quinta-feira, 3 de abril de 2014

Guy de Maupassant / Meu tio Júlio



Guy de Maupassant
Meu tio Júlio

Um velho pobre, de barba branca, nos pediu ajuda. Meu companheiro, José Davranche, lhe deu cem tostões. Fiquei surpreso. Ele me disse:
–Este miserável me lembrou uma história que vou lhe contar e cuja recordação me persegue sem cessar. Foi assim:
Minha família, originária do Havre, não era rica. A gente se virava, e só. O pai trabalhava, voltava tarde do escritório e não ganhava grande coisa. Eu tinha duas irmãs.
Minha mãe sofria muito com as dificuldades em que vivíamos, e seguido encontrava palavras azedas para o seu marido, censuras veladas e pérfidas. O pobre homem fazia então um gesto que me afligia. Passava a mão aberta na testa, como que para enxugar um suor inexistente, e não respondia nada. Eu sentia sua dor impotente. Economizávamos em tudo; nunca aceitávamos um jantar, para não ter de retribuí-lo; comprávamos os mantimentos nas promoções, os saldos de estoque. Minhas irmãs faziam elas mesmas seus vestidos e tinham longas discussões sobre o preço de uma fita que custava quinze centavos o metro. Nossa alimentação cotidiana consistia em uma sopa gorda e cozido de carne em que só o molho variava. Era saudável e reconfortante, segundo parece; eu teria preferido outra coisa.
Faziam-me cenas abomináveis pelos botões perdidos e as calças rasgadas.
Mas todo domingo íamos dar nossa volta pelo molhe com nossas melhores roupas. Meu pai, de sobrecasaca, cartola e luvas, dava o braço à minha mãe, enfeitada como um navio em dia de festa. Minhas irmãs, as primeiras a se aprontarem, esperavam o sinal da partida; mas, no último momento, sempre se descobria uma mancha esquecida na sobrecasaca do pai de família, e era preciso limpá-la rapidamente com um pano molhado em benzina.
Meu pai, de cartola na cabeça, esperava, em mangas de camisa, que a operação terminasse, enquanto minha mãe se apressava, tendo ajeitado seus óculos de míope e tirado as luvas para não estragá-las.
Então nos púnhamos cerimoniosamente a caminho. Minhas irmãs iam na frente, de braços dados. Estavam em idade de casar, e eram exibidas na cidade. Eu ficava à esquerda de minha mãe, e à sua direita ia meu pai. E me lembro do ar pomposo de meus pobres pais naqueles passeios dominicais, a rigidez de seus traços, a severidade de sua atitude. Andavam com um passo grave, o corpo ereto, as pernas rijas, como se um assunto de extrema importância dependesse de sua aparência.
E todo domingo, vendo entrar os grandes navios  que regressavam de países longínquos e desconhecidos, meu pai invariavelmente pronunciava as mesmas palavras:
–E se Júlio estivesse lá dentro, que surpresa, hein?
Meu tio Júlio, o irmão de meu pai, era a única esperança da família, depois de ter sido o seu terror. Eu ouvia falar nele desde criança, e me parecia que o reconheceria de imediato, tão familiar tinha se tornado para mim o pensar nele. Eu sabia de todos os pormenores de sua existência até o dia de sua partida para a América, embora desse período da sua vida só se falasse em voz baixa.
Ele tivera, ao que parece, um mau comportamento, o que quer dizer que ele tinha consumido algum dinheiro, sem dúvida o pior crime para as famílias pobres. Entre os ricos, um homem que se diverte faz besteiras. Com um sorriso, é chamado de boêmio. Entre os necessitados, um rapaz que obriga os pais a desfalcar o capital passa a ser um mau sujeito, um miserável, um malandro!
E esta distinção é correta, ainda que o fato seja o mesmo, pois só as conseqüências determinam a gravidade do ato.
