sábado, 27 de junho de 2015

Rubem Fonseca / Lúcia McCartney


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
LÚCIA McCARTNEY

Abro o olho: Isa, bandeja, torrada, banana, café, leite, manteiga. Fico espreguiçando. Isa quer que eu coma. Quer que eu deite cedo. Pensa que sou criança.
Depois que o marido da Isa foi embora ela ficou me marcando ainda mais. Isa diz que ele volta, mas eu duvido. Primeiro, ela não era casada com o marido dela. Segundo, acho que eles não se gostavam muito: Isa de vez em quando fazia programa, e ele sumia durante dias. Acho que agora sumiu de vez. Isa espera que o marido volte, a qualquer momento. As camisas dele estão todas passadinhas na cômoda e ela mandou consertar o binóculo, o cara era doido por jóquei. Ela não sai mais de casa, nem prum programa barra limpa, mas até agora, nada.
O Renê me telefona pra fazer um programa, de noite. Eu digo que está bem. Tomo nota do endereço.
Na praia está toda a turma. Combinam ir pro Zum Zum. Eu digo que talvez vá. Se o meu programa acabar cedo eu vou. Mas eu não digo nada do meu programa para eles. Eles estão por fora. Dois já dormiram comigo, mas só dois. A gente vai pra boate, dança, bebe e depois eu venho pra casa. É mais camaradagem que outra coisa. A gente brinca, se diverte e pronto.


I I
O apartamento é muito bonito. Nós somos quatro garotas e eles são também quatro. Não conheço nenhuma das outras meninas, mas devem ter sido mandadas também pelo Renê. Como ninguém conhece ninguém, começa aquela escolha chata, de sempre. Os clientes do Renê são todos coroas, muito educados mas danados de lentos para se decidir.
DIÁLOGO, POSSÍVEL (Mas inventado)
UM COROA
Meu prezado amigo
Deseja ficar com a moreninha de cabelos curtos?
Ainda que reconhececendo seus inegáveis encantos, minhas predileções se inclinam para a jovem loura de olhos verdes.
Aceito qualquer composição. Fique com a loura. Eu fico com a morena.
OUTRO COROA
Ora, ora, meu distinto e querido companheiro
Nem por um momento pensei em privá-lo de sua eleita. Cedo-a com inexcedível prazer.
A lourinha é realmente um encanto.
A moreninha tem um ar melancólico que me seduz. E a loura é um ser esplêndido, cheio de luz que me atrai como se eu fosse uma libélula.
Bebemos e conversamos. Três são cariocas e um deles é paulista. O paulista é o que fala menos. Eu não gosto muito de paulista, eles são todos ignorantes e brutos e acham que resolvem tudo com dinheiro. Torço para o paulista não me escolher. Ele me olha e quase enfio o dedo no nariz para ele ficar com nojo. Mas não enfio, até rio para ele, um riso de garota tímida que eu sei fazer. Os cariocas estão divertindo o paulista, sem subserviência, devem ser todos do mesmo nível.
DIÁLOGO (Verdadeiro)
COROA PAULISTA
EU
Você
É carioca?
Gosta de quê?
Gosta de que poetas?
Gosta de Kafka?
É a primeira miss que diz que leu Kafka e leu mesmo.
Leu Pessoa, etc.?
Eu
Sou.
Gosto de música e poesia
Gosto de Fernando Pessoa, Beethoven, Lennon &
McCartney. Já me chamei Lúcia McCartney.
Gosto de Kafka também. Aquele pobre homem virando inseto! (Conto história chamada Metamorfose).
Não sou nem li. Um garoto me contou a história, chama-se metamorfose. Faz sempre um grande efeito nas conversas.
Li Pessoa, etc.
Cada qual vai para um quarto. Renê sabe que eu não gosto de promiscuidade. Eu vou para o quarto com o paulista. Sento num sofá. Ele também senta. Depois deita a cabeça no meu colo, diz que não está com vontade de fazer nada, "esses caras cismaram que eu hoje tinha que ir com uma garota pra cama, mas vamos só conversar, está O.K.?" Eu digo que está O.K.. Ele diz que não quer estragar as coisas. Eu digo que está bem. (Quero ir para o Zum Zum). Passo a mão nos cabelos dele. "Eu não quero fazer isso," diz ele, tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos, ele sempre dizendo que não quer, mas me papando assim mesmo.
