Gabriel García Márquez
DEZESSETE INGLESES ENVENENADOS
A primeira coisa que a senhora Prudencia Linero
notou quando chegou ao porto de Nápoles foi que tinha o mesmo cheiro do porto
de Riohacha. Não contou a ninguém, é claro, pois ninguém teria entendido
naquele transatlântico senil abarrotado de italianos de Buenos Aires que
voltavam à pátria pela primeira vez depois da guerra, mas de todo modo
sentiu-se menos só, menos assustada e distante, aos 72 anos de sua idade e a
dezoito dias de mar ruim de sua gente e de sua casa.
Desde o amanhecer haviam visto
as luzes de terra. Os passageiros levantaram-se mais cedo que sempre, vestidos
com roupas novas e com o coração oprimido pela incerteza do desembarque, e
assim aquele último domingo a bordo pareceu ser o único de verdade na viagem
inteira. A senhora Prudência Linero foi uma das muito poucas que assistiram à
missa. À diferença dos dias anteriores em que andava pelo barco vestindo meio
luto, havia posto para desembarcar uma túnica parda de algodão tosco, com o
cordão de São Francisco na cintura, e umas sandálias de couro cru que só por
serem demasiado novas não pareciam de peregrino. Era um pagamento adiantado:
tinha prometido a Deus usar aquele hábito talar até a morte, se lhe concedesse
a graça de viajar a Roma para ver o Sumo Pontífice, e já considerava a graça
concedida. No final da missa acendeu uma vela para o Espírito Santo pela
coragem que lhe deu para suportar os temporais do Caribe, e rezou uma oração
por cada um dos nove filhos e dos catorze netos que naquele momento sonhavam
com ela na noite de ventos de Riohacha.
Quando subiu ao convés depois
do café da manhã, a vida do barco havia mudado. As bagagens estavam amontoadas
no salão de baile, no meio de tudo que é objeto para turistas comprado pelos
italianos nos mercados de magia das Antilhas, e no balcão do bar havia um
macaco de Pernambuco dentro de uma jaula de bordados de ferro. Era uma manhã
radiante de princípios de agosto. Um domingo exemplar daqueles verões de depois
da guerra em que a luz se comportava como uma revelação de cada dia, e o barco
enorme movia-se muito devagar, com o resfolegar dos doentes, por um tanque
diáfano. A fortaleza tenebrosa dos duques de Anjou mal começava a ser
vislumbrada no horizonte, mas os passageiros inclinados na borda acreditavam
reconhecer os lugares familiares e os mostravam sem vê-los ao certo, gritando
de júbilo em dialetos meridionais.
A senhora Prudencia Linero, que
havia feito tantos velhos amigos a bordo, que havia cuidado de crianças
enquanto seus pais dançavam e até havia costurado um botão do dólmã do
primeiro-oficial, achou-os de repente alheios e diferentes. O espírito social e
o calor humano que lhe permitiram sobreviver às primeiras nostalgias no torpor
do trópico haviam desaparecido. Os amores eternos de alto-mar terminavam à
vista do porto. A senhora Prudência Linero, que não conhecia a natureza volúvel
dos italianos, pensou que o mal não estava no coração dos outros e sim no seu,
por ser ela a única que ia entre a multidão que regressava. Assim devem ser
todas as viagens, pensou, padecendo pela primeira vez na vida dor aguda de ser
forasteira, enquanto contemplava da borda os vestígios de tantos mundos
extintos no fundo da água. De repente, uma moça muito bela que estava ao seu
lado assustou-a com um grito de horror.
- Mamma mia – disse, apontando
o fundo. – Olhem.
Era um afogado. A senhora
Prudencia Linero viu-o flutuando de barriga para cima entre duas águas, e era
um homem maduro e calvo com uma estranha prestância natural, e seus olhos
abertos e alegres tinham a mesma cor do céu ao amanhecer. Vestia um traje de
gala com um colete de brocado, botinas de verniz e uma gardênia viva na lapela.
Na mão direita tinha um pacotinho cúbico embrulhado em papel de presente, e os
dedos de ferro lívido estavam agarrados na fita do laço, que era a única coisa
que encontrou onde se agarrar no instante de morrer.
- Deve ter caído de um
casamento – disse um oficial do barco. – Acontece muito no verão nestas águas.
