Gabriel García Márquez
O Verão Feliz da Senhora Forbes
De
tarde, de regresso à casa, encontramos uma enorme serpente-do-mar pregada pelo
pescoço no batente da porta, e era negra e fosforescente e parecia um malefício
de ciganos, com os olhos ainda vivos e os dentes de serrote nas mandíbulas
escancaradas.
Eu
andava, na época, com uns nove anos, e senti um terror tão intenso diante
daquela aparição de delírio que fiquei sem voz. Mas meu irmão, que era dois
anos menor que eu, soltou os tanques de oxigênio, as máscaras e as nadadeiras e
saiu fugindo com um grito de espanto. A senhora Forbes ouviu-o da tortuosa
escada de pedras que trepava pelos recifes do embarcadouro até a casa e nos
alcançou, arquejante e lívida, mas bastou que visse o animal crucificado na
porta para compreender a causa do nosso horror. Ela costumava dizer que quando
duas crianças estão juntas, ambas são culpadas do que cada uma fizer sozinha,
de maneira que repreendeu a nós dois pelos gritos de meu irmão, e continuou
recriminando nossa falta de domínio. Falou em alemão, e não em inglês, como
estava estabelecido em seu contrato de preceptora, talvez porque ela também
estivesse assustada e se negasse a admitir. Mas assim que recobrou o fôlego
voltou ao seu inglês pedregoso e à sua obsessão pedagógica.
-
É uma Moréia helena – nos disse -, assim chamada porque foi um animal sagrado
para os gregos antigos.
Oreste,
o rapaz nativo que nos ensinava a nadar nas águas profundas, apareceu de
repente atrás dos arbustos de alcaparras. Estava com a máscara de mergulhador
na testa, um minúsculo calção de banho e um cinturão de couro com seis facas,
de formas e tamanhos diferentes, pois não concebia outra maneira de caçar
debaixo d’água que não fosse lutando corpo a corpo com os animais. Tinha uns
vinte anos, passava mais tempo nos fundos marinhos que em terra firme, e ele
próprio parecia um animal do mar com o corpo sempre besuntado de graxa de
motor. Quando o viu pela primeira vez, a senhora Forbes dissera a meus pais que
era impossível conceber um ser humano mais belo. No entanto, sua beleza não o
punha a salvo do rigor: também ele teve que suportar uma reprimenda em italiano
por haver pendurado a moréia na porta sem outra explicação possível que a de
assustar os meninos. Depois, a senhora Forbes mandou que a despregasse com o
respeito devido a uma criatura mítica e mandou-nos vestir para o jantar.
Fizemos
isso de imediato e tratando de não cometer um único erro, porque após duas
semanas sob o regime da senhora Forbes havíamos aprendido que nada era mais
difícil que viver. Enquanto estávamos debaixo do chuveiro no banheiro em penumbra,
percebi que meu irmão continuava pensando na moréia. “Tinha olhos de gente”,
disse ele. Eu estava de acordo, mas fiz com que ele achasse o contrário, e
consegui mudar de tema até acabar meu banho. Mas quando saí do chuveiro me
pediu que ficasse para acompanhá-lo.
-
Ainda é dia – disse a ele.
Abri
as cortinas. Era pleno agosto, e através da janela via-se a ardente planície
lunar até o outro lado da ilha, e o sol parado no céu.
-
Não é por isso – disse meu irmão. – É que tenho medo de ter medo.
No
entanto, quando chegamos à mesa havia feito as coisas com tanto esmero que
mereceu uma felicitação especial da senhora Forbes, e mais dois pontos em sua
conta da semana. Eu, em compensação, perdi dois pontos dos cinco que tinha
ganho, porque na última hora me deixei arrastar pela pressa e cheguei à sala de
jantar com a respiração alterada. Cada cinqüenta pontos nos davam direito a uma
ração dupla de sobremesa, mas nenhum dos dois havia conseguido passar dos
quinze. Era uma pena, de verdade, porque nunca mais encontramos pudins tão
deliciosos como os da senhora Forbes. Antes de começar o jantar rezávamos de pé
na frente dos pratos vazios. A senhora Forbes não era católica, mas seu
contrato estipulava que nos fizesse rezar seis vezes por dia, e havia aprendido
nossas orações para cumprir sua obrigação. Depois sentávamos, nós três,
reprimindo a respiração enquanto ela comprovava até o detalhe mais ínfimo de
nossa conduta, e só quando tudo parecia perfeito tocava a campainha. Então
entrava Fulvia Flamínea, a cozinheira, com a eterna sopa de macarrão daquele
verão aborrecido. No começo, quando estávamos sozinhos com nossos pais, a
comida era uma festa. Fulvia Fiamínea nos servia cacarejando ao redor da mesa,
com uma vocação de desordem que alegrava a vida, e no fim sentava-se conosco e
terminava comendo um pouco do prato de cada um. Mas desde que a senhora Forbes
tomou conta dos nossos destinos, nos servia em silêncio tão obscuro que
podíamos ouvir o burburinho da sopa fervendo na terrina. Jantávamos com a
espinha dorsal apoiada no respaldar da cadeira, mastigando dez vezes de um lado
e dez do outro, sem afastar os olhos da férrea e lânguida mulher outonal, que
recitava uma lição de urbanidade aprendida de cor. Era igual à missa de
domingo, mas sem o consolo das pessoas cantando.