Depois de nos lavarmos, separadamente, ele se veste põe dinheiro na minha bolsa. Ele fica muito calado, com um jeito meio distraído, meio cansado, meio desinteressado como os coroas fazem. Vamos para a sala e os outros todos já estão lá, pois nós perdemos muito tempo com aquela indecisão dele. Estão todos dançando. Ele me olha um pouco e diz "você pode ir embora." Eu pergunto se ele não quer o meu telefone e ele fica pensando um tempão me olhando e olhando pra sala onde estão os outros, o cara é mesmo indeciso, e depois de nem sei quanto tempo ele diz, "qual é?"
Estou no Zum Zum com os garotos. De vez em quando penso no coroa. O que será que ele faz?

I I I
A coisa de que eu mais gosto no mundo é dormir. Acordar ao meio-dia e ir para a praia. Hoje é dia 4 de dezembro e está um sol bárbaro lá fora. Me espreguiço. Isa chega com uma bandeja. "Fiz uma gemada para você," ela põe o prato fundo na minha frente, "você agora só chega depois das seis, perdendo tempo com esses garotões." Eu gosto de dançar, ela não gosta; eu gosto dos homens (bonitos, jovens, fortes) ela gosta do marido que nem é casado com ela e ninguém sabe onde anda; eu não gosto de ficar sozinha, eu -- "Isa, pelo amor de Deus!, não chateia", me levanto, ponho um disco na vitrola e começo a dançar, eu gosto de ficar o dia inteiro ouvindo música, eu preciso ouvir música, é igual ao ar pra mim. "Estou falando para o teu bem." "Eu sei que você está falando para o meu bem." "Ninguém agüenta essa vida que você está levando." "Não vejo nada de errado nela." "Pense no futuro." "O futuro não me interessa e não me chateia mais senão vou-me embora." "O José Roberto telefonou, o sujeito de São Paulo que esteve com você ontem."
Isa gostaria de saber coisas sobre o paulista, mas resolvo fazer mistério para ela deixar de ser chata. Também não sei nada sobre esse José Roberto. Nem sabia que ele se chamava José Roberto. José Roberto não é nome de coroa. Ele vai telefonar de novo.
TELEFONEMA
-- Alô.
-- Quem fala?
-- Com quem quer falar?
-- Com D. Lúcia, por favor.
-- Quem quer falar com ela?
-- José Roberto.
-- É a Lúcia que está falando.
-- Como vai ? Você está boa ?
-- Bem. E o senhor?
-- Bem.
(Ele cala a boca. Eu também calo. Fico nervosa:
--Alguma novidade?
-- Eu queria me encontrar com você.
-- Quando?
-- Hoje.
-- A que horas?
-- À hora que você puder.
-- Eu posso a qualquer hora. Depois das quatro.
-- Você prefere à tardinha ou à noite?
-- Qualquer hora.
-- À noite, então. 8 horas? Podemos jantar juntos.
-- Está certo. O senhor passa aqui, eu passo aí, como é que é?
-- Você passa aqui.
-- Mesmo endereço de ontem?
-- É outro. Toma nota, por favor.

IV
Ele tem um cheiro bom e fala muito suavemente comigo. Estamos sós. Ele diz que ontem tinha gente demais, "eu queria ficar só com você." Ele parece meio constrangido, como se nunca tivesse saído com uma garota de programa. Senta-se longe de mim. "Você nunca saiu com uma garota de programa antes?" "Já, já saí com uma porção, muitas, nem sei quantas." "Então por que você fica fingindo?" "Não estou fingindo coisa alguma."
Ele prepara as bebidas. Em cima da mesa da sala vejo um monte de revistas e um papel, José Roberto, estive aqui e não te encontrei, telefona pra mim, beijos, Suely. Pego o bilhete, faço um bolinha com ele e jogo pela janela. A noite está muito escura, eu não vejo o mar mas sinto o seu cheiro. De noite o mar tem um cheiro diferente, o mar muda de cheiro várias vezes por dia.