Foi uma visão instantânea,
porque estavam então entrando na baía e outros motivos menos lúgubres
distraíram a atenção dos passageiros. Mas a senhora Prudencia Linero continuou
pensando no afogado, no coitadinho do afogado, cuja casaca ondulava na cicatriz
que o barco abria na água. Assim que entrou na baía, um rebocador decrépito
saiu ao encontro do barco e levou-o pelo cabresto através dos escombros de
numerosas naus militares destruídas durante a guerra. A água ia se transformando
em óleo à medida que o barco abria caminho através dos escombros enferrujados,
e o calor se fez ainda mais bravo que o de Riohacha às duas da tarde. Do outro
lado do desfiladeiro, radiante ao sol das onze, apareceu de repente a cidade
completa de palácios quiméricos e velhos barracos coloridos amontoados nas
colinas. Do fundo removido levantou-se então um cheiro insuportável que a
senhora Prudencia Linero reconheceu como o bafo de caranguejos podres do
quintal de sua casa.
Enquanto a manobra durou os
passageiros reconheciam seus parentes com gestos de gozo no tumulto do cais. Na
maioria eram matronas de peitarias estofadas, sufocadas dentro dos trajes de
luto, com os meninos mais belos e numerosos da terra, e maridos pequenos e
diligentes, do gênero imortal dos que lêem o jornal depois de suas esposas e se
vestem de escrivães formais apesar do calor.
No meio daquela algaravia de
mercado, um homem muito velho de aspecto inconsolável, com um sobretudo de
mendigo, tirava as duas mãos dos bolsos e com elas punhados e punhados de
pintinhos. Num instante encheram o cais, piando enlouquecidos por todos os
cantos, e só por serem animais de magia havia muitos que continuavam correndo
vivos depois de serem pisados pela multidão alheia ao prodígio. O mago havia
posto seu chapéu de boca para cima no chão, mas ninguém lhe atirou nenhuma
moeda caridosa.
Fascinada pelo espetáculo de
maravilha que parecia executado em sua honra, pois só ela agradecia, a senhora
Prudencia Linero não percebeu o momento em que estenderam a passarela, e uma
avalanche humana invadiu o barco, com os uivos e o ímpeto de uma abordagem de
bucaneiros. Atordoada pelo júbilo e pelo bafo de cebolas rançosas de tantas
famílias no verão, sacudida pelas quadrilhas de carregadores que disputavam a
bagagem na porrada, sentiu-se ameaçada pela mesma morte sem glória dos
pintinhos no cais. Então, sentou-se sobre seu baú de madeira com esquinas de
latão pintado, e permaneceu impávida rezando um círculo vicioso de orações
contra as tentações e perigos em terras de infiéis. Assim foi encontrada pelo
primeiro-oficial quando passou o cataclismo e não ficou mais ninguém além dela
no salão desmantelado.
- Ninguém pode ficar aqui a
esta hora – disse o oficial com certa amabilidade. – Posso ajudá-la em alguma
coisa?
- Tenho que esperar o cônsul –
disse ela.
Era verdade. Dois dias antes de
zarpar, seu filho mais velho havia mandado um telegrama ao cônsul em Nápoles,
que era seu amigo, para rogar que a esperasse no porto e a ajudasse no que
fosse necessário para continuar até Roma. Havia dado o nome do navio e a hora
da chegada, e indicou, além disso, que podia reconhecê-la pelo hábito de São
Francisco que ela vestiria para desembarcar. Ela mostrou-se tão dura em suas
leis, que o primeiro-oficial permitiu que esperasse um pouco mais, apesar de
ser a hora em que a tripulação almoçava e terem posto as cadeiras sobre as
mesas e lavado o convés a golpes de balde. Tiveram, várias vezes, de mover o
baú para não molhá-lo, mas ela mudava de lugar sem mexer um músculo, sem
interromper suas orações, até que foi tirada das salas de recreio e terminou
sentada em pleno sol entre os botes de salvamento. Ali o primeiro-oficial
tornou a encontrá-la, um pouco antes das duas da tarde, afogando-se em suor
dentro de seu escafandro de penitente, e rezando um rosário sem esperanças,
porque estava aterrorizada e triste e suportava a duras penas as ânsias de
chorar.
- É inútil continuar rezando –
disse o oficial, sem a amabilidade da primeira vez. – Até Deus sai de férias em
agosto.
