Gabriel García Márquez
História de um deicídio: o esplendor passado
Esse conto [‘Um Dia Depois do Sábado’] está situado em Macondo, no período da decadência
Esse conto [Um Dia Depois do Sábado] está situado em Macondo, no período da decadência. A perspectiva é itinerante, se desloca de um personagem para outro, mas a maior parte da história está referida pelo ponto de vista que corresponde a seres inequivocamente instalados no vértice da sociedade: a viúva Rebeca e o padre Antonio Isabel del Santísimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero. Pela perspectiva aristocrática, já sabemos, a história gravita com força sobre o presente, e com efeito aqui, como em O Enterro do Diabo: A Revoada, há muitos dados relativos ao passado da sociedade fictícia. Alguns confirmam dados anteriores, outros os ampliam, outros os modificam. O antigo esplendor está associado, na memória do padre Antonio Isabel, à banana. Há anos só passam por Macondo quatro vagões desvencilhados e descoloridos, dos quais ninguém desce: “Antes era diferente, quando você podia ficar uma tarde inteira vendo passar um trem carregado de bananas: cento e quarenta vagões carregados de frutas, passando sem parar, até quando passava, já entrada a noite, o último vagão com um homem segurando uma lanterna verde”. Cento e quarenta vagões, a desmesura: o que era uma imagem retórica nos relatos anteriores se transforma em característica da realidade fictícia. As duas épocas de Macondo, o apogeu e a decadência, estão claramente diferenciadas aqui também, como em O Enterro do Diabo: A Revoada, em função das plantações de banana. Aparece um novo dado histórico: “Talvez daí tenha vindo seu costume de comparecer todos os dias à estação, inclusive depois que balearam os trabalhadores e se acabaram as plantações de banana...”. É a primeira menção à matança de trabalhadores que terá amplo desenvolvimento em Cem Anos de Solidão.
Com relação às guerras civis, Um Dia Depois do Sábado não é esclarecedor, e sim obscurecedor. Em O Enterro do Diabo: A Revoada se insinuava que a fundação de Macondo havia sido realizada por pessoas que, como a família do coronel, fugiam das guerras, o que permitia situar a fundação em fins do século XIX. Entretanto, aqui se indica que o padre Antonio Isabel “se enterrou no povoado desde muito antes da guerra de 85”, o que retrocede a fundação de forma considerável e desbarata a cronologia que parecia reger a história fictícia. O rapaz de Manaure nasceu “numa chuvosa madrugada da última guerra civil”, e durante a ação do conto tem 22 anos. Se essa última guerra civil for a de 1885, o conto ocorreria em 1907, mais ou menos, mas esta época não corresponde à decadência de Macondo, a qual, segundo O Enterro do Diabo: A Revoada, começou por volta de 1918. Estas contradições da realidade fictícia (que para ela não o são) mostram a liberdade e a mobilidade de que goza, sua natureza diferente da realidade real, que só pode mudar para frente, ao passo que aquela vai se modificando também para trás.
O coronel Aureliano Buendía aparece novamente, como uma reminiscência, e sua silhueta parece sempre enigmática. Algo mais se sabe dele, entretanto: é primo-irmão da viúva Rebeca e primo daquele que foi seu marido, José Arcadio Buendía; a viúva o considera, não sabemos por que, um ingrato. Parece estar ausente, como em O Enterro do Diabo: A Revoada. A viúva Rebeca, imprecisa em suas aparições anteriores, se enriquece biograficamente: vive em uma casa com dois corredores e nove alcovas, acompanhada de sua criada e confidente Argenida; seu bisavô paterno lutou durante a guerra da Independência no bando dos realistas; uma lenda turva a vincula à morte do seu marido, que vinte anos atrás, logo depois de um tiro que ninguém sabe quem disparou, “caiu de bruços entre um ruído de fivelas e esporas sobre as perneiras ainda quentes que acabava de tirar”. Este episódio reaparece, com contornos reais-imaginários, em Cem Anos de Solidão. A viúva vive enclausurada, se veste ridiculamente, permanece em Macondo por um obscuro temor à novidade. O padre Antonio Isabel retorna em Os Funerais da Mamãe Grande, em A Má Hora e em Cem Anos de Solidão. O prefeito aparece só um momento, e não se diz que esteja associado a feitos de violência e corrupção, embora seu físico inspire à viúva Rebeca uma impressão de solidez bestial. Desapareceram a violência e a corrupção políticas em Macondo? Desapareceu o interesse por esse plano do real objetivo. Mudou a perspectiva, e já vimos que para a visão aristocrática a política é algo remoto e repulsivo, uma experiência prescindível. A viúva Rebeca e o padre Antonio Isabel são tão cegos para a política como a classe popular: só quando a perspectiva se situa na classe média a política ocupa lugar dominante no real objetivo. Aqui ela foi abolida, e são o passado, a religião e o imaginário que prevalecem na realidade fictícia.