"Pra você", José Roberto me dá um vidro de perfume. Joy. Adoro perfume. Passo um pouco no braço. "Você quer ouvir música?" Ele me leva a um quarto, onde há um gravador imenso, coloca na minha cabeça fones que cobrem inteiramente minhas orelhas e ouço a música mais linda do mundo. "Espetacular, vou ficar aqui a noite toda." -- ele ri -- "por que você está rindo?", -- ele responde, mas eu não ouço, -- "o quê? o quê?", então ele tira os fones dos meus ouvidos: "não precisa gritar tanto". Com aqueles fones no ouvido a gente pensa que fala, mas grita, como um surdo. Isso deve ter acontecido com outras garotas.
CENA (subjetiva)
-- Isso aconteceu com outras garotas?
-- Isso o quê?
-- De botar o fone nos ouvidos e ficar gritando igual uma surdinha, como eu fiz.
-- Não. Aconteceu com minha mãe, mas ela não é propriamente uma garota.
-- Você tem mãe?
-- Você acha que eu sou muito velho para ter mãe?
-- E ela veio aqui?
-- Veio.
-- E você traz a sua mãe ao mesmo lugar em que você traz as suas, essas...
--Eu moro aqui. Quando estou no Rio. Essas o quê?
-- Acho que você está mentindo. Essas vagabundas.
-- Eu não minto nunca.
-- E quem é a Suely?
-- Suely. Nunca ouvi falar em Suely.
-- Mentiroso.
-- Eu não minto nunca.
-- Então passe bem. Adeus.
-- Espere. Não me deixe. Por favor!
Tiro os fones do ouvido.
CENA (Verdadeira)
-- Isso aconteceu com outras garotas?
-- Isso o quê?
-- De botar os fones nos ouvidos e ficar gritando igual a uma surdinha como eu fiz.
-- Acontece sempre. Por isso eu ri.
-- Com todas as garotas que vêm aqui?
-- Todas.
-- São muitas? Milhares?
-- Milhares não. Muitas.
-- E quem é Suely ?
-- É uma amiga minha.
-- Eu sou muito ciumenta. Joguei fora o bilhete da Suely, assim você não sabe o telefone dela.
-- Eu tenho num caderninho. De qualquer forma muito obrigado pelo ciúme.
-- Se eu soubesse cozinhar fazia comida pra você. Eu queria ficar aqui.
-- Eu peço o jantar pelo telefone. Você gosta de champanha?
-- Qualquer coisa.
Dois garçons chegam com travessa, baldes de gelo, garrafas. Que comida! "Estou no maior pilequinho", "Então você pára um pouco, pois o que nós vamos fazer agora deve ser feito em plena consciência." José Roberto me leva para o quarto.
"Eu era chamada de Graveto." "O graveto mais lindo do mundo", diz ele, me beijando. Eu vou toda pra ele, me entrego, me dou, ele está dentro de mim, eu rezo para demorar bastante, peço "demora bastante! muito! não acaba!" ele me põe doidona, me derrete e meu coração fica batendo no peito, na garganta, na barriga, que-bom, que-bom, que-bom, que-bom, que-bom!
DIÁLOGO
-- Nunca vi o José Roberto. Ele telefona e diz: me manda uma garota, você sabe como eu gosto.
-- Como é que ele gosta?
-- Inteligente, bonita e depravada.
-- Eu não sou depravada.
-- Se for muito inteligente não precisa ser muito depravada. diz ele.
-- Eu gamei.
(Renê dá uma gargalhada)
-- Que tipo de pessoa ele é?
-- Não sei. Outro dia mandei um cabacinho pra ele. A garota estuda. Eles já estavam na cama quando ele descobriu que a garota estava matando aula. Ele ficou uma fera. Deu uma lição de moral na guria, fez ela se vestir, e prometer que não matava mais aula, e mandou-a para o colégio. E pagou dobrado, sem sequer tocar nela. O cara é muito esquisito.

V
José Roberto está em São Paulo. Já se passaram sete dias. Isa cismou de mudar para Ipanema. Arranjou apartamento, comprou um fiador (desses que anunciam no jornal) e quer mudar ainda esta semana. Recebi carta de José Roberto.