No
dia em que encontramos a moréia pendurada na porta, a senhora Forbes falou-nos
dos deveres para com a pátria. Fulvia Flamínea, quase flutuando no ar rarefeito
pela voz, serviu-nos depois da sopa um filé grelhado de uma carne nevada com um
cheiro esplêndido. Para mim, que desde então preferia o peixe a qualquer outra
coisa de comer da terra ou do céu, aquela lembrança de nossa casa de Guacamayai
foi um alívio para o coração. Mas meu irmão recusou o prato sem prová-lo.
-
Não gosto – disse.
A
senhora Forbes interrompeu a lição.
-
Você não pode saber – disse -, nem provou.
Dirigiu
à cozinheira um olhar de alerta, mas já era tarde.
-
A moréia é o peixe mais fino do mundo, figlio mio – disse Fulvia Flamínea. –
Prove para ver.
A
senhora Forbes não se alterou. Contou-nos, com seu método inclemente, que a
moréia era um manjar de reis na antiguidade, e que os guerreiros disputavam sua
bílis porque infundia uma coragem sobrenatural. Depois repetiu para nós, como
tantas vezes em tão pouco tempo, que o bom gosto não é uma faculdade congênita,
mas que tampouco pode ser ensinado em qualquer idade, deve ser imposto na
infância. De maneira que não havia nenhuma razão válida para não comer. Eu, que
havia provado a moréia antes de saber o que era, fiquei para sempre com uma
contradição: tinha um sabor suave, embora um pouco melancólico, mas a imagem da
serpente pregada no portal era mais aguda que meu apetite. Meu irmão fez um
esforço supremo com o primeiro pedaço, mas não conseguiu suportar: vomitou.
-
Vá ao banheiro – disse a senhora Forbes sem se alterar – lave-se bem e volte
para comer.
Senti
uma grande angústia por ele, pois sabia o quanto lhe custava atravessar a casa
inteira com as primeiras sombras e permanecer sozinho no banheiro o tempo
necessário para se lavar. Mas voltou num instante, com outra camisa limpa,
pálido e levemente sacudido por um tremor recôndito, e resistiu muito bem ao
exame severo de sua limpeza.
Então
a senhora Forbes trinchou um pedaço da moréia, e deu a ordem de continuar. Eu
passei um segundo bocado a duras penas. Meu irmão, porém, nem chegou a pegar os
talheres.
-
Não vou comer – disse.
Sua
determinação era tão evidente que a senhora Forbes retraiu-se.
-
Está bem – disse -, mas não vai ter sobremesa.
O
alívio de meu irmão me deu coragem. Cruzei os talheres sobre o prato, do jeito
que a senhora Forbes nos ensinou que deveríamos fazer ao terminar, e disse:
-
Eu também não vou comer sobremesa.
-
Nem vão ver televisão – disse ela.
-
Nem vamos ver televisão – respondi.
A
senhora Forbes pôs o guardanapo sobre a mesa, e nós três nos levantamos para
rezar. Depois mandou-nos para o quarto, com a advertência de que deveríamos
dormir no tempo que ela levava para acabar de comer. Todos os nossos pontos
ficavam anulados, e só a partir de vinte tornaríamos a desfrutar de seus bolos
de creme, suas tortas de baunilha, seus maravilhosos biscoitos de ameixas, como
não haveríamos de conhecer outros no resto de nossas vidas.
