segunda-feira, 14 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Historia de um deicídio


Gabriel García Márquez

História de um deicídio: o esplendor passado

Esse conto [‘Um Dia Depois do Sábado’] está situado em Macondo, no período da decadência



O júri do Prêmio Biblioteca Breve de 1970: da esquerda para a direita, Juan García Hortelano, Carlos Barral, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Isabel Mirete, Salvador Clotas e José María Castellet. / EFE
Esse conto [Um Dia Depois do Sábado] está situado em Macondo, no período da decadência. A perspectiva é itinerante, se desloca de um personagem para outro, mas a maior parte da história está referida pelo ponto de vista que corresponde a seres inequivocamente instalados no vértice da sociedade: a viúva Rebeca e o padre Antonio Isabel del Santísimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero. Pela perspectiva aristocrática, já sabemos, a história gravita com força sobre o presente, e com efeito aqui, como em O Enterro do Diabo: A Revoada, há muitos dados relativos ao passado da sociedade fictícia. Alguns confirmam dados anteriores, outros os ampliam, outros os modificam. O antigo esplendor está associado, na memória do padre Antonio Isabel, à banana. Há anos só passam por Macondo quatro vagões desvencilhados e descoloridos, dos quais ninguém desce: “Antes era diferente, quando você podia ficar uma tarde inteira vendo passar um trem carregado de bananas: cento e quarenta vagões carregados de frutas, passando sem parar, até quando passava, já entrada a noite, o último vagão com um homem segurando uma lanterna verde”. Cento e quarenta vagões, a desmesura: o que era uma imagem retórica nos relatos anteriores se transforma em característica da realidade fictícia. As duas épocas de Macondo, o apogeu e a decadência, estão claramente diferenciadas aqui também, como em O Enterro do Diabo: A Revoada, em função das plantações de banana. Aparece um novo dado histórico: “Talvez daí tenha vindo seu costume de comparecer todos os dias à estação, inclusive depois que balearam os trabalhadores e se acabaram as plantações de banana...”. É a primeira menção à matança de trabalhadores que terá amplo desenvolvimento em Cem Anos de Solidão.

Há anos só passam por Macondo quatro vagões desvencilhados
Com relação às guerras civis, Um Dia Depois do Sábado não é esclarecedor, e sim obscurecedor. Em O Enterro do Diabo: A Revoada se insinuava que a fundação de Macondo havia sido realizada por pessoas que, como a família do coronel, fugiam das guerras, o que permitia situar a fundação em fins do século XIX. Entretanto, aqui se indica que o padre Antonio Isabel “se enterrou no povoado desde muito antes da guerra de 85”, o que retrocede a fundação de forma considerável e desbarata a cronologia que parecia reger a história fictícia. O rapaz de Manaure nasceu “numa chuvosa madrugada da última guerra civil”, e durante a ação do conto tem 22 anos. Se essa última guerra civil for a de 1885, o conto ocorreria em 1907, mais ou menos, mas esta época não corresponde à decadência de Macondo, a qual, segundo O Enterro do Diabo: A Revoada, começou por volta de 1918. Estas contradições da realidade fictícia (que para ela não o são) mostram a liberdade e a mobilidade de que goza, sua natureza diferente da realidade real, que só pode mudar para frente, ao passo que aquela vai se modificando também para trás.

