sexta-feira, 24 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O desempenho



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
O DESEMPENHO



Consigo agarrar Rubão, encurralando-o de encontro às cordas. O filho da puta tem base, agarrase comigo, encosta o rosto no meu rosto para impedir que eu dê cabeçadas na cara dele; estamos abraçados, como dois namorados, quase imóveis — força contra força. O público começa  a vaiar. Rubão me dá um pisão no dedo do pé, afrouxo, ele se solta, me dá uma joelhada no estômago, um pontapé no joelho, um tapa na cara. Ouço os gritos. O público está torcendo por ele. Outro bofetão: um esporro danado nas arquibancadas. Não posso dar bola pra isso, não posso dar bola pra isso, não posso dar bola para esses filhos da puta chupadores. Tento agarrá-lo mas ele não deixa, ele quer brigar em pé, ele é ágil, a cutelada dele é um coice.

Os cinco minutos mais longos da vida são passados num ringue de vale-tudo. Quando o round acaba, o primeiro de cinco por um de descanso, eu mal aguento chegar ao meu canto. O Príncipe me abana com a toalha, Pedro Vaselina me massageia. Esses putos estão torcendo por ele, não estão?  Deixa isso pra lá, diz Pedro Vaselina. Estão, não estão?, insisto. Estão, diz Pedro Vaselina, não sei o que houve, eles sempre torcem pro boa-pinta mas hoje a escrita não está funcionando. Tento ver as pessoas na arquibancada, filhos das putas, cornos, veados, marafonas, cagões, covardes, chupadores — me dá vontade de tirar o pau pra fora e sacudir na cara deles. Cuidado com ele, quando você der a queda, passa a guarda dele rápido, nãofico tentando na ignorância, ele tem base e está inteiro, e você, e você, hein, andou fodendo ontem? Cada vez que ele te acertar um bife nos  cornos não fica olhando para a arquibancada como um cu-de-vaca qualquer, que que há? Tua mãe  está lá te olhando? Presta atenção no cara, porra, não tira o olho dele, deixa a torcida pra lá, olho  nele, e não se preocupe com a bolachada, não tira pedaço e ele não ganha nada com isso. Quando te  deu o último tapa e a turma do poleiro gozou, ele fez tanta firula que parecia uma bicha da  Cinelândia. É numa hora dessas que você tem que pegar ele. Paciência, viu?, poupa energia que  você está meio-jogado-fora, diz Pedro Vaselina.

O gongo bate. Estamos no meio do ringue. Rubão faz uma ginga de tórax na minha frente, os pés plantados, movimenta as mãos, esquerda na frente, direita atrás. Fico parado, olhando as mãos dele. Vap! o pontapé me pega na coxa, vou pra cima dele, plaft ! uma porrada na cara quase me joga no chão, olho para a arquibancada, o som que vem de lá parece uma chicotada, sou uma  besta, que merda, se continuar plaft! dando bola para esses chupadores vou acabar me fodendo-em-copas plaft! — bloqueia, bloqueia, ouço Pedro Vaselina — minha cara deve estar inchada, sinto uma certa dificuldade em ver com o olho esquerdo — levanto a esquerda — bloqueia! — blam! Uma cacetada canhota me acerta no lado direito dos cornos — bloqueia! a voz de Pedro Vaselina fica fina como a de uma mulher — levanto as duas mãos — bum! o chute me pega na bunda. Rubão gira e de costas me acerta o pé no pescoço — das arquibancadas vem um som de onda do mar quebrando na praia — com um físico desses você vai acabar no cinema, mulheres, morango com creme, automóvel, apartamento, filme em tecnicolor, dinheiro no banco, onde é que estáficorro para cima dele de braços abertos, vum! o balão me estatela — Rubão pula em cima de mim, vai montar! — estou fugindo rastejo cobra minhoca pra debaixo das cordas — o juiz separa — fico deitado fiutuando na vaia injeção de morfina. Gongo.

