sábado, 8 de outubro de 2022

Annie Ernaux / O lugar do pai aos olhos da filha

 


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A escritora francesa Annie ErnauxRoberto Ricciuti/Getty Images

O lugar do pai aos olhos da filha

Memórias de infância de Annie Ernaux já mostram olhar elaborado para a sua geração 25 anos antes de lançar 'Os anos'

Antonio Mammi
01mai2021 08h27 (06out2022 15h24)


Ernaux, Annie
O lugar
Fósforo • 72 pp • R$ 49,90

“Um verão, ele me levou por três dias para a praia com a família. Saía para passear de chinelo com os pés descobertos, parava na entrada de cada bunker da guerra para olhar, nos cafés pedia uma caneca de cerveja, que tomava em uma mesa sobre a calçada enquanto eu pedia um refrigerante.”

Ele é o pai, nascido camponês na Normandia. Torna-se operário, junta algumas economias, abre uma mercearia. Vem a Segunda Guerra Mundial, a carestia, ele precisa mudar de cidade. Abre uma nova bodega. O negócio vinga, não a ponto de fazê-lo enriquecer, mas lhe permite fincar raízes no mesmo endereço até o fim da vida. Consegue também dar condições para que a filha entre na universidade e, enfim, se aburguese. Ela é Annie Ernaux, ainda criança nessa passagem de O lugar.

Em 2018, foi lançado no Brasil outro relato da vida de um homem europeu do século 20 contado pelos olhos da filha. Em Caderno de memórias coloniais (Todavia), Isabela Figueiredo resgata sua infância a partir da figura do pai, português num Moçambique em via de se tornar independente. Homem rústico, racista, linha de frente da estrutura de exploração da África, eletricista que tratava a bordoadas os subalternos negros. E que ganha força como personagem por meio das memórias da criança, que formam um idílio particular num contexto brutal. Dois desterrados que se seguravam um ao outro num lugar estranho, que suportara por tempo demais a presença dos dois. 

Ernaux é diferente. “Enquanto me esforço para reconstruir a trama de significados de uma vida, levando em conta acontecimentos e escolhas, tenho a sensação de que vou perdendo, na essência, a figura do meu pai”, ela escreve. “Se me entrego às imagens da memória, vejo meu pai tal como ele era, o sorriso, o modo como caminhava, nós dois no parque de mãos dadas e o carrossel que me enchia de medo. Desse modo, todos os indícios de uma condição partilhada se tornam, para mim, indiferentes. A cada vez, me esforço para escapar da armadilha do ponto de vista individual.”

Pertencimento

Publicado originalmente em 1983, O lugar não inova no ponto de partida, a morte do pai. A partir disso, a autora retoma a vida de um homem que prosperou materialmente — conseguindo arranjar o seu lugar —, sem ascender socialmente — sabendo qual era o seu lugar. “Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo o que justificava a sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou.”

Ernaux não pertence a nenhum desses lugares. O esforço em enxugar seu texto, torná-lo o mais objetivo possível, vem da convicção — e da culpa — de ter se separado do mundo do pai; de, ao se intelectualizar e se emancipar, não compartilhar mais os mesmos valores e percepções com o homem que a criou. “Talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro.”

A sensação de deslocamento também é tema de seu único livro editado no Brasil, Os anos, pela extinta Três Estrelas. A obra, que ganhará reedição da editora Fósforo (a mesma de O lugar), saiu na França em 2008, 25 anos depois de Ernaux voltar suas lentes para o pai. Narrada na primeira pessoa do plural, ela mescla relato autobiográfico com memória coletiva, operando como a consciência de uma geração nova demais para se lembrar da Segunda Guerra Mundial e velha demais para protagonizar Maio de 68.

O esforço de Ernaux em enxugar seu texto, torná-lo o mais objetivo possível, vem da convicção de ter se separado do mundo do pai

Em O lugar, Ernaux antecipa a posição de observadora que chega à excelência em Os anos, em que ela costura “a passagem do tempo histórico (com coisas, ideias e costumes se transformando) e o espaço íntimo”. Se pode soar uma platitude dizer que um bom escritor tem a capacidade de olhar para os outros e para si mesmo, a afirmação é necessária porque a francesa o faz com esmero. De tanto escrutinar pai, mãe, filhos, amantes, ela consegue elaborar com atenção desconcertante as condições materiais e culturais que moldam as pessoas em diferentes épocas.

Sobre os avós: “A religião, bem como a higiene, dava-lhes dignidade”. Os pais gostavam de “tirar fotos com os pertences que os enchiam de orgulho: o café, a bicicleta, mais tarde o Citroën 4cv”. Já os filhos adultos nos anos 1990 viviam em “um eterno presente feito de música, seriados norte-americanos e video games, como se perseguissem uma boemia distante da minha situação na idade deles”. É implacável consigo mesma: abre o livro descrevendo sua prova de licenciatura como professora de francês, termina relatando um encontro fortuito com uma ex-aluna, caixa de supermercado, com cujo nome nem sequer atinava. “‘A escola técnica não deu certo.’ Ela devia achar que eu ainda lembrava das escolhas dela.”

O lugar e Os anos são memórias do progresso. A angústia de Ernaux vem da impotência em seguir adiante. Ela se deu conta de que começava a era que vivemos hoje, em que os filhos têm expectativas com relação à vida menores das que tiveram seus pais. E se penitencia por isso, assim como se culpa por, a partir de certo momento, não comungar com o pai das formas de ser e estar no mundo.

É, portanto, coerente a recusa em aderir a recursos que revelem ironia, nostalgia, condescendência. Buscar seletivamente a cumplicidade do leitor a partir de determinadas passagens do texto seria trair duplamente aqueles que a autora retrata: seria submetê-los a juízos de valor. E o que emociona varia conforme o leitor. No meu caso, imaginar a despreocupação de um dono de mercearia que se reserva o direito de tirar três dias de folga para andar de chinelo na praia, bebericando uma cerveja à beira-mar na companhia da filha pequena.

FOLHA DE S.PAULO

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