segunda-feira, 6 de julho de 2015

Rubem Fonsca / Relato de ocorrência


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
RELATO DE OCORRÊNCIA 
em que Qualquer Semelhança
nãé Mera Coincidência

Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro.
Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto Ônibus, chapa RF 80-07-83 e JR 81-12-27, trafega na ponte do rio Coroado em direção a São Paulo.
Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no rio.
Em cima da ponte a vaca está morta.
Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida de calça comprida e blusa amarela, de vinte anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de trinta e quatro anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de trinta e cinco anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábricas de Bebidas; o menino Reinaldo de um ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, quarenta e três anos.
O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão?, pergunta Lucília. Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre.
Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não traz o facão!, pensa Elias. Ele está com raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que a sua boca seca.
Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entre dentes, olhando pros lados. Esse mulato!, pensa Elias.
Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo.
A situação não anda boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da vaca.
É verdade, diz Marcílio.
Os três olham para a vaca.
Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo.
Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia dona Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito?, pergunta, sem fôlego, ao marido.
Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca.
No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca.
Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a sua faca, seu Elias?, pergunta Marcílio. Não, responde Elias.
Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade.
Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido uma bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai
buscar duas sacas, ordena Elias.
Lucília corre.
Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e sua mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.
Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de oito meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca.
Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista.
Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes.
O senhor não pode, grita Elias.
João Leitão se ajoelha perto da vaca.
Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado.
Não pode, gritam os irmãos Medrado.
Não pode, gritam todos, com exceção do motorista da polícia.
João se afasta; a dez metros de distância, pára; com os seus ajudantes, fica observando.
A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis.
Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam as camisas como se fossem sacos.
Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a dona Dalva, vou fazer também umas batatas fritas para você, responde Lucília.
Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue.


Rubem Fonseca
Lúcia McCartny (1967) 

Rubem Fonseca
Contos reunidos 
São Paulo, Cia. das Letras, 1994. p. 360-362.


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