(Não tem data, nem nada)
Hoje me deu vontade de escrever para uma pessoa que não conhecesse, ou que, conhecendo, nunca mais viesse a ver. Fui ao cinema e voltei para o apartamento. O filme era ruim. No meu caderninho tenho uma porção de endereços, mas não telefonei para ninguém. Existe uma garota chamada Neyde, ela é bonita, inteligente. Eu sinto (ou sentia?) uma grande atração física e mental por ela. A nossa pele combina, os nossos gostos combinam, os nossos órgãos sexuais combinam. Peguei o telefone para ligar para ela, três ou quatro vezes, mas não liguei. Na mesa do telefone havia uma folha de papel onde eu desenhava bolas e quadrados. O estéreo estava ligado, Eleanor Rigby, chovia, chovia mesmo, bolas e quadrados tinham virado Lúcia, Lúcia, l u c, ucia, LÚCIA, etc. Não liguei para Neide -- passado passou? Solidão é bom (mas) depois que eu me esvaziei com um mulher ou me enchi com uma mulher. Eu estava sozinho, e não queria como sempre quis, uma mulher perto de mim, para fruí-la física e espiritualmente e depois mandá-la embora, e essa é a melhor parte, mandar a mulher depois embora e ficar só, pensando e pensando.
Pensando em você é o que estou fazendo agora. Você é o meu Minotauro, sinto que entrei no meu labirinto. Alguém será devorado. Adeus?
José Roberto
Deliro com a carta de José Roberto. Acho o máximo. "Por que você está chorando?", pergunta Isa. "Estou com saudade do José Roberto." "Esse sujeito é maluco," diz Isa depois de ler a carta, "você é outra maluca, sempre vivi rodeada de malucos, pára de chorar, sua idiota." Isa mete a mão no bolso do robe (deve ter sido por isso que o marido deu o pira), e quando fica com raiva enfia a mão no bolso com força e arrebenta o tecido, "merda, lá se foi de novo o meu bolso!, sua idiota!"
"Você acha que eu vou vê-lo novamente?". "Vai me dizer que está apaixonada." Isa acha que isto é uma besteira, que eu estou apenas entusiasmada, porque o José Roberto é diferente dos garotões da turma, é mais experiente, mais sabido. "E olha, se por acaso ele aparecer, não vai logo se abrindo pra ele, os homens não gostam de mulher oferecida."
Combino com Isa que se o José Roberto me procurar eu vou fazer o doce, me fingir de desinteressada.
TELEFONEMA
-- Alô.
-- José Roberto! Querido!
-- Como vai?
-- Eu vou bem. Estou com uma saudade doida de você.
-- Eu também senti saudades de você.
-- Adorei sua carta. Já li mais de cem vezes. Até na hora de tomar banho eu levo ela comigo pro banheiro.
(Ele fica calado!)
-- Onde é que você está?
-- Estou no apartamento.
-- Vou aí te ver.
-- Eu estou saindo.
-- Eu quero te ver.
-- Hoje não, não é possível.
-- Por favor, eu preciso te ver.
-- Sinto muito, mas é impossível.
-- Eu estou triste, José Roberto, estou infeliz, deixa eu te ver.
(Isa pega o telefone, "cavalheiro, vê se pára atormentar minha irmã, ela já não regula vem e o senhor vem atrapalhar ainda mais, fique sabendo que li a sua carta, o senhor também é doido. Como?, ela pegou um táxi e foi para aí" -- saio correndo para me vestir, volto para a sala. Isa irritada me passa o telefone -- "ele disse que você não pegou táxi coisa nenhuma, para eu chamar você senão ele desliga o telefone na minha cara, o patife.")
-- Eu vim aqui ver um negócio, e estou indo embora agora.
-- Você tem uma mulher aí com você.
-- Vou para São Paulo hoje e estarei de volta dentro de cinco dias. Dentro de cinco dias, aqui no meu apartamento, às 8 horas.
Ele tem a voz tão bonita! Estou no Le Bateau, no meio do maior barulho, mas só ouço a voz dele. (No interior da minha cabeça).
A turma diz que eu estou no mundo da lua, dançando de olhos fechados, e rindo sozinha. Eles não sabem de nada! Não sabem o que é o amor! Todos uns bobos.

