Mario Vargas Llosa
Sair da barbárie
O Peru tem a oportunidade de superar a homofobia aprovando o projeto de Lei da União Civil do congressista Carlos Bruce. Contra isso está o obscurantismo agressivo da hierarquia eclesiástica
19 de abril de 2014
O Peru tem nestes dias uma oportunidade para dar mais um passo no caminho da cultura da liberdade, deixando para trás uma das formas mais difundidas e praticadas de barbárie, que é a homofobia, ou seja, o ódio aos homossexuais. O congressista Carlos Bruce apresentou um projeto de lei de União Civil entre pessoas do mesmo sexo, que conta com o apoio do Ministério da Justiça, da Defensoria Pública, das Nações Unidas e da Anistia Internacional. Os principais partidos políticos representados no Congresso, tanto de direita como de esquerda, parecem favoráveis à iniciativa, de forma que a lei tem muitas possibilidades de ser aprovada.
Desse modo, o Peru seria o sexto país latino-americano e o 61º no mundo a reconhecer legalmente o direito dos homossexuais de viverem como casal, constituindo uma instituição civil equivalente (embora não idêntica) ao casamento. Se der esse passo, tão importante como ter finalmente se livrado da ditadura e do terrorismo, o Peru começará a reparar muitos milhões de peruanos que, ao longo da sua história, por serem homossexuais, foram escarnecidos e vilipendiados até extremos indescritíveis, presos, destituídos dos seus direitos mais elementares, expulsos de seus trabalhos, submetidos à discriminação e ao assédio na vida profissional e privada e apresentados como anormais e degenerados.
Nesse exato momento, no previsível debate que esse projeto de lei provocou, a Conferência Episcopal Peruana, em comunicado da época das cavernas e de uma ignorância crassa, afirma que o homossexualismo “contraria a ordem natural”, “atenta contra a dignidade humana” e “ameaça a orientação saudável das crianças”. O inefável arcebispo primaz de Lima, o cardeal Cipriani, por sua vez, pediu que se faça um referendum nacional sobre a União Civil. Muitos nos perguntamos por que não pediu essa consulta popular quando o regime ditatorial de Fujimori, com o qual foi tão compreensivo, mandou esterilizar manu militari e com pérfidas mentiras milhares de camponesas (fazendo-as acreditar que iriam vaciná-las), muitas das quais morreram de hemorragia causada por essa criminosa operação.
O fanatismo religioso e o machismo causam atropelos e sofrimentos a muitos cidadãos
Há alguns anos, temo, uma iniciativa como a do congressista Carlos Bruce (que, diga-se de passagem, acaba de ser ameaçado de morte por um fanático) teria sido impossível, pela férrea influência que o setor mais troglodita da igreja católica exercia sobre a opinião pública em questões sexuais, e, embora a prática do homossexualismo fosse a opção exercida por um segmento considerável da sociedade, esse exercício era arriscado, clandestino e vergonhoso porque quem se atrevia a reivindicá-lo à luz do dia era objeto de instantâneo linchamento público. As coisas mudaram para melhor desde então, embora ainda reste muita erva daninha por arrancar. Vejo no atual debate que intelectuais, jornalistas, artistas, profissionais, dirigentes políticos e sindicais, ONGs, instituições e organizações católicas de base se pronunciam com mediana clareza contra explosões homofóbicas, como as da Conferência Episcopal e as de algumas das seitas evangélicas que estão na mesma linha ultraconservadora; e lembram que o Peru é constitucionalmente um país laico, onde todos têm os mesmos direitos. E que, entre os direitos de que gozam os cidadãos em um país democrático, figura o de optar livremente por sua identidade sexual.