Enfim, o tio Júlio tinha diminuído consideravelmente a herança com a qual meu pai contava; depois de ter, aliás, consumido sua parte até o último tostão.
Tinham-no despachado para a América, como se fazia na época, num navio mercante que ia do Havre a Nova York.
Chegando lá, meu tio Júlio se estabeleceu como vendedor de não sei o quê, e logo escreveu que estava ganhando algum dinheiro e esperava poder ressarcir meu pai pelo prejuízo que lhe tinha dado. Esta carta causou uma profunda emoção na família. Júlio, que não valia dez réis de mel coado, como se diz, tornou-se de repente um homem honesto, um rapaz de bom coração, um verdadeiro Davranche, íntegro como todos os Davranche.
Um capitão nos contou, além disso, que ele alugara uma grande loja e que seu comércio era de monta.
Uma segunda carta, dois anos mais tarde, dizia: “Meu caro Filipe, estou escrevendo para que você não se preocupe com minha saúde, que está boa. Os negócios vão bem. Parto amanhã para uma longa viagem pela América do Sul. Talvez passe vários anos sem lhe dar notícias. Se eu não escrever, não fique preocupado. Voltarei para o Havre assim que fizer fortuna. Espero que não demore muito, e aí viveremos felizes juntos...”
Essa carta se tornara o evangelho da família. Era lida a torto e a direito, era mostrada a todo o mundo.
De fato, durante dez anos o tio Júlio não deu mais notícias; mas a esperança de meu pai aumentava à medida que o tempo andava; e também minha mãe dizia freqüentemente:
–Quando este abençoado Júlio chegar, nossa vida vai melhorar. Aí está um que soube se virar!
E todo domingo, vendo chegar do horizonte os enormes vapores negros vomitando do céu serpentes de fumaça, meu pai repetia sua eterna frase:
–E se Júlio estivesse lá dentro, que surpresa, hein?
Quase esperávamos vê-lo agitar um lenço e gritar:
–Ei, Filipe!
Tínhamos arquitetado mil projetos sobre aquele retorno garantido; até íamos comprar, com o dinheiro do tio, uma pequena casa de campo, perto de Ingouville. Eu não afirmaria que meu pai já não tivesse iniciado negociações neste sentido.
A mais velha de minhas irmãs estava então com vinte e oito anos; a outra com vinte e seis. Não tinham casado, o que era um grande aborrecimento para todo o mundo.
Enfim um pretendente se apresentou para a segunda. Um empregado que, sem ser rico, era honrado. Sempre tive a convicção de que a carta do tio Júlio, mostrada certa noite, tinha acabado com as hesitações e determinado a decisão do jovem.
Jersey é o ideal de viagem para a gente pobre. Não fica longe; cruza-se o mar num navio e se chega em terra estrangeira, já que a ilhota pertence aos ingleses. Um francês, portanto, com duas horas de navegação, pode se proporcionar a visão de um povo vizinho em seu chão e estudar os costumes, aliás deploráveis, desta ilha coberta pelo pavilhão britânico, no dizer das pessoas que falam com simplicidade.
Esta viagem para Jersey tornou-se nossa preocupação, nossa única expectativa, nosso sonho de todos os instantes.
Enfim partimos. Vejo como se fosse ontem: o vapor aquecendo junto ao cais de Granville; meu pai, inquieto, fiscalizando o embarque de nossos três volumes; minha mãe, preocupada, segurando o braço de minha irmã não casada, que parecia perdida como o último franguinho da ninhada desde que a outra se fora e, atrás de nós, os recém casado que sempre ficavam para trás, o que me obrigava a virar seguidamente a cabeça.
A embarcação apitou. Subimos a bordo e o navio, deixando o cais, afastou-se sobre um mar plano como uma mesa de mármore verde. Olhávamos fugir a costa, felizes e orgulhosos como todos os que viajam pouco.
Meu pai encolhia a barriga, debaixo da sobrecasaca cujas manchas todas tinham sido removidas com cuidado naquela mesma manhã, e espalhava à sua volta o cheiro de benzina dos dias de passeio, que me fazia reconhecer os domingos.