VI
Já se passaram quatro dias. Nós mudamoa para Ipanema e estamos sem dinheiro, pois o apartamento é maior e precisa de móveis novos, e tivemos que dar um mês adiantado para o fiador que a Isa comprou. Isa está fazendo um programa por dia, de tarde, com uns amigo antigos. Ela é uma grande mulher, programa para ela não falta, mas ela não gosta de sair de noite. Acho que ela ainda está esperando pelo marido.
Recebo carta do José Roberto.
Solidão é muito importante. O telefone tocava sem parar. Eu dera folga às empregadas. A campainha da porta tocava. Fui ouvir música usando os audiofones, bloqueando o mundo exterior. Mas a todo instante tirava os fones dos ouvidos e SEMPRE uma campainha tocava, alguém me procurava quem seria? Sofreria?
Resolvi sair de casa ir para um lugar onde certamente não encontraria quem queria me encontrar Apenas uma das pistas do boliche estava ocupada (por três jovens). Ocupei a pista mais distante. A cada strike o apanhador de pinos batia palmas, lentamente, com preguiça; eu só via as pernas dele, magras, protegidas por umas calças desbotadas cortadas na altura dos joelhos.
Uma moça chegou e sentou numa mesa próxima. Eu tentei, várias vezes, sem êxito, uma jogada de efeito.
"Você quer que eu marque para você?" perguntou a moça sentando-se em f rente à minha cartela.
"Pode marcar", disse eu.
Eu fiquei jogando ela marcando. Terminada a 10ª jogada eu perguntei "você quer jogar" Ela respondeu: "Não. Eu já joguei muito isso. Olha no quadro há mais de seis meses estou lá na cabeça e ninguém bate a minha contagem. Nenhuma mulher bem entendido." No quadro estava escrito ELIETE 275 -- 11 DE MAIO. "Enjoei" continuou ela "deixei crescer as unhas..."
Eu joguei mais uma partida enquanto conversávamos trivialidades. Terminada a partida chamei o garçon, pedi uma coca botei a gravata, o paletó e a moça sumiu. Eu fiquei frustrado. Um desconhecido total não te pode fazer mal. Além disso ela tinha um sorriso bonito, sabia falar (som) e cruzar as pernas. Botei uma nota alta na bola e mandei pro apanhador. Ele mostrou a cara e riu; tinha poucos dentes. Eu bati palmas pra ele, do jeito preguiçoso e gozador que ele tinha usado comigo.
Ela estava na porta esperando por mim.
"Duzentos e setenta e cinco não é mole não," eu disse.
"Eu jogava todo dia," disse ela.
Fomos andando.
"Eliete," eu disse.
"E você como se chama?"
"José Roberto."
"Você disse Eliete como quem diz o leão é o rei dos animais."
"Você quer beber alguma coisa?", perguntei.
"Quero," disse ela.
Eliete usa o cabelo curto como você e os olhos dela têm o mesmo brilho negro dos seus. É uma sensação boa, ficarmos frente à frente, sem pressa e sem mentira disponíveis, recíprocos, enquanto bebemos e o mundo flui suavemente.
Estou com muitas saudades de você. Lúcia. Lúcia. O leão é o rei dos animais?
José Roberto
É tão bom a gente receber uma carta dessas, inteligente. Uma vez eu briguei com um namorado que teve a audácia de me escrever uma carta que começava dizendo: espero que estas mal traçadas linhas, etc. Não pude nem olhar mais para a cara dele. José Roberto me faz pensar. Ele acredita que eu posso pensar, que eu sei pensar. Será que ele foi para a cama com a moça do boliche? Deve ter ido. Ah, meu Deus, eu podia estar lá com ele, marcando o jogo de boliche dele, no lugar daquela piranha. Parecida comigo! Vou cortar meu cabelo à joãozinho, curtinho, só eu vou ter esta cara, ele vai ver.

VII
Chego no apartamento antes de oito horas. Ele me recebe com uma revista americana na mão. Me dá uma vontade de rir, quando o vejo, e rio, abraçada a ele, feliz. José Roberto sorri apenas, divertido e surpreendido, com o meu entusiasmo e com minha cara nova. Ele passa a mão na minha cabeça, tenta segurar meus cabelos, eu solto minha cabeça, sempre abraçada nele, meu corpo grudado no corpo dele, fervendo. "Quantos anos você tem ?" Ele tem 36 anos mas eu não me incomodo, ele pode ser coroa mas é melhor que todos os outros. "E você?" "Dezoito anos", repete ele, lentamente, como se estivesse dizendo uma palavra mágica.