Estou no meu corner. Nunca te vi tão mal, no físico e na técnica, fodeu hoje? anda tomando bolinha? É a primeira vez que um lutador da nossa academia foge por debaixo das cordas, você  está mal, que que há contigo? É assim que você quer lutar com o Carlson? com o Ivã? você está  fazendo um papel ridículo. Deixa ele, diz o Príncipe. Pedro Vaselina: ele vai ser estraçalhado,  conforme for a coisa neste round eu vou jogar a toalha. Puxo a cara de Pedro Vaselina para perto  da minha, digo cuspindo nos cornos dele, se você jogar a toalha, seu puta, eu te arrebento, enfio um  ferro no teu cu, juro por Deus. O Príncipe joga um monte de água em cima de mim, pra ganar tempo. Gongo.

Estamos no meio do ringue. Tempo, segundos!, diz o juiz — assim molhado não vai, não faz mais isso não — o Príncipe me enxuga fingindo pressa — segundos, fora! diz o juiz. Novamente no  meio do ringue. Estou imóvel. Meu coração saiu da garganta, voltou para o peito mas ainda bate  forte. Rubão ginga. Olho bem o rosto dele, o cara está com a moral, respira pelo nariz sem trincar  os dentes, não há um músculo tenso no seu rosto, sujeito apavoradofico com o olhar de cavalo, mas ele está tranquilo, mal se vê o branco do seu olho. Muito rápido, faz uma negaça, ameaça, eu  bloqueio, recebo um pisão no joelho, uma dor horrível, mas ainda bem que foi de cima pra baixo,  se fosse na horizontal quebrava a minha perna — Zum! o tapa no ouvido me deixa surdo de um  lado, com o outro ouvido escuto a corja delirando na arquibancada — o que foi que eu fiz? Eles  sempre torceram pra mim, o que foi que eu fiz pra esses escrotos, engolidores de porra plaft, plaft,  plaft ! ficarem contra mim? — com um físico desses você vai acabar no cinema, Leninha onde é  que está você? sua puta — vou recuando, bato com as costas nas cordas, Rubão me agarra — no  chão! guincha Pedro Vaselina — eu ainda estou bloqueando e já é tarde: Rubão me dá uma  joelhada no estômago, se afasta; pela primeira vez fica imóvel, a uns dois metros de distância, me  olhando, deve estar pensando em partir pra uma finalização — estou zonzo, mas ele é cauteloso,  quer ter certeza, sabe que no chão eu sou melhor e por isso não quer se arriscar, quer me cansar  primeiro, não vai no escuro — sinto uma vontade doida de baixar os braços, meus olhos ardem de  suor, não consigo engolir a gosma branca agarrada na minha língua — levanto o braço, armo uma  cutelada, ameaço — ele não se mexe — dou um passo à frente — ele não se mexe — dou outro  passo à frente — ele dá um passo à frente — nós dois damos um lento passo à frente e nos  abraçamos — o suor do corpo dele me faz sentir o suor do meu corpo — a dureza dos músculos  dele me faz sentir a dureza dos meus músculos — o sopro da respiração dele me faz sentir o sopro  da minha respiração — Rubão me abraça sob os meus braços — eu tento uma gravata — ele coloca  a perna direita por trás da minha perna direita, tenta me derrubar — minhas últimas forças —  Leninha, coitada — o cara vai me derrubar — tento me agarrar nas cordas como um escroto  arreglador — o tempo não anda — eu queria lutar no chão, agora quero ir pra casa — Leninha —  caio de costas, giro antes da montanha dele — Rubão me pega na gravata, me imobiliza — tum,  tum, tum! três joelhadas seguidas na boca e no nariz — gongo — Rubão vai para o seu canto  debaixo de aplausos. 

Pedro Vaselina não diz uma palavra, com rosto triste de segundo, de perdedor. É fogo, meu chapa, diz o Príncipe limpando o meu suor. É foda, respondo, um dente balança na minha boca,  preso apenas na gengiva. Meto a mão, arranco o dente com raiva e jogo na direção dos chupadores.  Todos vaiam. Não faz isso não, diz Pedro Vaselina dando água para eu bochechar, não adianta  provocar. Cuspo fora do balde a água vermelha de sangue, pra ver se cai em cima de algum  chupador. Gongo. Ao centro, diz o juiz. 