De repente, ele avistou duas senhoras elegantes a quem dois senhores ofereciam ostras. Um velho marinheiro maltrapilho abria as conchas com uma facada e as entregava aos senhores, que em seguida as passavam para as senhoras. Elas comiam de maneira delicada, segurando a casca sobre um lenço fino e avançando os lábios para não manchar o vestido. Depois bebiam a água com um pequeno gesto rápido e jogavam a concha no mar.
Meu pai, sem dúvida, ficou encantado com este ato distinto de comer ostras num navio em marcha. Achou de bom tom, refinado, superior, e aproximando-se de minha mãe e minhas irmãs perguntou:
–Vocês aceitam algumas ostras?
Minha mãe hesitava, por causa da despesa; mas minhas duas irmãs concordaram prontamente. Disse minha mãe, num tom contrariado:
–Tenho medo que me faça mal ao estômago. Dê só para as crianças, mas não muito, elas podem ficar doentes.
Então, voltando-se para mim, acrescentou:
–¬Para José não precisa; não se deve mimar os meninos.
Fiquei então ao lado de minha mãe, achando injusta esta distinção. Com os olhos seguia meu pai, que conduzia pomposamente suas duas filhas e seu genro em direção ao velho marinheiro maltrapilho.
As duas senhoras recém tinham ido embora, e meu pai mostrava às minhas irmãs como era preciso fazer para comer sem que a água escorresse; ele quis até dar o exemplo e apanhou uma ostra. Tentando imitar as senhoras, logo derramou todo o líquido na sobrecasaca, e ouvi minha mãe murmurar:
–Seria melhor que ele tivesse ficado quieto
Mas de repente meu pai me pareceu preocupado; ele se afastou alguns passos, olhou fixamente sua família amontoada em volta do ostreiro e, bruscamente, veio em nossa direção. Achei-o muito pálido, com um olhar estranho. Ele disse, a meia-voz, para a minha mãe:
–É incrível como esse homem que está abrindo as ostras se parece com Júlio.
Minha mãe, estupefata, perguntou:
–Que Júlio?
Meu pai replicou:
–Ora... o meu irmão... Se eu não o soubesse em boa situação, na América, pensaria que era ele.
Minha mãe, apavorada, balbuciou:
–Está louco! Já que você sabe que não é ele, para quê dizer estas bobagens?
Meu pai insistia:
–Pois vá vê-lo, Clarisse; prefiro que você mesma verifique, com seus próprios olhos.
Ela se levantou e foi ter com as filhas. Eu também olhava para o homem. Era velho, sujo, todo enrugado, e não desviava os olhos de sua tarefa.
Minha mãe voltou. Percebi que ela tremia. Pronunciou muito depressa:
–Acho que é ele. Vá então pedir informações ao capitão. Mas cuidado, seja discreto, não vá agora este tratante nos cair nas costas de novo!
Meu pai se afastou, mas eu o segui. Sentia-me estranhamente emocionado.
O capitão, um senhor alto, magro, com longas suíças, andava pelo passadiço com um ar importante, como se estivesse comandando o correio das Índias.
Meu pai o abordou cerimoniosamente, interrogando-o sobre sua profissão com acompanhamento de elogios:
–Qual era a importância de Jersey? Suas produções? Sua população? Seus hábitos? Seus costumes? A natureza do solo, etc., etc.
Era de pensar que se tratava, no mínimo, dos Estados Unidos da América.
Aí falaram sobre a embarcação que nos levava, o Express, aí chegaram à tripulação. Meu pai, por fim, com voz perturbada:
–O senhor tem aí um velho vendedor de ostras que parece bem interessante. Conhece algum particular sobre o sujeito?