Manaure, onde havia ido à escola o protagonista de Ninguém Escreve ao Coronel, adquire uma dimensão maior. O forasteiro da história nasceu ali, precisamente na escola, que sua mãe havia frequentado durante 18 anos. Comparada a Macondo, é menor, isolada e pobre. O moço se lembra dele como “um povoado verde e plácido, com galinhas de longas patas cinzentas que atravessavam a sala de aula para se dedicarem a botar debaixo do filtro de água”. Está distante e na altura, pois ali não se planta banana, e sim café, e carece de sistema de iluminação elétrico. Como o herói de Ninguém Escreve ao Coronel, a mãe do forasteiro espera uma aposentadoria.
O semblante urbano de Macondo se perfila mais. Conhecíamos sua estação, suas amendoeiras, seus alcaravões, seu calor: agora conhecemos seu hotel. Chama-se também Macondo, carece de clientes, seu menu é um prato de sopa com um osso pelado e picadinho de banana verde, tem um gramofone de corda, seus proprietários são uma mãe e sua filha de caras idênticas. Tínhamos visto Macondo na hora da sesta; agora a vemos num domingo de amanhã: “Ruas sem mato, casas com mosquiteiros e um céu profundo e maravilhoso sobre um calor asfixiante”; a rua principal desemboca “em uma pequena praça empedrada com um edifício de cal com uma torre e um galo de madeira na cúspide e um relógio parado nas quatro e dez”.
Na realidade fictícia até agora só se liam jornais, panfletos políticos clandestinos, o Almanaque Bristol, presumivelmente as revistas de cinema com cujas caras Ana havia empapelado seu quarto. Em Um Dia Depois do Sábado, um personagem teve uma formação clássica. O padre Antonio Isabel leu os gregos no seminário, sobretudo Sófocles, “em seu idioma original”. Ele confundia os clássicos, chamava-os “os velhinhos de antes”. Aparentemente, também estudou francês. Seu coroinha se chama (ou ele o chama de) Pitágoras.
Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura peruano, publicou em 1971 ‘História de Um Deicídio’, minucioso estudo literário que seria sua tese de doutorado sobre a vida de Gabriel García Márquez desde os primeiros contos até ‘Cem Anos de Solidão’. Este extrato, incluído nas ‘Obras Completas de Vargas Llosa’, editadas pela Galáxia Gutenberg, pertence a uma certeira análise sobre o conto ‘Um Dia Depois do Sábado’.
EL PAÍS
PESSOA
Vargas Llosa / O exemplo uruguaio
Vargas Llosa / A libertade nas ruas
Winston Manrique Sabogal / Vargas Llosa de vida e de livros
García Márquez / O boom e a blingagem da literatura
Gabriel García Márquez / Historia de um deicídio
O último livro de Vargas Llosa / Radiografia sem diagnóstico
Vargas Llosa / Esta realidade pode ser o inferno
Vargas Llosa / O fracasso de Ortega y Gasset
Vargas Llosa / A morte de Aurora Bernárdez
Vargas Llosa / A era dos impostores
Vargas Llosa / Saudades de Paris
Vargas Llosa / Je suis Charlie Hebdo
Vargas Llosa / A felicidade, rá, rá, rá
Vargas Llosa / À beira do abismo
Urariano Mota / O escritor Mario Vargas Llosa e sua tia Júlia
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