Cedo
ou tarde teríamos que chegar a esta ruptura. Durante um ano inteiro havíamos
esperado com ansiedade aquele verão livre na ilha de Pantelana, no extremo
meridional da Sicília, e assim tinha sido durante o primeiro mês, em que nossos
pais estiveram conosco. Ainda recordo como um sonho a planície solar de rochas
vulcânicas, o mar eterno, a casa pintada de cal viva até os sardinéis, de cujas
janelas via-se nas noites sem vento as hastes luminosas dos faróis da África.
Explorando com meu pai os fundos adormecidos ao redor da ilha havíamos
descoberto uma réstia de torpedos amarelos, encalhados desde a última guerra;
havíamos resgatado uma ânfora grega de quase um metro de altura, com grinaldas
petrificadas, em cujo fundo jaziam os rescaldos de um vinho imemorial e
venenoso, e nos havíamos banhado num remanso fumegante, cujas águas eram tão
densas que quase dava para caminhar sobre elas. Mas a revelação mais
deslumbrante para nós tinha sido Fulvia Flamínea. Parecia um bispo feliz, e
sempre andava com uma ronda de gatos sonolentos que estorvavam seu caminhar, mas
ela dizia que não os suportava por amor, e sim para impedir que a comessem os
ratos. De noite, enquanto nossos pais viam na televisão os programas para
adultos, Fulvia Flamínea nos levava com ela para a sua casa, a menos de cem
metros da nossa, e nos ensinava a distinguir as algaravias remotas, as canções,
as rajadas de pranto dos ventos de Túnis. Seu marido era um homem jovem demais
para ela, trabalhava durante o verão nos hotéis de turistas, do outro lado da
ilha, e só voltava para casa para dormir. Oreste vivia com os pais um pouco
mais longe, e aparecia sempre de noite com réstias de peixes e canastras de
lagostas acabadas de pescar, e pendurava na cozinha para que o marido de Fulvia
Flaminea vendesse no dia seguinte para os hotéis. Depois colocava de novo a
lanterna de mergulhador na fronte e nos levava para caçar preás, grandes como
coelhos, que espreitavam os resíduos das cozinhas. Às vezes voltávamos para
casa quando nossos pais haviam deitado, e mal podíamos dormir com o estrondo
dos ratos disputando as sobras nos pátios. Mas mesmo aquele estorvo era um
ingrediente mágico de nosso verão feliz.
Só
mesmo meu pai para resolver contratar uma preceptora alemã. Meu pai era um
escritor do Caribe, com mais presunção que talento. Deslumbrado pelas cinzas das
glórias da Europa, sempre pareceu ansioso demais para fazer-se perdoar por sua
origem, tanto nos livros quanto na vida real, e havia se imposto a fantasia de
que não restasse em seus filhos nenhum vestígio de seu próprio passado. Minha
mãe continuou sendo sempre tão humilde como tinha sido quando professora
errante na alta Guajira, e nunca imaginou que seu marido pudesse conceber uma
idéia que não fosse proverbial. Portanto, nenhum dos dois deve ter-se
perguntado com o coração como seria nossa vida com uma sargenta de Dortmund,
empenhada em inculcar-nos à força os hábitos mais rançosos da sociedade
européia, enquanto eles participavam com quarenta escritores da moda de um
cruzeiro cultural de cinco semanas pelas ilhas do mar Egeu.
A
senhora Forbes chegou no último sábado de julho no barquinho regular de
Palermo, e desde que a vimos pela primeira vez entendemos que a festa havia
terminado. Chegou com umas botas de miliciano e um vestido de lapelas cruzadas
naquele calor meridional, e com o cabelo cortado como de homem debaixo do
chapéu de feltro. Cheirava a urina de mico. “Esse é o cheiro de todos os
europeus, principalmente no verão”, nos disse meu pai. “É o cheiro da
civilização.” Mas, apesar de sua pompa marcial, a senhora Forbes era uma
criatura esquálida, que talvez nos tivesse suscitado certa compaixão se
fôssemos maiores ou se ela tivesse tido algum vestígio de ternura. O mundo
ficou diferente. As seis horas de mar, que desde o começo do verão haviam sido
um contínuo exercício de imaginação, converteram-se numa hora, só e igual,
muitas vezes repetida. Quando estávamos com nossos pais dispúnhamos do tempo
todo para nadar com Oreste, assombrados pela arte e a audácia com que
enfrentava os polvos em seu próprio ambiente turvo de tinta e de sangue, sem outras
armas além de suas facas de luta. Depois continuou chegando às onze no
barquinho com motor de popa, como fazia sempre, mas a senhora Forbes não lhe
permitia ficar conosco nem um minuto além do indispensável para a aula de
natação submarina. Proibiu que voltássemos de noite à casa de Fulvia Flamínea,
porque considerava uma familiaridade excessiva com os serviçais, e tivemos que
dedicar à leitura analítica de Shakespeare o tempo que antes desfrutávamos
caçando preás. Acostumados a roubar mangas nos quintais e a matar cachorros a
tijoladas nas ruas ardentes de Guacamayal, para nós era impossível conceber
tormento mais cruel que aquela vida de príncipes.
