O palhaço trágico
Em ‘Proibido entrar sem calças’, Juan Bonilla traça um soberbo fresco da Rússia do começo do século XX, reconstruindo a apaixonante história de Vladimir Maiakovski
A personagem principal de Prohibido entrar sin Pantalones (Proibido entrar sem Calças), de Juan Bonilla, que venceu a primeira Bienal do Romance, em Lima, e que acabo de ler, não é Vladimir Maiakóvski, mas o narrador astuto, invisível e de muitas facetas: conta a história simulando ser um cronista desapaixonado e, subitamente, se transforma no que narra, quer dizer, no protagonista da história, para algumas frases ou páginas depois voltar a contar com uma proximidade impessoal. Não há cortes bruscos entre o objetivo e o subjetivo, o privado e o público, na prosa serpentina deste excelente romance que narra o que cria e transgride (sem que o leitor note) todas as fronteiras, transformando-se também, por alguns momentos, nos poemas estentóreos e nos manifestos e proclamações que o poeta futurista compunha e recitava quase ao mesmo tempo em cafés, teatros, praças, fábricas, convencido de que a poesia de vanguarda e o marxismo, aliados, mudariam o mundo.
Graças a essa fluida e veloz maneira de narrar, Prohibido entrar sin Pantalones traça um soberbo afresco da Rússia dos primeiros decênios do século vinte, sacudida por dois terremotos simultâneos, o de alguns poetas rupturistas e enlouquecidos que, como Rimbaud, acreditavam que a golpes de poesia se poderia revolucionar a vida, o amor, a beleza, os sentidos, a moral, a linguagem e os costumes, e o de alguns revolucionários profissionais que, tendo como pano de fundo o caos e os estragos da guerra mundial, instalariam sob a liderança de Lênin a primeira revolução proletária e comunista da história.
Vladimir Maiakóvski, futurista russo, gigante narciso e ególatra, agitador e poeta genial, autodidata, exibicionista e palhaço, esteve no centro desses dois furacões, acreditando, muito ingênuo, que ambos os sismos poderiam fundir-se e complementar-se. Sua obra e sua curta e absorvente vida foram uma heroica e desesperada aventura, tentando conseguir aquela aliança impossível, para descobrir, pouco antes de suicidar-se, que as revoluções políticas, uma vez que se convertem em poder absoluto e burocracia cancerígena, tragam sempre os poetas e a poesia, domesticando-os e pondo-os a seu serviço. As páginas do romance que descrevem a guerra de guerrilhas entre os distintos grupos e movimentos literários e artísticos ––os simbolistas, os acmeístas, os futuristas–– nos cafés, jornais e revistas, nos teatros e praças de Moscou e Petrogrado são de uma grande vivacidade e cor, e mostram que naqueles anos que precedem a Revolução de Outubro a vida cultural alcançou na Rússia uma extraordinária versatilidade.
Juan Bonilla modela com sua versão de Maiakóvski um personagem fascinante, uma força da natureza do qual a poesia brotava como uma transpiração natural, não só naquilo que escrevia, também no que fazia, dizia e vivia. Suas ideias eram contraditórias e confusas, mas a maneira como as expunha, com paixão contagiante, insolência e audácia verbal, deslumbravam seus ouvintes e leitores, e, nos primeiros tempos da revolução, também a seus hierarcas: Trotski, Lênin, Lunacharski o leram com admiração e lhe permitiram atrevimentos e tolices. Com Stálin sua sorte mudou. O “paizinho dos povos” tinha uma ideia muito precisa da função utilitária e propagandística dos poetas e da poesia, e silenciava os literatos refratários, às vezes matando-os e às vezes somente humilhando-os, como a Bulgákov, a quem, apesar de ter sido seu amigo, rebaixou de escritor a varredor do teatro onde antes eram apresentadas as suas obras. Apesar de Maiakóvski ter se disposto a fazer algumas concessões, que decepcionaram seus antigos companheiros do futurismo, durante o governo de Lênin, aceitou ser testemunha de acusação da Cheka contra o primeiro marido de Anna Aimátova, Nikolai Gumiliov, que foi fuzilado, e durante o de Stálin escreveu um poema em homenagem ao Primeiro Plano Quinquenal–– sua sorte estava selada. Os ataques contra ele e sua obra não só provinham da Associação de Poetas Proletários; também a imprensa, os jovens universitários, o público em geral o vaiavam em suas apresentações, as editoras se recusavam a editá-lo e até o circo de Moscou se negou a encenar uma de suas peças. A imprensa e os críticos oficiais haviam convencido a opinião pública que o antigo ídolo era um elitista, um decadente e, talvez –infâmia suprema– até um trotskista.
