de hoje, a vida pública de Amy Winehouse aconteceu em horário nobre, sendo vista pelo mundo inteiro. De alguma forma, até sua morte trágica parecia prevista, predestinada, assumida com antecedência.
Na verdade, nossa informação era escassa e incorreta. Quando morreu, em julho de 2011, todos pensaram que a “pobre Amy” tinha sofrido uma overdose de drogas ilegais. Para surpresa geral, a investigação dos legistas determinou que a causa imediata foi intoxicação aguda com uma droga legal: tinha consumido uma quantidade enorme de vodca.

O diretor do documentário, Asif Kapadia - o mesmo que dirigiu Senna (2010), sobre o piloto de Fórmula 1 e ídolo brasileiro Ayrton Senna, se encontrou com um dilema muito próprio do tempo presente: tinha muitos documentos audiovisuais da cantora, incluindo muito material nunca exibido. A primeira montagem de Amy durava três horas e os poucos que assistiram dizem que era devastador. Em sua forma final, são 128 minutos e, mesmo assim, ainda deixa um gosto amargo.
Tecnicamente, Kapadia tinha suficientes imagens e sons de Amy para que ela pudesse contar suas experiências em primeira pessoa. Mas não era suficiente: tudo foi muito rápido e nem ela entendia a experiência terrível que foi sua profissionalização, coincidindo com sua entrada na vida adulta. O filme precisava de outras vozes: amigos, família, colegas, médicos. E todos eles intervêm: a abundância de cenas de Amy Winehouse permite que o cineasta evite esse tema dos documentários que é a sucessão de cabeças falantes.
Essa opção narrativa por parte de Kapadia também tem seus perigos.Amy nos submerge em uma vida tumultuada sem permitir nem descanso ou reflexão. Kapadia inclusive reflete sobre o que podia sentir Winehouse quando saía na rua, atacada pelos flashes dos paparazzis e os holofotes das câmeras de TV. Embora mencionem a possibilidade de que seu telefone pudesse estar grampeado, não é explorada a relação – em seu caso, mais parasitária que simbiótica – entre os meios de comunicação e os famosos que são caçados por eles. É retratada a crueldade gratuita dos apresentadores de televisão, esses heróis do talk show que encenavam as maldades de seus fabricantes de gags.

A primeira montagem de Amy durava três horas e era desoladora
A potência da montagem de Amyesconde, no entanto, uma clara divisão de heróis e vilões. Mitch Winehouse não termina com uma boa imagem: o pai da artista foi para a ilha caribenha, onde ela estava tentando se recompor, acompanhado de uma equipe de filmagem, disposto a gravar um documentário que terminaria se chamando Saving Amy (Salvando Amy). Foi Mitch que decidiu que sua filha não precisava ir para a reabilitação, inspirando, de quebra, a memorável canção Rehab, mas também facilitando o aprofundamento de seus problemas.

Blake Fielder-Civil, o grande amor da vocalista, é retratado como um cafetão em todos os sentidos
Blake Fielder-Civil, o grande amor da vocalista, é retratado como um cafetão em todos os sentidos da palavra: o dinheiro de sua namorada servia para pagar o silêncio do dono de um pub que Fielder-Civil e outros amigos atacaram, um suborno que o levou a uma severa pena de prisão.
Não devemos esquecer de Raye Cosbert, o segundo manager, que tomou a decisão fatal de enviá-la em turnê quando Amy estava frágil, como se achasse que a estrada tem virtudes que podem salvar artistas com problemas. Ela era muito boa ao vivo, mas o grande número de apresentações coincidiu com seus momentos de fraqueza; precisou enfrentar plateias envenenadas, que talvez secretamente esperavam que ela fizesse coisas ridículas.

