segunda-feira, 11 de abril de 2022

Carta de Carlos Drummond de Andrade a Lygia Fagundes Telles





Carta de Carlos Drummond de Andrade a Lygia


Lygia:


Ciranda de Pedra é um grande livro, e V. é uma romancista de verdade — eis, em resumo, o que tenho a dizer-lhe depois de ler seus originais com um interesse que não excluía o espírito crítico e se foi convertendo em emoção de leitor fascinado pelo texto. Contando com grande fôlego, dispondo cenas e episódios com uma segurança de quem sabe o que está fazendo, criando realmente pessoas vivas e não simples personagens, V. compôs um livro perturbador, que nos prende e nos assusta, que nos faz sofrer e ao mesmo tempo nos oferece o remédio compensador da própria arte, pois a força da criação resolve num plano mágico os conflitos que ela mesma suscita. Admirei particularmente o instinto sutil de ficcionista, que evitou as cenas fáceis ou de mau gosto, abrindo caminho sempre através do difícil mas não deixando transparecer o esforço da construção. É um livro duro, mas sem nenhuma passagem escabrosa. As notações psicológicas são as mais finas, e a evolução da trama vai oferecendo quadros de costumes que dão à obra importância como documento social, sem entretanto lhe tirar qualquer de suas qualidades como obra puramente literária, isto é, obra de arte, válida por si mesma.


Carlos Drummond de Andrade e Lygia Fagundes Telles


A cena da noite de Natal é um dos episódios de romance mais completos que já li, e bastaria, sozinha, para consagrar um autor. Lygia, V. correspondeu cem por cento à confiança que os amigos depositavam na sua capacidade criadora. Seu livro ganha longe da nossa ficção raquítica de hoje, e se coloca num plano de dignidade literária que lhe assegura permanência. V. deve sentir-se bem paga de toda a canseira que isto lhe custou, do sofrimento que sem dúvida foi seu companheiro durante dias e dias em que os problemas da criação se acumulavam, desafiando-a. Imagino sua alegria justa, e a do Goffredo também. Demorei a escrever porque, logo depois de ter recebido os originais, tive de ir a Minas, lá me demorando algum tempo. E aqui a vida me pegou na sua engrenagem de coisinhas chatas. Agora vou tratar de levar seu livro ao editor, e o que desejo é que os avaliadores da obra estejam em condições de sentir a sua alta qualidade. A telefonista de Araras esforçou-se há dias para fazer a ligação que V. pedira. Ouvi uma voz no éter: “a fazenda… porque a fazenda…” depois mais nada. E foi pena. Lygia, estou contente e orgulhoso de ser seu amigo (sempre estive, mas agora mais, depois de Ciranda de Pedra).


Abraços e saudades do velho

Carlos




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