Era Vladimir Maiakóvski uma pessoa com quem, além de lê-lo, alguém teria querido conviver? Apesar do carinho e da admiração que a vasta informação que denunciam a sua vida, a sua obra e sua época que este romance desvenda, e a delicadeza do tratamento que acompanha a palavra do narrador, Juan Bonilla expõe todo esse material com absoluta objetividade, de modo que eu responderia àquela pergunta dizendo que não. Maiakóvski era um desses escritores que é preferível ler do que conhecer, pois pessoalmente deveria ser insuportável: um gênio intimidador, petulante, autorreferente e vaidoso. Todos os personagens que se davam bem com ele são satélites que gravitavam ao seu redor, colonizados por sua irresistível força de atração, como Osip Brik, que o manteve desde muito jovem e permitiu que fosse o amante de Lili, sua mulher. Esta é outro personagem que enfeitiça o leitor quase tanto como o poeta, sem dúvida o único amor verdadeiro de Maiakóvski, a quem ele nunca conseguiu dominar e usar (como usou sempre as muitas mulheres que caíram em seus braços) e que, em troca, foi capaz de dominá-lo e aprisioná-lo com sua beleza, inteligência e bruxaria. Lili Brik foi o único ser humano, entre seus amigos e chegados, capaz de entrar nesse vendaval arrasador que era a personalidade de Maiakóvski e sair dali absolutamente sem danos. A descrição das aventuras e desventuras de Lili Brik, atriz feminista avant la lettre, musa de artistas, atores e literatos, imperatriz do sexo e inspiradora dos melhores poemas e os piores sofrimentos de Maiakóvski é um dos grandes êxitos desse romance.
O enlace do governo soviético com a vanguarda literária e artística foi fugaz e terminou com a subida de Stálin ao poder
Com tudo o que se passou depois, tendemos a esquecer algo que este livro ressuscita com brilho. Que em seus primeiros anos, em vez de regular a vida cultural e transformá-la em um instrumento de propaganda do regime, a revolução russa– pelo menos enquanto Lunacharski esteve à frente da educação e cultura– propiciou a experimentação em todas as manifestações da arte fez um grande esforço para que as obras dos melhores escritores e artistas rompessem seu confinamento e chegassem às massas sem censura alguma. Esse propósito seduziu pintores, músicos, atores, diretores de teatro e cinema, poetas e escritores, que, desse modo, contribuíram para prestigiar a imagem da revolução e mitificá-la. Na verdade, o enlace do governo soviético com a vanguarda literária e artística foi fugaz e terminou com a subida de Stálin ao poder. Nesse breve parêntesis, Maiakóvski foi a estrela máxima do espetáculo. Seu talento feito de improvisação, destreza, instinto, excesso, encontrou um auditório na sua medida em uma sociedade que parecia estar mudando nas suas raízes a história da humanidade e criando um mundo novo, tão original, perfeito e coerente como a melhor poesia. Isso lhe inspirou poemas, manifestos e espetáculos notáveis, assim como uma vida de libertinagem e excessos temerários que, com frequência, atropelavam a vida dos outros, como seus punhos arruinavam a cara dos críticos que se atreviam a negar sua genialidade. Tudo aquilo era o resultado de um mal-entendido. Quando Maiakóvski descobriu isso, fiel a seu amor pelo barulho e a truculência, deu um disparo de pistola no coração com que se encerra esse intenso livro.
Lima, abril de 2014.
PESSOA
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García Márquez / O boom e a blingagem da literatura
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O último livro de Vargas Llosa / Radiografia sem diagnóstico
Vargas Llosa / Esta realidade pode ser o inferno
Vargas Llosa / O fracasso de Ortega y Gasset
Vargas Llosa / A morte de Aurora Bernárdez
Vargas Llosa / A era dos impostores
Vargas Llosa / Saudades de Paris
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Vargas Llosa / A felicidade, rá, rá, rá
Vargas Llosa / À beira do abismo
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