"Saí todas as noites, do Zum Zum para o Le Bateau, do Le Bateau para o Sachinha, todas as noites, você não se incomoda?" ''Você é que sabe o que pode e o que não pode fazer." "Eu quero te fazer ciúme." Ele ri, misteriosamente, me beija no rosto, não sei o que ele está pensando ou sentindo, mas ciúme certamente não existe no coração (e na cabeça) dele.
Eu não quero saber o que ele faz. Ele diz que talvez seja espião russo (ou americano) ou trapezista de circo ou poeta ou fotógrafo ou farmacêutico Ele pode ser isto tudo, ou outra coisa qualquer. Ele é estranho, às vezes fala no telefone em inglês, francês e creio que uma vez em alemão. Ou português, frases curtas, enigmáticas. Mas nada disso me incomoda, ele pode ser o que bem entender, o segredo me atrai ainda mais.
Ir para a cama com ele é cada vez melhor. Ele sabe amar, me deixa louca, horas seguidas. Me deixa mortinha -- durmo direto e quando acordo ele está calmamente lendo um livro, ou fumando cachimbo e ouvindo música naqueles fones dele, pronto pra me amar de novo.
Amanhã ele vai para São Paulo, ou Buenos Aires ou Lima, o assunto não ficou bem esclarecido. É meia noite e ele diz que tem o que fazer, que tem que sair. Isso apenas, "tenho que sair." Coloca um monte de dinheiro na minha bolsa: "para você ir à boate." Descemos juntos, ele carregando uma pasta. José Roberto me beija no rosto e me põe num táxi. Nesse instante vejo um enorme carro negro se aproximar, e José Roberto entrar dentro dele. O sinal fechado coloca o meu táxi ao lado do carro dele. O chofer dele está todo de preto, boné preto, roupa preta e tem uma cara dura. José Roberto me vê, eu aceno para ele. Ele acena de volta, alheio, distante, fechando os dedos sobre a mão espalmada, como faz a rainha da Inglaterra no cinema.
DIÁLOGO (Inventado, depois de um sonho)
CLIENTE (José Roberto)
Por que você
faz programa?
é prostituta?
vai para a cama com os homens?
PROSTITUTA ( Eu )
Porque
ganho pouco
no escritório
na loja
na TV
me perdi
gosto
perdi meu emprego
tenho um filhinho para sustentar
estou esperando uma nomeação
Eu não sou prostituta
Você não vai tirar a roupa, benzinho?
CLIENTE (José Roberto)
O dinheiro que você ganha é
fácil?
muito?
vil?
Você sabe o que é complexo de Édipo?
Já ouviu falar em
Freud?
Sófocles?
Daqui a pouco eu tiro
PROSTITUTA (Eu)
Ganho
Regularmente
Mais do que uma datilógrafa
Mais do que um gerente de banco
Mais do que uma operária
Mais do que um coronel do exército
Conheço os dois mas prefiro o Sócrates (porque tomou cicuta)
Você não vai tirar a roupa, benzinho?
CLIENTE (José Roberto)
Daqui a pouco eu tiro.
A prostituta é uma mulher imoral?
PROSTITUTA (Eu)
Não tenho vergonha de ser prostituta.
Meu trabalho não é pior do que
o de uma lavadeira que lava cuecas
o de uma massagista
o de uma arrumadeira que limpa banheiros
o de uma dentista
o de uma ginecologista
O que você acha do amor livre?
Você não vai tirar a roupa, benzinho?
CLIENTE (José Roberto)
O amor livre
não acabará com a prostituição
é uma iniqüidade
é injusto
com os feios
com os pobres diabos
com os pobres de espírito
com os pobres
deixa você na mão se você não é
artista de cinema
bonito
conquistador
rico
poderoso
famoso
Daqui a pouco eu tiro.
PROSTITUTA (Eu)
Você não vai tirar a roupa, benzinho?
CLIENTE (José Roberto)
Daqui a pouco eu tiro.