Rubão está inteirinho, eu estou podre. Nem sei em que round estamos. É o último? Último ou penúltimo, Rubão vai querer me liquidar agora. Parto para cima dele para ver se acerto uma cabeçada no seu rosto — Rubão se desvia, me segura entre as pernas, me joga fora do ringue — os chupadores deliram — tenho vontade de ir embora — se fosse valente ia embora, de calção mesmo — pra onde! — o juiz está contando — ir embora — há sempre um juiz contando — automóvel, apartamento, mulheres, dinheiro — sempre um juiz — pulley de oitenta quilos, rosca de quarenta,  vida dura — Rubão está me esperando, o juiz está com a mão no peito dele, para que não me ataque no momento em que estiver voltando — estou mesmo fodido — me curvo, entro no ringue — ao  centro, diz o juiz — Rubão me agarra, me derruba — rolamos pela lona, ele fica preso na minha guarda — entre as minhas pernas com a cara no meu pau — ficamos algum tempo assim,  descansando — Rubão projeta o corpo para a frente e acerta uma cabeçada no meu rosto — sangue  enche a minha boca de um gosto doce enjoado — bato com as duas mãos  espalmadas nos seus ouvidos, Rubão desce um pouco o corpo — subitamente ele ultrapassa a minha perna esquerda numa montada parcial — estou fodido, se ele completar a montada estou fodido e mal pago, fodido e trumbicado, fodido e estraçalhado, fodido e acabado — ele faz uma pequena parada antes de tentar a montada definitivamente — fodido, fodido! — dou uma virada forte, rolamos pela lona, paramos, puta que pariu! comigo montado-montada-completa em cima dele, puta que pariu! meus joelhos no chão, toórax dele entre as minhas pernas imobilizado — montei! puta que pariu! montei! — alegria, alegria, vento quente de ódio da corja que ria de me ver apanhando na cara — canalha de chupadores putos escrotos covardes — golpeio a cara de Rubão bem em cima do nariz, um, dois,  três — agora na boca — de novo no nariz — pau, cacete, porrada — sinto o osso quebrando — Rubão levanta os braços para tentar impedir os golpes, sangue começa a brotar de toda a sua cara,  da boca, do nariz, dos olhos, dos ouvidos, da pele — a chave de braço, a chave de braço! Grita  Pedro Vaselina, enfiando a cabeça por baixo das cordas — é fácil dar uma chave de braço numa montada, pra se defender, quem está embaixo tem que botar os braços pra cima, basta cair para um  dos lados com o braço dele entre as pernas, o sujeito é obrigado a bater na lona — um silêncio de  morte no estádio — a chave de braço! grita o Príncipe — Rubão me oferece o braço para acabar  com o sofrimento, para ele poder bater no chão desistindo, desistir na chave é digno, desistir  debaixo de pau é vergonhoso — os chupadores e putas fizeram silêncio, gritem! — a cara de Rubão  é uma pasta vermelha, gritem! — Rubão fecha os olhos, cobre o rosto com as mãos — homem  montado não pede penico — Rubão deve estar rezando para desmaiar e acabar tudo, já viu que eu  não vou lhe dar a chave da misericórdia — corja — minhas mãos doem, bato nele com os  cotovelos — o juiz se ajoelha, Rubão desmaiou, o juiz me tira de cima dele — no meio do ringue o  juiz levanta meus braços — as luzes estão acesas, de pé, nas arquibancadas, homens e mulheres  aplaudem e gritam o meu nome — levanto os braços bem no alto — dou pulos de alegria — os  aplausos aumentam — dou saltos — aplausos cada vez mais fortes — olho comovido a  arquibancada cheia de admiradores e curvo-me enviando beijos para os quatro cantos do estádio. 


Rubem Fonseca
Lúcia McCartney, 1967


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