O capitão, já se irritando com aquela conversa, respondeu secamente:
–É um velho vagabundo francês que encontrei na América e repatriei. Diz que ele tem parentes no Havre, mas não quer voltar para junto deles, porque lhes está devendo dinheiro. Chama-se Júlio... Júlio Darmanche ou Darvanche, enfim, uma coisa parecida. Diz que lá foi rico por um tempo, mas veja a quê está reduzido agora.
Meu pai, que estava ficando livido, articulou, com a garganta apertada e os olhos esgazeados:
–Ah! ah! muito bem... bem mesmo... Não me surpreende... Agradeço muitíssimo, capitão.
E foi embora, enquanto, estupefato, o marujo o via afastar-se.
Voltou para junto de minha mãe, tão descomposto que ela lhe disse:
–Sente-se; vão desconfiar de alguma coisa.
Ele caiu sobre o banco gaguejando:
–É ele, é ele mesmo!
Então perguntou:
–Que vamos fazer?
Ela respondeu vivamente:
–Precisamos afastar as crianças. Já que José sabe de tudo, que vá buscá-las. Precisamos principalmente tomar cuidado para que o nosso genro não desconfie de nada.
Meu pai parecia aterrado. Murmurou:
–Que catástrofe!
Minha mãe acrescentou, subitamente furiosa:
–Sempre desconfiei que este ladrão não faria nada, e que teríamos de suportá-lo novamente! Como se se pudesse esperar alguma coisa de um Davranche!...
E meu pai passou a mão na testa, como fazia diante das censuras da mulher.
Ela acrescentou:
–Agora, dê dinheiro a José para pagar as ostras. Só faltava sermos reconhecidos por este mendigo. Faria um belo efeito no navio. Vamos embora para o outro lado, e dê um jeito para que esse homem não se aproxime de nós!
Ela levantou, e eles se afastaram depois de me terem dado uma moeda de cem tostões.
Surpresas, minhas irmãs esperavam o pai. Declarei que minha mãe tinha ficado um pouco indisposta por causa do mar, e perguntei ao abridor de ostras:
–Quanto é que lhe devemos, senhor?
Eu tinha vontade de dizer: meu tio.
Ele respondeu:
–Dois francos e cinqüenta.
Entreguei meus cem tostões e ele me deu o troco.
Eu olhava a mão dele, uma pobre mão de marinheiro, toda enrugada, e olhava o seu rosto, um velho e miserável rosto triste, acabrunhado, pensando comigo:
–É o meu tio, o irmão do papai, meu tio!
Dei-lhe dez tostões de gorjeta. Ele me agradeceu:
–Deus o abençoe, meu senhorzinho!
Com a entonação de um pobre que recebe uma esmola. Pensei que ele devia ter mendigado, por lá!
Minhas irmãs me contemplavam, estupefatas com minha generosidade.
Quando devolvi os dois francos a meu pai, minha mãe, surpresa, perguntou:
–Foram três francos?... Não é possível.
Declarei com voz firme:
–Dei dez tostões de gorjeta.
Minha mãe teve um sobressalto e me olhou bem nos olhos:
–Você está louco! Dar dez tostões para esse homem, esse indigente!...
Deteve-se a um olhar de meu pai, que indicava o genro.
Então nos calamos.
À nossa frente, no horizonte, uma sombra violenta parecia surgir do mar. Era Jersey.
Quando nos aproximamos dos molhes, me veio ao peito um desejo violento de ver mais uma vez meu tio Júlio, de me aproximar, de lhe dizer alguma coisa consoladora, carinhosa.
Mas, como ninguém mais estava comendo ostras, ele tinha sumido, descido sem dúvida para o fundo do porão imundo onde morava o miserável.
E retornamos pelo barco de Saint-Malo, para não encontrar com ele. Miha mãe estava morrendo de preocupação.
Nunca tornei a ver o irmão de meu pai!
É por isso que você às vezes vai me ver dando cem tostões aos vagabundos.


Guy de Maupassant
Dois Contos
Porto Alegre, Editora Paraula, 1993.





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