PROSTITUTA (Eu)
Minha vida dá um romance
lindo
triste
edificante
pornográfico
novo
hermético
dá samba (de festival)
é de amargar
é um punhal de dois gumes fatais
amar é sofrer
não amar é sofrer mais
Você não vai tirar a roupa, benzinho?
CLIENTE (José Roberto)
Quais os melhores clientes?
Daqui a pouco eu tiro.
PROSTITUTA (Eu)
Você -- é o melhor cliente.
Você não vai tirar a roupa, benzinho.
(O cliente tira a roupa e debaixo da camisa tem outra camisa e debaixo da calça tem outra calça e debaixo do sapato tem outro sapato. As roupas já estão batendo no teto. José Roberto continua tirando roupas do corpo com rapidez cada vez maior e dizendo importantes coisas, em alemão.)
CARTA (Recontituição mnemônica)
Ilmo. Sr.
Isaac Zaltman
Programa HOJE É DIA DE ROCK
Rádio Mayrink Veiga
Nesta
Prezado Sr. Zaltman
Sempre ouço o seu programa HOJE É DIA DE ROCK, o melhor do rádio brasileiro. Muito obrigado por transmitir diariamente a música dos THE BEATLES. Continue sempre assim.
Lúcia McCartney
CARTA (ipsis litteris)
"Palavras, palavras, palavras," diz Hamlet para Polonius no segundo ato.
Palavras, palavras, palavras, dirá você, vítima também da mesma dúvida existencial do personagem shakespeariano, ao ler esta carta.
Um dos poemas de John Lennon conta a história de uma moça que abandona a família em busca de fun. "Ela tinha tudo," dizem os pais perplexos ao lerem a carta de despedida. É uma sexta-feira, a moça saiu sub-repticiamente, apertando o lenço de encontro ao peito e sentindo não ter podido dizer na carta tudo aquilo que pretendia. Tem um encontro marcado com um homem que representa para ela, fun, alegria, diversão. "Fun is the one thing that money can't buy". A letra inteira está na capa do disco. Você já deve conhecê-la. A música do teu irmão (ou ex-noivo?) McCartney é muito bonita também.
Você saiu de casa (que era um edifício de tijolos convenções e miséria) para entrar num circuito fechado, sem ar e sem luz, como o túnel de uma toupeira. Túnel que não pode ser o caminho da libertação individual que você talvez estivesse procurando.
Enfrente a realidade com suas dificuldades e asperezas.
José Roberto
"Sujeito pernóstico e besta," diz Isa depois de ler a carta. "Ele é mais besta e mascarado do que maluco. Faroleiro. Velho desfrutável. Atrevido." "Ele não é ve1ho." Isa tem marcação com o José Roberto. Ela acha que se ele gostasse de mim ele se tornava uma espécie de protetor meu. Horrível, essa palavra. Meu protetor. Meu coronel. Se pudesse, eu era o coronel dele. Coitada da Isa. Eu não preciso de protetor, preciso de amor.
Mas começou tudo errado. O túnel é eu ser uma puta? A libertação individual é ser bem comportado? Ter um emprego decente? Ele não me entende, meu Deus, como é possível isso, se ele não me entende, quem vai me entender? "Chora, manteiga derretida," diz Isa, saindo do quarto, batendo a porta.
Isa está cada vez pior, reclamando que eu chego tarde (ou cedo) todo dia. Estou muito infeliz e queria ver José Roberto. Passo os dias escrevendo cartas. (Para o José Roberto). Assim que acordo (meio-dia) começo a escrever cartas. (Que não mando). Hoje estou muito angustiada. Ele não precisava me dar adeusinho como se eu fosse um súdito (uma súdita?).
MINHOCA ENROLADA NO MEU PESCOÇO -- LAGARTIXA ANDANDO NO MEU PEITO -- BARATA ENROSCADA NOS MEUS CABELOS -- RATO ROENDO A MINHA BOCA:
DIÁLOGO
-- José Roberto esteve aqui.
-- A que horas?
-- De tarde.
-- De tarde? Mas ele sabia que hoje eu tinha a primeira aula do curso de inglês.
-- Ele vai embora, Lúcia. Veio deixar um cheque para você. Disse que vai ficar anos e anos fora.