Ainda
assim, em pouco tempo percebemos que a senhora Forbes não era tão rígida
consigo mesma como era conosco, e essa foi a primeira rachadura em sua
autoridade. No começo ela ficava na praia debaixo do guarda-sol colorido,
vestida de guerra, lendo baladas de Schiller enquanto Oreste nos ensinava a
mergulhar, e depois nos dava aulas teóricas de bom comportamento em sociedade,
uma hora atrás da outra, até a pausa do almoço. Um dia pediu a Oreste que a
levasse no barquinho a motor até as lojas de turistas dos hotéis e regressou
com um maiô inteiriço, negro e reluzente como uma pele de foca, mas nunca
entrou n’água. Tomava sol na praia enquanto nadávamos, e secava o suor com a
toalha, sem passar pelo chuveiro, de maneira que em três dias parecia uma
lagosta em carne viva e o cheiro de sua civilização havia se tornado
irrespirável.
Suas
noites eram de desabafo. Desde o princípio de seu mandato sentimos que alguém
caminhava pela escuridão da casa, bracejando na escuridão, e meu irmão chegou a
se inquietar com a idéia de que fossem os afogados errantes dos quais Fulvia
Flamínea tanto nos havia falado. Muito rápido descobrimos que era a senhora
Forbes, que passava a noite vivendo a vida real de mulher solitária que ela
própria teria reprovado durante o dia.
Certa
madrugada a surpreendemos na cozinha, com a camisola de colegial, preparando
suas sobremesas esplêndidas, com o corpo todo coberto de farinha até a cara e
tomando uma taça de vinho do Porto com uma desordem mental que teria causado
escândalo à outra senhora Forbes. Naquela época já sabíamos que depois que
íamos deitar ela não ia para seu quarto, mas descia para nadar escondida, ou
ficava até muito tarde na sala, vendo sem som na televisão os filmes proibidos
para menores, enquanto comia tortas inteiras e bebia até uma garrafa do vinho
especial que meu pai guardava com tanto zelo para as ocasiões memoráveis. Contra
seus próprios sermões de austeridade e compostura, engasgava sem sossego, com
uma espécie de paixão desenfreada. Depois, a escutávamos falando sozinha em seu
quarto, a ouvíamos recitando em seu alemão melodioso fragmentos completos de
Die Jungfrau von Orleans, a ouvíamos cantar, a ouvíamos soluçando na cama até o
amanhecer, e depois aparecia no café da manhã com os olhos inchados de
lágrimas, cada vez mais lúgubre e autoritária. Nem meu irmão nem eu tornamos a
ser tão infelizes como naquela época, mas eu estava disposto a suportá-la até o
fim, pois sabia que de todos os modos sua razão haveria de prevalecer contra a
nossa. Meu irmão, por sua vez, enfrentou-a com todo o ímpeto de seu gênio, e o
verão feliz tornou-se infernal. O episódio da moréia foi o último. Naquela
mesma noite, enquanto ouvíamos da cama o vaivém incessante da senhora Forbes na
casa adormecida, meu irmão soltou de repente toda a carga de rancor que estava
apodrecendo-lhe a alma.
-
Vou matá-la – disse.
Fiquei
surpreso, não tanto pela decisão, mas pela casualidade de eu estar pensando a
mesma coisa desde o jantar. Ainda assim, tentei dissuadi-lo.
-
Eles vão cortar a tua cabeça – disse.
-
Na Sicília não existe guilhotina – respondeu. – Além disso, ninguém vai saber
quem foi.
Pensava
na ânfora resgatada das águas, onde ainda estava o sedimento do vinho mortal.
Meu pai guardava porque queria mandar fazer uma análise mais profunda para
averiguar a natureza de seu veneno, pois não podia ser o resultado do simples
transcurso do tempo. Usá-lo contra a senhora Forbes era algo tão fácil que
ninguém iria pensar que não tivesse sido acidente ou suicídio. Portanto, ao
amanhecer, quando a sentimos cair extenuada pela fragorosa vigília, pusemos
vinho da ânfora na garrafa do vinho especial de meu pai. Pelo que ele nos
dissera, aquela dose era suficiente para matar um cavalo.