A nova idade de ouro do “soul” impulsionado por “Back in Black”

Winehouse, no 'Rock in Rio' de Madri, em 2008. /CLAUDIO ÁLVAREZ
Amy Jade Winehouse chegou em uma época boa para cantoras. Mas tinha argumentos mais do que suficientes para se destacar no mercado. Em primeiro lugar, seu ecletismo natural: dominava a sensibilidade pop doBrill Building nova-iorquino, conseguia cantar standards, mantinha a pose na frente de músicos de jazz, não era difícil se envolver com os ritmos jamaicanos, até queria competir com rappers.
O segundo, e talvez não tenha sido suficientemente apreciado: compunha com facilidade surpreendente, escrevendo letras cruas e precisas.Amy, o documentário que estreia hoje na Espanha, inclui uma entrevista inédita onde ela lamenta que agora não haja compositores como James Taylor e Carole King. Na verdade, embora utilizasse linguagens diferentes, queria chegar a esse nível de perspicácia e honestidade expressiva.
E o mais evidente: essa voz, com sua pitada desoul da velha escola, felizmente sem maneirismos. Não pretendia ser uma nova Aretha Franklin: era uma garota do bairro, abençoada por essa capacidade britânica de absorver outras músicas, que usava seus ensinamentos para tentar se mostrar ao mundo.
Seu exemplo reverbera em todo o pop triunfante da última década. O impacto de Back in Blackfacilitou a aceitação global de vocalistas londrinos polidos como Adele ou Sam Smith.
Graças à associação com Amy, prosperaram os Dap-Kings, a banda oficial do selo Daptone; um de seus produtores, Mark Ronson, arrasou recentemente com Uptown Funk, cantada por Bruno Mars.
Por outro lado, o papel de guardião paternal recai sobre Nick Shymanksy, primeiro representante de Amy. Embora, vendo em retrospectiva, qualquer um pode apontar os erros. Sua gravadora Universal Music também aparece bem, o que era previsível: a multinacional financiou o documentário.
Sensível a sua má reputação, a indústria musical se moveu com cautela ao redor de Amy: no mês passado, o atual chefe da Universal Music no Reino Unido, David Joseph, afirmava ter destruído os originais e outros materiais inéditos dela, para evitar que no futuro saiam discos fracos ou os chamados desenterrados, onde são colocados novos fundos instrumentais às pistas de voz. Com todo o respeito, é difícil acreditar nisso; além disso, são feitas várias cópias de tudo que foi gravado por uma figura importante.
Em geral, é possível afirmar que a Universal não cedeu a seus piores impulsos na hora de vender a música de Amy. Aceitou que ela não tinha energia suficiente para tentar conquistar o mercado discográfico mais importante, o dos EUA. Lançou edições corretas ampliadas dos dois álbuns publicados durante sua vida,Frank e Back to Black. Como álbuns póstumos, só editou Lioness: Hidden Treasures (2011) e Amy Winehouse at the BBC (2012).
O que não se consegue explicar emAmy é a natureza complexa do jogo em que ela se destacou. Sem subestimar seu imenso talento natural, era um produto do prodigioso pop britânico, com suas academias especializadas e seus hábeis mecanismos para cultivar projetos comercializáveis.
Aos 19 anos, sem ter gravado, Amy recebeu 250.000 libras (o que hoje chegaria a cerca de 1,2 milhão de reais) a título de adiantamento de direito autoral por suas canções presentes e futuras. Avançou na primeira divisão do negócio da música, trabalhando com produtores nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se beneficiava do clima criativo do bairro londrino de Camden, onde participava em jam sessions sem chamar a atenção.

Amy Winehouse, em seu apartamento em Londres em 2011. / GETTY IMAGES
No entanto, apesar de toda sua potência econômica, a indústria musical não tem um Departamento de Saúde. Era óbvio que algo estava errado com Amy. Embora a indústria discográfica não sabia nada dos antidepressivos ou dos episódios de bulimia da juventude, era evidente seu emagrecimento, sua transformação física: aquela menina ossuda parecia determinada a encarnar a versão 2.0 das integrantes das exuberantes Ronnettes. Continuava praticando dieta romana: comer até se fartar e depois vomitar.
Podemos aceitar que Amy Winehouse tenha sido vítima dos modelos dominantes de beleza e terminasse ferida por um relacionamento tóxico. Ao assistir ao documentário, ficamos ainda mais espantados ao saber que sua baixa autoestima chegava até mesmo a seus extraordinários poderes para compor e cantar. É o único que hoje ninguém duvida.´