Guy de Maupassant
A Morta
Trad. Jose Thomas Brum
Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É
realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único
pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que
ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma
fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo
todo, por toda parte, como uma prece.
Não vou contar a nossa história. O amor só tem
uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um
ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus
vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de
maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou
vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.
Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e,
no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.
O que aconteceu? Não sei mais.
Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se.
Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a
testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me
respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo!
Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A
enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"
Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que
falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já
que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante.
Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me
falou dela.
Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com
o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das
marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus!
Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco!
Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas.
Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.
Ontem, regressei a Paris.
Quando revi o meu quarto, o
nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o
que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim
novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à
rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que
a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas
imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração,
peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do
grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à
cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem,
se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.
E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas
vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua
imagem.
Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no
vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto
quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava
aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho
doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as
torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos
deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua
frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como
sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao
cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com
algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."
Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror!
Eu soluçava, a fronte no chão.
Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois,
percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo
de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a
última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que
fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos.
Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que
vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro
gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho
das vinhas e comem o pão das planícies.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a
série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase
nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!
Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente
o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra,
onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos
que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos,
um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.
Estava só, completamente só. Agachei-me perto de
uma árvore verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.
E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago
aos destroços.
Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei
o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por
essa terra repleta de mortos.
Vaguei durante muito, muito
tempo. Não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos
túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a
cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que procura o
caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de
flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite!
Que noite! Não a encontrava!
Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo
horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos!
Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha
volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais
caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E
também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse
ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa,
da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!
Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado
de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.
E, de súbito, tive a impressão de que a laje de
mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a
estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi,
sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto
apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu
via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos
cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz
do Senhor."
O morto também lia o que estava escrito no seu
túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a
raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando
com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e,
com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras luminosas,
como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos
cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem
desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos,
roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."
Quando acabou de escrever, o morto contemplou
sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos,
que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as
mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a
verdade.
E eu via que todos tinham sido carrascos dos
parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos,
caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos
vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos
devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e
mulheres ditos irrepreensíveis.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua
morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge
ignorar nesta Terra.
Imaginei que também ela
devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por
entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os
esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.
Reconheci-a de longe, sem ver o
rosto envolto no sudário.
E sobre a cruz de mármore onde
há pouco lera:
"Ela amou, foi
amada, e morreu", divisei:
"Tendo saído, um dia, para
enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”.
Parece que me encontraram
inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.
31 de maio de 1887.
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