Tomávamos
o café da manhã na cozinha às nove em ponto, servido pela própria senhora
Forbes com os pãezinhos doces que Fulvia Flamínea deixava muito cedo no fogão.
Dois dias depois da substituição do vinho, enquanto tomávamos o café da manhã,
meu irmão me fez perceber com um olhar de desencanto que a garrafa envenenada
estava intacta na cristaleira. Isso foi numa sexta-feira, e a garrafa continuou
intacta durante o fim de semana. Mas na noite da terça-feira, a senhora Forbes
bebeu a metade enquanto via filmes libertinos na televisão.
Ainda
assim, chegou pontual como sempre ao café da manhã da quarta-feira. Tinha sua
cara habitual de noite péssima, e os olhos estavam tão ansiosos como sempre atrás
dos vidros maciços, e tornaram-se mais ansiosos ainda quando encontrou na
cestinha dos pães uma carta com selos da Alemanha. Leu-a enquanto tomava o
café, como tantas vezes nos dissera que não se devia fazer, e ao longo da
leitura passavam por sua cara as rajadas de claridade que as palavras escritas
irradiavam. Depois arrancou os selos do envelope e colocou-os na cesta com os
pãezinhos que sobraram, para a coleção do marido de Fulvia Flamínea. Apesar de
sua má experiência inicial, naquele dia acompanhou-nos na exploração dos fundos
marinhos, e ficamos vagando por um mar de águas delgadas até que começou a
esgotar-se o ar de nossos tanques e voltamos para casa para tomar lições de
boas maneiras. A senhora Forbes não apenas esteve com um ânimo floral durante
todo o dia, como na hora do jantar parecia mais viva que nunca. Meu irmão, por
sua vez, não podia suportar o desânimo. Assim que recebemos a ordem de começar
afastou o prato de sopa de macarrão com um gesto provocador.
-
Estou de saco cheio desta água de minhoca – disse.
Foi
como se tivesse atirado na mesa uma granada de guerra. A senhora Forbes ficou
pálida, seus lábios endureceram-se até que a fumaça da explosão começou a se
dissipar, e as lentes de seus óculos embaçaram-se de lágrimas. Depois tirou os
óculos, secou-os com o guardanapo, e antes de se levantar colocou-o em cima da
mesa com a amargura de uma capitulação sem glória.
-
Façam o que quiserem – disse. – Eu não existo.
Trancou-se
em seu quarto às sete. Mas antes da meia-noite, quando supunha que já estávamos
dormindo, a vimos passar com a camisola de colegial levando para o dormitório
meio bolo de chocolate e a garrafa com mais de quatro dedos do vinho
envenenado.
-
Coitada da senhora Forbes – falei.
Meu
irmão não respirava em paz.
-
Coitados de nós, se ela não morrer esta noite – disse.
Naquela
madrugada tornou a falar sozinha um tempão, declamou Schiller em altos brados,
inspirada por uma loucura frenética, e culminou com um grito final que ocupou
todo o espaço da casa. Depois suspirou muitas vezes até o fundo da alma e
sucumbiu com um assovio triste e contínuo como o de uma barca à deriva. Quando
despertamos, ainda esgotados pela tensão da vigília, o sol dava facadas através
das persianas, mas a casa parecia mergulhada num lago. Então percebemos que
eram quase dez da manhã e que não tínhamos sido despertados pela rotina matinal
da senhora Forbes. Não ouvimos a descarga da privada às oito, nem a torneira da
pia, nem o ruído das persianas, nem as ferraduras das botas, e os três golpes
mortais na porta com a palma da mão de negreiro. Meu irmão pôs a orelha contra
a parede, reteve a respiração para perceber o mínimo sinal de vida no quarto
contíguo, e no fim exalou um suspiro de libertação.
-
Pronto! – disse. – A única coisa que se ouve é o mar.
Preparamos
nosso café da manhã pouco antes das onze, e depois descemos para a praia com
dois cilindros para cada um e outros dois de reserva, antes que Fulvia Flamínea
chegasse com sua ronda de gatos para fazer a limpeza da casa. Oreste já estava
no embarcadouro estripando um dourado de seis libras que acabara de caçar.