Explicou-lhe que meia Itália
estava na praia naquela época, sobretudo aos domingos. Era provável que o
cônsul não estivesse de férias, pela índole de seu cargo, mas com certeza não
abriria o escritório até segunda-feira. A única coisa razoável era ir a um
hotel, descansar aquela noite em paz, e no dia seguinte telefonar ao consulado,
cujo número com certeza estaria na lista. Assim a senhora Prudência Linero teve
que se conformar com esse argumento, e o oficial ajudou-a com a imigração e a
alfândega e o câmbio, e colocou-a dentro de um táxi com a indicação precária de
que a levassem a um hotel decente.
O táxi decrépito com rasgos de
carro fúnebre avançava aos saltos por ruas desertas. A senhora Prudencia Linero
pensou por um instante que o condutor e ela eram os únicos seres vivos numa
cidade de fantasmas dependurados em fios nomeio da rua, mas também pensou que
um homem que falava tanto, e com tamanha paixão, não podia ter tempo de fazer
mal a uma pobre mulher solitária que havia desafiado os riscos do oceano para
ver o papa.
Ao final do labirinto de ruas,
tornava-se a ver o mar. O táxi continuou dando saltos ao longo de uma praia
ardente e solitária onde havia hotéis pequenos de cores intensas. Mas não parou
em nenhum deles, foi direto ao menos vistoso, situado num jardim público com
grandes palmeiras e bancos verdes. O chofer pôs o baú na calçada assombreada, e
ante a incerteza da senhora Prudência Linero, garantiu que aquele era o hotel
mais decente de Nápoles. Um carregador formoso e amável jogou o baú no ombro e
se encarregou dela. Conduziu-a até o elevador de redes metálicas improvisado no
vão da escada, e começou a cantar uma ária de Puccini a todo vapor e com uma
determinação alarmante. Era um vetusto edifício de nove andares restaurados, em
cada um dos quais havia um hotel diferente. A senhora Prudencia Linero
sentiu-se de repente em um instante alucinado, metida num galinheiro que subia
muito devagar pelo centro de uma escadaria de mármores estentóreos, e
surpreendia as pessoas dentro de suas casas com suas dúvidas mais íntimas, com
suas cuecas puídas e seus arrotos ácidos. No terceiro andar o elevador parou
com um sobressalto, e então o carregador deixou de cantar, abriu a porta de
rombos dobráveis e indicou à senhora Prudencia Linero, com uma reverência
galante, que estava em casa.
Ela viu um adolescente lânguido
atrás de um balcão de madeira com incrustações de vidros coloridos no vestíbulo
e plantas de sombra em vasos de cobre. Gostou dele de saída, porque tinha os
mesmos cachos de serafim de seu neto caçula. Gostou do nome do hotel com letras
gravadas numa placa de bronze, gostou do cheiro de ácido fanico, gostou das
samambaias penduradas, do silêncio, das flores-de-lis de ouro no papel de
parede. Depois deu um passo fora do elevador, e seu coração se encolheu. Um
grupo de turistas ingleses de calças curtas e sandálias de praia cochilava numa
longa fila de poltronas de espera. Eram dezessete, e estavam sentados em ordem
simétrica, como se fossem um só repetidos muitas vezes numa galeria de
espelhos. A senhora Prudencia Linero viu-os sem distingui-los, com um único
golpe de vista, e a única coisa que a impressionou foi a longa fileira de
joelhos rosados, que pareciam leitões pendurados nos ganchos de um açougue. Não
deu mais nenhum passo em direção à recepção, retrocedeu assustada e entrou no
elevador de novo.
- Vamos a outro andar – disse.
- Este é o único que tem
refeitório, signora – disse o carregador.
- Não importa – disse ela.
