Milan Kundera |
Milan Kundera sai da toca
O autor rompe o silêncio, mas não seu segredo, com ‘A Festa da Insignificância’
A França aplaude seu retorno ao romance, 14 anos depois de sua última obra
O enigma de Milan Kundera, o clássico fugidio
Madri 9 ABR 2014 - 19:01 BRT
Com ironia, menos pesar do que o esperado por alguns e distante, mas atento, Milan Kundera (nascido em Brno, República Checa, em 1929) voltou ao panorama da literatura europeia. A França esperava a chegada nas livrarias de La Fête de L’insignificance (‘A Festa da Insignificância’, editora Gallimard, ainda a ser publicado no Brasil), que sairá a público em setembro na Espanha pela Tusquets (chegou antes na Itália, com 100.000 exemplares vendidos e uma discreta repercussão). E longe de ser resolvido, o enigma do escritor esquivo e recluso, escondido e voluntariamente desligado de sua língua materna —escreve em francês desde A Lentidão, lançado em 1994—, revela-se um pouco mais agora.
“Leve como uma pluma de perdiz ou de anjo”, compara o Le Monde,Kundera voa alto no romance que aparece agora, 14 anos depois de A Ignorância. Por onde andou? O que estava fazendo? Afastar-se, ocultar-se, ler em francês, alemão e checo, as línguas que domina. Aprofundar talvez os meandros kafkianos que tanto o apaixonam e reconhecer neles os sinais deste tempo difuso, indescritível.
Milan Kundera Foto de Aaron Manheimer |
Kundera tenta passar despercebido com sua vocação de autor invisível, apesar das polêmicas que lhe perseguiram, sobretudo em seu país de origem. Foi acusado de ter colaborado com o regime comunista, e ele se recusou a revisar suas traduções do francês ao checo —“Por falta de tempo”, chegou a dizer; leia-se, não tem vontade—. Rompeu quase todos os vínculos que lhe uniam à República Checa. Isso, depois de ter esmiuçado brilhantemente a uma terra central e sofrida, serena e humilhada pelos grandes flagelos do século XX.
Bibliografia selecionada
A Brincadeira (1967).
Risíveis Amores (1968).
A Vida Está em Outro Lugar (1972).
A Valsa dos Adeuses (1973).
O Livro do Riso e do Esquecimento (1979).
A Insustentável Leveza do Ser (1984).
A Arte do Romance (1986).
A Imortalidade (1988).
A Lentidão (1995).
A Identidade (1998).
A ignorância (2000).
A Festa da Insignificância (a ser lançado no Brasil).
O peso de um legado escuro em busca da luz —ou do absurdo— definiu sua obra desde Risíveis Amores até A Brincadeira; de A Vida Está em Outro Lugar até A Insustentável Leveza do Ser —publicado em seu país em 2004, mas um clássico desde meados dos anos 80—. Também serviu de guia ao seu estilo cada vez mais enigmático e polissêmico em livros como A Imortalidade, A Lentidão ou neste último lançamento, que em espanhol será publicado como A Festa da Insignificância.
Sua editora Beatriz de Moura, nascida no Rio de Janeiro, está traduzindo ao espanhol uma obra que o autor levava um tempo comentando com os mais íntimos. Começa com pinceladas eróticas e ares pós-modernos deMorte em Veneza, entre a contemplação de um umbigo e a comparação do sagrado símbolo romântico dos seios femininos com a efigie da Virgem Maria.
De Moura, dedicada e árdua defensora de Kundera, revela alguns detalhes: “Estão presentes quase todos os temas preferidos do autor e levados à sua essência: a maternidade, a sexualidade, o poder com suas facetas —desde a crueldade e a arbitrariedade até o absurdo e a ternura—, a grosseria do falacioso...”.
Tudo isso, com uma pitada de humor. É o que mais surpreendeu à editora. Esse equilíbrio magistral nas entrelinhas: “Fácil de ler, mas difícil de compreender”, garante. “No geral, Kundera mostra uma visão descontraída do mundo que não para de cair no ridículo e que termina em um festejo burlesco”.
Sobre essa profunda leveza concordam as resenhas francesas e italianas. “O grande retorno de Kundera”, atesta o Le Figaro. “A última valsa…”, destaca o Le Nouvel Observateur, prevendo que já não haverá outra igual. Como uma “pequena e encantadora comédia humana”, definiu o La Repubblica, ao passo que o Corriere della Sera descrevia o livro como um “divertimento surreal e uma parábola felliniana na qual se mesclam personagens com elucubrações extravagantes”.
Mais Falstaff que Hamlet, Kundera apresenta-se novamente nesta etapa final de sua vida e de sua obra, com 85 anos completados neste mês. Imprevisível e muito livre, insólito e inesperado, no tempo que mediou desde seu último lançamento literário, o autor ingressou na coleção da Plêiade de Gallimard, algo como o olimpo da literatura francesa, onde se junta a Proust e Balzac. E também viveu mergulhado em uma polêmica: em 2008 uma revista checa lhe acusou de delatar em 1950 à polícia comunista, um estudante que passou 22 anos na prisão.
Entretanto, Kundera tem ganhado uma fiel e crescente legião de seguidores na Espanha, que o descobriram graças ao olho clínico de Toni López Lamadrid (1938-2009). Companheiro de Beatriz Moura, foi ele quem a cutucou para apresentar-se em um agradável dia em Paris, para convencê-lo que publicasse com a Tusquets. Havia chegado aos seus ouvidos que o escritor não estava contente com sua editora anterior na Espanha e queria mudar. A partir daí, começaram a trabalhar uma amizade, que dura até hoje. Um de seus segredos: não diz uma palavra. É impossível conseguir informações por meio dela, nem onde vive, nem em que trabalha.
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