As opções sexuais são diferentes, mas não normais e anormais segundo se seja gay, lésbica ou heterossexual. E por isso gays, lésbicas e heterossexuais devem gozar dos mesmos direitos e obrigações, sem serem perseguidos e discriminados por isso. Acreditar que o normal é ser heterossexual e que os homossexuais são “anormais” é uma crença preconceituosa, desmentida pela ciência e pelo sentido comum; e que só orienta a legislação discriminatória em países atrasados e incultos, onde o fanatismo religioso e o machismo são fonte de atropelos e da desgraça e sofrimento de inúmeros cidadãos cujo único delito é pertencer a uma minoria. A perseguição ao homossexual predicada por aqueles que difundem sandices irracionais, como a “anomalia” homossexual, é tão cruel e desumana como a do racismo nazista ou branco que considera os judeus, os negros e os amarelos seres inferiores por serem diferentes.
A união civil é, está claro, apenas um passo adiante para ressarcir as minorias sexuais da discriminação e da perseguição da qual foram e continuam sendo objeto. Mas será mais fácil combater o preconceito e a ignorância que sustentam a homofobia quando os cidadãos comuns puderem ver que os casais homossexuais que constituem uniões civis estabelecidas pelo amor recíproco não alteram em nada a vida comum e cotidiana dos outros, como ocorreu em todos (todos sem exceção) os países que autorizaram as uniões civis ou os casamentos entre casais do mesmo sexo. Onde se realizaram as apocalípticas profecias de que, se se permitem casais homossexuais, a degeneração sexual se espalhará por todas as partes? Ao contrário, a liberdade sexual, como a liberdade política e a liberdade cultural, garante essa paz que só resulta da convivência pacífica entre ideias, valores e costumes diversos. Não há nada que exacerbe tanto a vida sexual, chegando a desviá-la até extremos às vezes vertiginosos, como a repressão e a negação do sexo. Sacudida está pelos casos de pedofilia que a afetaram em quase todo o mundo, a igreja católica deveria compreender isso melhor que ninguém e atuar de forma consequente frente a esse assunto, ou seja, de forma mais moderna e tolerante.
A liberdade sexual, como a política e a cultural, garante a convivência pacífica entre ideias
Eu acredito que isso é uma realidade dos nossos dias e que cada vez há mais católicos no mundo – laicos e religiosos – dispostos a aceitar que o homossexual é um ser tão normal como o heterossexual; e que, como este, deve ter direitos de cidadão, de poder formar uma família e gozar das mesmas prerrogativas sociais e jurídicas que os casais heterossexuais.
A chegada ao Vaticano do Papa Francisco começou com muito bons sintomas, pois os primeiros gestos, declarações e iniciativas do novo Pontífice pareciam augurar reformas profundas no seio da igreja que a integrariam à vida e à cultura do nosso tempo. Ainda não se concretizaram, mas não se pode descartar que aconteça. Todos nos lembramos da sua resposta quando foi perguntado sobre os gays: “Quem somos nós para julgá-los?” Era uma resposta que insinuava muitas coisas positivas que demoram para chegar. Não convém a ninguém -- tampouco aos que não somos crentes – que, por sua teimosa adesão a uma tradição intolerante e dogmática, uma das grandes igrejas do mundo se afaste da maioria da humanidade e se confine em margens retrógradas.
Isso está acontecendo no Peru, infelizmente, desde que sua hierarquia caiu nas mãos de um obscurantismo agressivo, como o que encarna o cardeal Cipriani e transpira o comunicado contra a União Civil da Conferência Episcopal. Digo infelizmente porque, embora seja agnóstico, sei muito bem que, para a maioria da coletividade a religião sempre é necessária, já que ela lhe fornece as convicções, crenças e valores básicos sobre o mundo e o além, sem os quais entra naquele estado de desconcerto e ansiedade que os antigos incas chamavam “a behetría”, essa desolação e confusão coletivas que, segundo o Inca Garcilaso, acometeu Tahuantinsuyo naquele período em que pareceu que os deuses se eclipsavam .
Eu tenho a esperança de que, contra o que dizem certas pesquisas, a lei da União Civil, pela qual acabam de se manifestar nas ruas de Lima tantos milhares de jovens e adultos, será aprovada e que o Peru terá avançado um pouco mais em direção a essa sociedade livre, diversa, culta – longe da barbárie – que, estou convencido, é o sonho alentado pela maioria dos peruanos.
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