O carregador fez um gesto
conformado, fechou o elevador, e cantou o pedaço que faltava da canção até o
hotel do quinto andar. Ali tudo parecia menos formal, e a dona era uma matrona
primaveral que falava um castelhano fácil, e ninguém fazia a sesta nas poltronas
do vestíbulo. Não havia refeitório, é verdade, mas o hotel tinha um acordo com
uma pensão vizinha para que servisse os seus hóspedes por um preço especial. De
maneira que a senhora Prudencia Linero decidiu que sim, ficaria por uma noite,
tão convencida pela eloqüência e a simpatia da dona como pelo alívio de que não
houvesse nenhum inglês de joelhos rosados dormindo no vestíbulo. O dormitório
tinha as persianas fechadas às duas da tarde, e a penumbra conservava a
frescura e o silêncio de uma floresta recôndita, e era bom para chorar. Nem bem
ficou sozinha, a senhora Prudencia Linero passou os dois ferrolhos, e urinou
pela primeira vez desde a manhã com um desaguar tão tênue e difícil que
permitiu-lhe recobrar sua identidade perdida durante a viagem. Depois tirou as
sandálias e o cordão do hábito e estendeu-se do lado do coração sobre a cama de
casal demasiado larga e demasiado solitária para ela só, e soltou o outro
manancial de suas lágrimas atrasadas. Não apenas era a primeira vez que saía de
Riohacha, mas também uma das poucas em que saiu de sua casa depois que seus
filhos casaram e foram embora, e ela ficou sozinha com duas índias descalças
cuidando do corpo sem alma de seu marido. Consumiu metade da vida no dormitório
diante dos escombros do único homem que havia amado, e que permaneceu no
letargo durante quase trinta anos, estendido na cama de seus amores juvenis
sobre um colchão de couros de bode. No outubro anterior, o enfermo abriu os
olhos numa rajada súbita de lucidez, reconheceu sua gente e pediu que chamassem
um fotógrafo. Levaram o velho do parque com o enorme aparelho de fole e manta
negra, e o prato de magnésio para as fotos domésticas. O próprio doente dirigiu
as fotos. “Uma para Prudencia, pelo amor e pela felicidade que me deu em vida”,
disse. Fizeram a foto com a primeira explosão do magnésio. “Agora, mais duas
para minhas filhas adoradas, Prudencita e Natalia”, disse. Foram feitas.
“Outras duas para meus filhos homens, exemplos da família por seu carinho e seu
bom senso”, disse. E foi assim até que acabou-se o papel e o fotógrafo teve que
ir em casa se reabastecer. Às quatro da tarde, quando já não se podia mais
respirar no quarto pela fumaça do magnésio e o tumulto dos parentes, amigos e
conhecidos que acudiram a receber suas cópias do retrato, o inválido começou a
se desvanecer na cama, e foi se despedindo de todos com adeuses de mão, como
que apagando-se do mundo na balaustrada de um barco. Sua morte não foi para a
viúva o alívio que todos esperavam. Ao contrário, ficou tão aflita, que seus
filhos se reuniram para perguntar-lhe como poderiam consolá-la, e ela respondeu
que não queria nada além de ir a Roma e conhecer o papa.
- Vou sozinha e com o hábito de
São Francisco – advertiu. – É uma promessa.
Tudo de grato que lhe restou
daqueles anos de vigília foi o prazer de chorar. No barco, enquanto teve que
compartilhar o camarote com duas irmãs clarissas que ficaram em Marselha,
demorava no banheiro para chorar sem ser vista. De maneira que o quarto de
hotel de Nápoles foi o único lugar propício que havia encontrado para chorar à
solta desde que saiu de Riohacha. E teria chorado até o dia seguinte, quando
sairia o trem para Roma, se não fosse a dona ter batido na porta às sete para
avisá-la que, se não chegasse a tempo na pensão, ficaria sem comer. O empregado
do hotel a acompanhou. Uma brisa fresca tinha começado a soprar vinda do mar, e
ainda havia alguns banhistas na praia debaixo do sol pálido das sete. A senhora
Prudencia Linero seguiu o empregado pelo despenhadeiro de ruas empinadas e estreitas
que mal começavam a despertar da sesta de domingo, e encontrou-se de repente
debaixo de uma pérgula sombria, onde havia mesas com toalhas de quadradinhos
vermelhos e frascos de conservas improvisados como vasos com flores de papel.
Os únicos comensais naquela hora madrugadora eram os próprios empregados e um
padre muito pobre que comia cebolas com pão num canto afastado. Ao entrar, ela
sentiu o olhar de todos por causa do hábito pardo, mas não se alterou, pois
estava consciente de que o ridículo fazia parte da penitência. A moça que
servia, porém, suscitou nela uma pitada de piedade, porque era loura e bela e
falava como se cantasse, e ela pensou que deveriam estar muito mal na Itália
depois da guerra para que uma moça como aquela tivesse de servir mesas numa
pensão. Mas sentiu-se bem no ambiente de flores da pérgula, e o aroma de louro
no guisado da cozinha despertou nela a fome adiada pela confusão do dia. Pela
primeira vez em muito tempo não tinha vontade de chorar.