-- Anos e anos? Ele disse isso?
-- Disse que talvez nem voltasse. Ele disse, eu não sou dono de mim, nem de ninguém, diga isso a ela.
-- O que significa essa frase?
-- Não sei.
-- Ele estava triste?
-- Não sei. A cara dele não dizia nada.
-- Não acredito, não acredito. Ele me ama.
-- Fala devagar! Não estou te entendendo.
"Seis horas da manhã, isso é hora de chegar em casa," repete Isa. Eu grito: "Vou embora, vou passar um belo fim-de-semana longe de tudo, onde ninguém me chateie, vou sumir, se o José Roberto telefonar (de onde?) diz que eu morri. eu tenho que ir embora, Isa, do contrário quando ele chegar (de onde?) e ligar para mim eu saio rastejando, juro, estou sentindo dor no corpo todo de tanta saudade desse homem."
Isa: "estou cercada de doidos por todos os lados."

VIII
Em São Paulo, na casa da minha tia. Estou aqui há uma semana. A geladeira tem um cadeado. Minha tia chama a parte da casa onde vivem as empregadas de edílica. O passatempo dela (minha tia) é falar mal das empregadas, dos vizinhos, do governo, do marido e dos artistas de cinema, rádio e televisão. Meu tio chega diariamente por volta das sete horas, com o Estado de São Paulo debaixo do braço e diz sempre a mesma frase: "uf, que dia, nem tive tempo de ler o jornal," sempre com a mesma inflexão e a mesma falta de significado ou destinatário. (Como o jornal, que no fim de semana é vendido a peso pela minha tia).
Meu tio liga a televisão.
CENA (Verdadeira, com pequenas adaptações)
LOCUTOR: O Presidente da República pede a união de todos os brasileiros!
MEU TIO: Este país não tem jeito!
MINHA TIA: São todos uns ladrões!
MEU TIO: Quem paga somos nós!
LOCUTOR: Gloriosos destinos da nação brasileira!
MINHA TIA: O dinheiro vai para as amantes e para os parentes!
(Mesa do jantar)
MINHA TIA: A filha está grávida e eles querem esconder, pensando que os outros são imbecis!
MEU TIO: Coitados!? A filha única!
MINHA TIA: Coitados!? Só não viu o que ia acontecer quem não quis. Aquela sirigaita não podia acabar de outro jeito!
(De volta à sala de televisão)
CANTORA: Larali, laralá, etc.
MINHA TIA: Larali, laralá mas foi presa pela polícia tomando as tais bolinhas!
MEU TIO: Fulana?!
MINHA TIA: Fulana sim senhor! Você não sabe nada. Gastaram uma fortuna para abafar o escândalo!
Hoje é o sétimo dia do meu desterro. Sou a mulher mais infeliz do mundo. Não tenho pai nem mãe. (Mas até acho bom eles terem morrido, para não ficarem iguais aos meus tios. Pai e mãe não fazem falta. Irmão faz, foi por isso que eu arranjei a Isa pra irmã, ela é um pouquinho burra e chata, mas é minha irmã, não no sangue, no coração).
Passo os dias e as noites ouvindo música no rádio de pilha e escrevendo cartas. Querido José Roberto eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo. RASGO. Querido José Roberto. Não posso viver sem você, quero ficar perto de você, pode ser como empregada ou cozinheira ou engraxate ou lavadeira ou tapete ou cachimbo ou chinelo ou cachorro ou barata ou rato, qualquer coisa da sua casa, você não precisa falar comigo, nem olhar para mim. RASGO. Na casa dele não tem barata, cachorro, rato. Cachorro tem acento circunflexo? Circunflexo tem acento circunflexo? Sou muito ignorante para escrever para ele. (Esqueço que nem sei onde ele está).
Não sei onde ele está.
Meu coração está negro. O ar que eu respiro atravessa um caminho de carne podre cancerosa que começa no nariz e termina com uma pontada em algum lugar nas minhas costas. Quando penso em José Roberto um raio de luz corta o meu coração. Ilumina e dói. As vezes penso que minha única saída é o suicídio. Fogo às vestes? Barbitúricos? Pulo da janela? Hoje à noite vou à boate.

From Lúcia McCartney, Olivé Editor


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