A perspectiva é itinerante, se desloca de um personagem para outro
O coronel Aureliano Buendía aparece novamente, como uma reminiscência, e sua silhueta parece sempre enigmática. Algo mais se sabe dele, entretanto: é primo-irmão da viúva Rebeca e primo daquele que foi seu marido, José Arcadio Buendía; a viúva o considera, não sabemos por que, um ingrato. Parece estar ausente, como em O Enterro do Diabo: A Revoada. A viúva Rebeca, imprecisa em suas aparições anteriores, se enriquece biograficamente: vive em uma casa com dois corredores e nove alcovas, acompanhada de sua criada e confidente Argenida; seu bisavô paterno lutou durante a guerra da Independência no bando dos realistas; uma lenda turva a vincula à morte do seu marido, que vinte anos atrás, logo depois de um tiro que ninguém sabe quem disparou, “caiu de bruços entre um ruído de fivelas e esporas sobre as perneiras ainda quentes que acabava de tirar”. Este episódio reaparece, com contornos reais-imaginários, em Cem Anos de Solidão. A viúva vive enclausurada, se veste ridiculamente, permanece em Macondo por um obscuro temor à novidade. O padre Antonio Isabel retorna em Os Funerais da Mamãe Grande, em A Má Hora e em Cem Anos de Solidão. O prefeito aparece só um momento, e não se diz que esteja associado a feitos de violência e corrupção, embora seu físico inspire à viúva Rebeca uma impressão de solidez bestial. Desapareceram a violência e a corrupção políticas em Macondo? Desapareceu o interesse por esse plano do real objetivo. Mudou a perspectiva, e já vimos que para a visão aristocrática a política é algo remoto e repulsivo, uma experiência prescindível. A viúva Rebeca e o padre Antonio Isabel são tão cegos para a política como a classe popular: só quando a perspectiva se situa na classe média a política ocupa lugar dominante no real objetivo. Aqui ela foi abolida, e são o passado, a religião e o imaginário que prevalecem na realidade fictícia.

O coronel Aureliano Buendía aparece como uma reminiscência
Manaure, onde havia ido à escola o protagonista de Ninguém Escreve ao Coronel, adquire uma dimensão maior. O forasteiro da história nasceu ali, precisamente na escola, que sua mãe havia frequentado durante 18 anos. Comparada a Macondo, é menor, isolada e pobre. O moço se lembra dele como “um povoado verde e plácido, com galinhas de longas patas cinzentas que atravessavam a sala de aula para se dedicarem a botar debaixo do filtro de água”. Está distante e na altura, pois ali não se planta banana, e sim café, e carece de sistema de iluminação elétrico. Como o herói de Ninguém Escreve ao Coronel, a mãe do forasteiro espera uma aposentadoria.
O semblante urbano de Macondo se perfila mais. Conhecíamos sua estação, suas amendoeiras, seus alcaravões, seu calor: agora conhecemos seu hotel. Chama-se também Macondo, carece de clientes, seu menu é um prato de sopa com um osso pelado e picadinho de banana verde, tem um gramofone de corda, seus proprietários são uma mãe e sua filha de caras idênticas. Tínhamos visto Macondo na hora da sesta; agora a vemos num domingo de amanhã: “Ruas sem mato, casas com mosquiteiros e um céu profundo e maravilhoso sobre um calor asfixiante”; a rua principal desemboca “em uma pequena praça empedrada com um edifício de cal com uma torre e um galo de madeira na cúspide e um relógio parado nas quatro e dez”.

São o passado e a religião que prevalecem na realidade fictícia
Na realidade fictícia até agora só se liam jornais, panfletos políticos clandestinos, o Almanaque Bristol, presumivelmente as revistas de cinema com cujas caras Ana havia empapelado seu quarto. Em Um Dia Depois do Sábado, um personagem teve uma formação clássica. O padre Antonio Isabel leu os gregos no seminário, sobretudo Sófocles, “em seu idioma original”. Ele confundia os clássicos, chamava-os “os velhinhos de antes”. Aparentemente, também estudou francês. Seu coroinha se chama (ou ele o chama de) Pitágoras.
Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura peruano, publicou em 1971 ‘História de Um Deicídio’, minucioso estudo literário que seria sua tese de doutorado sobre a vida de Gabriel García Márquez desde os primeiros contos até ‘Cem Anos de Solidão’. Este extrato, incluído nas ‘Obras Completas de Vargas Llosa’, editadas pela Galáxia Gutenberg, pertence a uma certeira análise sobre o conto ‘Um Dia Depois do Sábado’.

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