No entanto, não conseguiu comer
com prazer. Em parte, porque lhe custou trabalho entender-se com a moça que
servia, a loura, apesar de ser simpática e paciente, e em parte porque a única
carne que havia para comer era de passarinhos cantores como os que criavam em
gaiolas nas casas de Riohacha. O padre, que comia num canto, e que acabou
servindo de intérprete, tentou fazê-la entender que as emergências da guerra
não haviam terminado na Europa, e que aquilo devia ser apreciado como um
milagre, que pelo menos houvesse passarinhos para comer. Mas ela recusou.
- Para mim – disse – seria como
comer um filho.
E assim teve que se conformar
com uma sopa de macarrão, um prato de abobrinhas fervidas com umas tiras de
toucinho rançoso e um pedaço de pão que parecia de mármore. Enquanto comia, o
padre se aproximou para suplicar-lhe por caridade que o convidasse para tomar
uma xícara de café e sentou-se com ela. Era iugoslavo, mas havia sido
missionário na Bolívia, e falava um castelhano difícil e expressivo. A senhora
Prudencia Linero achou-o um homem ordinário e sem o menor vestígio de
indulgência, e observou que tinha mãos indignas com unhas rachadas e sujas, e
um hálito de cebolas tão persistente que mais parecia um atributo do caráter.
Mas enfim estava a serviço de Deus, e era um prazer novo encontrar alguém com
quem se entender estando tão longe de casa.
Conversaram devagar, alheios ao
denso rumor de estábulo que os ia cercando à medida que os clientes ocupavam as
outras mesas. A senhora Prudência Linero tinha um julgamento terminante sobre a
Itália: não gostava. E não porque os homens fossem um pouco abusivos, o que já
era muito, nem porque comessem os pássaros, o que já era demasiado, mas pelo
mau hábito de deixar os afogados à deriva.
O padre, que além do café havia
pedido, por conta dela, um cálice de grappa, tentou fazer com que ela visse a
inconsistência de seu julgamento. Pois durante a guerra havia sido estabelecido
um serviço muito eficaz para resgatar, identificar e sepultar em terra sagrada
os numerosos afogados que amanheciam flutuando na baía de Nápoles.
- Há séculos – concluiu o padre
– os italianos tomaram consciência de que não existe mais do que uma vida, e
tratam de vivê-la da melhor maneira. Isso os tornou calculadores e volúveis,
mas curou-os da crueldade.
- Nem pararam o barco – disse
ela.
- O que fazem é avisar por
rádio as autoridades do porto – disse o padre. – A esta hora, já devem tê-lo
recolhido e enterrado em nome de Deus.
A discussão mudou o humor de
ambos. A senhora Prudencia Linero havia acabado de comer, e só então percebeu
que todas as mesas estavam ocupadas. Nas mais próximas, comendo em silêncio,
havia turistas quase despidos, e entre eles alguns casais de namorados que se
beijavam em vez de comer. Nas mesas do fundo, perto do balcão, estavam as
pessoas do bairro jogando dados e bebendo um vinho sem cor. A senhora Prudencia
Linero compreendeu que tinha uma só razão para permanecer naquele país
indesejável.
- O senhor acha que é muito
difícil ver o papa? – perguntou.
O padre respondeu que não havia
nada mais fácil no verão. O papa estava de férias em Castelgandolfo, e nas
tardes de quarta-feira recebia em audiência pública peregrinos do mundo
inteiro. A entrada era muito barata: vinte liras.
- E quanto ele cobra para
confessar a gente? – perguntou.
- O Santo Padre não confessa
ninguém – disse o padre, um pouco escandalizado -, a não ser os reis, claro.
- Não vejo por que ele haverá
de negar esse favor a uma pobre mulher que vem de tão longe – disse ela.
- Até alguns reis, que eram
reis, morreram esperando – disse o padre. – Mas diga: deve ser um pecado
tremendo, para que a senhora tenha feito sozinha tamanha viagem só para
confessá-lo ao Santo Padre.
A senhora Prudencia Linero
pensou um instante, e o padre a viu sorrir pela primeira vez.
- Ave Maria Puríssima! – disse.
– Só de ver o papa já chega. – E acrescentou com um suspiro que pareceu
sair-lhe da alma: – Foi o sonho da minha vida!