Dissemos a ele que havíamos esperado a senhora Forbes até as onze, e como ela
continuava dormindo, decidimos descer sozinhos para o mar. Contamos ainda que
na noite anterior ela havia sofrido uma crise de choro na mesa, que talvez
tivesse dormido mal e preferido ficar na cama. Oreste não se interessou muito
pela explicação, tal como esperávamos, e acompanhou-nos a perambular pouco mais
de uma hora pelos fundos do mar. Depois indicou-nos que subíssemos para
almoçar, e foi no barquinho a motor vender o dourado nos hotéis dos turistas.
Da escadaria de pedra dissemos adeus com a mão, para que acreditasse que
pretendíamos subir para a casa, até que desapareceu na curva das ilhotas. Então
pusemos os tanques de oxigênio e continuamos nadando sem a permissão de
ninguém.
O
dia estava nublado e havia um clamor de trovões escuros no horizonte, mas o mar
era liso e diáfano e se bastava de sua própria luz. Nadamos na superfície até a
linha do farol de Pantelaria, dobramos depois uns cem metros à direita e
submergimos onde calculávamos que havíamos visto os torpedos de guerra no
princípio do verão. Lá estavam: eram seis, pintados de amarelo solar e com seus
números de série intactos, e deitados no fundo vulcânico numa ordem perfeita
que não podia ser casual. Depois continuamos girando ao redor do farol, na
busca de uma cidade submersa da qual tanto e com tanto assombro Fulvia Flamínea
nos havia falado, mas não conseguimos encontrá-la. Após duas horas, convencidos
de que não havia novos mistérios por descobrir, saímos à superfície com o
último sorvo de oxigênio.
Havia
se precipitado uma tormenta de verão enquanto nadávamos, o mar estava revolto,
e uma multidão de pássaros carnívoros revoava com pios ferozes sobre a trilha
de peixes moribundos na praia. Mas a luz da tarde parecia acabada de ter sido
feita, e a vida era boa sem a senhora Forbes. No entanto, quando acabamos de
subir a duras penas a escadaria dos rochedos, vimos muita gente na casa e dois
automóveis de polícia na frente da porta, e tivemos consciência pela primeira
vez do que tínhamos feito. Meu irmão ficou trêmulo e tentou regressar.
-
Eu não entro – disse.
Eu,
por minha vez, tive a inspiração confusa de que ao ver o cadáver já estaríamos
a salvo de toda suspeita.
-
Tranqüilo – disse a ele. – Respire fundo e pense numa coisa só: nós não sabemos
nada.
Ninguém
prestou atenção em nós. Deixamos os tanques, as máscaras e as nadadeiras no
portal, e entramos pela galeria lateral, onde estavam dois homens fumando
sentados no chão ao lado de uma maca de campanha. Percebemos então que havia
uma ambulância na porta posterior e vários militares armados de rifles. Na
sala, as mulheres da vizinhança rezavam em dialeto, sentadas nas cadeiras que
haviam sido postas contra a parede, e seus homens estavam amontoados no quintal
falando de qualquer coisa que não tinha nada a ver com a morte. Apertei com
força a mão de meu irmão, que estava dura e gelada, e entramos na casa pela
porta de trás. Nosso dormitório estava aberto e no mesmo estado em que o
havíamos deixado pela manhã. No da senhora Forbes, que era o seguinte, havia um
carabineiro controlando a entrada, mas a porta estava aberta. Espiamos para
dentro com o coração oprimido, e mal tivemos tempo quando Fulvia Flamínea saiu
da cozinha feito uma ventania e fechou a porta com um grito de espanto:
-
Pelo amor de Deus, figlioli, não olhem!
Era
tarde. Nunca, no resto de nossas vidas, haveríamos de esquecer o que vimos
naquele instante fugaz. Dois homens à paisana estavam medindo a distância da
cama à parede com uma fita métrica, enquanto outro tirava fotografias com uma
câmera de manta negra como a dos fotógrafos dos parques. A senhora Forbes não
estava sobre a cama revolta. Estava estendida de lado no chão, nua num charco
de sangue seco que havia tingido por completo o soalho do quarto, e tinha o
corpo crivado a punhaladas. Eram 27 feridas de morte, e pela quantidade e pela
sevícia notava-se que tinham sido assestadas com a fúria de um amor sem
sossego, e que a senhora Forbes as havia recebido com a mesma paixão, sem nem
mesmo gritar, sem chorar, recitando Schiller com sua bela voz de soldado,
consciente de que era o preço inexorável de seu verão feliz.
1976.
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