Na verdade, continuava
assustada e triste, e a única coisa que queria era ir embora imediatamente, não
só daquele lugar, mas da Itália. O padre deve ter pensado que aquela alucinada
não dava mais, desejou-lhe boa sorte e foi para outra mesa pedir por caridade
que lhe pagassem um café.
Quando saiu da pensão, a
senhora Prudencia Linero encontrou a cidade mudada. Foi surpreendida pela luz
do sol às nove da noite, e assustou-se com a multidão estridente que havia
invadido as ruas com o alívio da brisa nova. Não era possível viver com os
petardos de tantas vespas enlouquecidas. Eram conduzidas por homens sem camisa
que levavam nas garupas belas mulheres abraçadas às suas cinturas, e abriam
caminho aos saltos, serpenteando através dos leitões pendurados e das mesas de
melancia.
O ambiente era de festa, mas a
senhora Prudência Linero achou-o de catástrofe. Encontrou-se de repente numa
rua intempestiva com mulheres taciturnas sentadas à porta de suas casas iguais,
e cujas luzes vermelhas e intermitentes lhe causaram um estremecimento de
pavor. Um homem bem-vestido, com um anel de ouro maciço e um diamante na
gravata perseguiu-a por vários quarteirões dizendo-lhe algo em italiano e
depois em inglês e francês. Como não teve resposta, mostrou-lhe um
cartão-postal de um pacote que tirou do bolso, e ela só precisou de um golpe de
vista para sentir que estava atravessando o inferno. Fugiu apavorada e no final
da rua tornou a encontrar o mar crepuscular com o mesmo bafo de mariscos podres
do porto de Riohacha, e o coração tornou a ficar em seu lugar. Reconheceu os
hotéis coloridos na frente da praia deserta, os táxis funerários, o diamante da
primeira estrela no céu imenso. Ao fundo da baía, solitário no cais, reconheceu
o barco no qual havia chegado, enorme e com os conveses iluminados, e percebeu
que já não tinha nada a ver com sua vida. Ali virou à esquerda, mas não pôde
seguir, porque havia uma multidão de curiosos mantidos a distância por uma
patrulha de carabineiros. Uma fila de ambulâncias esperava com as portas
abertas na frente do edifício de seu hotel.
Empinada por cima do ombro dos
curiosos, a senhora Prudencia Linero voltou a ver então os turistas ingleses.
Estavam sendo retirados em macas, um a um, e estavam todos imóveis e dignos, e
continuavam parecendo um só várias vezes repetido com a roupa formal que haviam
vestido para o jantar: calças de flanela, gravata de listras diagonais, e a
jaqueta escura com o escudo do Trinity College bordado no bolso do peito. Os
vizinhos nas varandas e os curiosos bloqueados na rua iam contando em coro,
como num estádio, à medida que eram retirados. Eram dezessete. Foram metidos em
ambulâncias de dois em dois, e levados com um estrondo de sirenes de guerra.
Aturdida por tantos estupores,
a senhora Prudencia Linero subiu no elevador abarrotado pelos clientes dos
outros hotéis que falavam idiomas herméticos. Foram ficando em todos os
andares, exceto no terceiro, que estava aberto e iluminado, mas ninguém estava
na recepção ou nas poltronas do vestíbulo, onde havia visto os joelhos rosados
dos dezessete ingleses adormecidos. A dona do quinto andar comentava o desastre
numa excitação sem controle.
- Estão todos mortos – disse à
senhora Prudencia Linero em castelhano. – Envenenaram-se com a sopa de ostras
do jantar. Ostras em agosto, imagine!
Entregou-lhe a chave do quarto,
sem prestar-lhe mais atenção, enquanto dizia aos outros clientes em seu
dialeto: “Como aqui não tem refeitório, quem se deita para dormir amanhece
vivo!”. Outra vez com o nó de lágrimas na garganta, a senhora Prudencia Linero
passou os ferrolhos do quarto. Depois rodou contra a porta a mesinha de
escrever e a poltrona, e pôs por último o baú como uma barricada insuperável
contra o horror daquele país onde aconteciam tantas coisas ao mesmo tempo.
Depois vestiu a camisola de viúva, estendeu-se de barriga para cima na cama e
rezou dezessete rosários pelo eterno descanso das almas dos dezessete ingleses
envenenados.
Abril de 1980.
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