Sleeping Nude, 1950 Lucian Freud Private Colletion, Canada |
Gabriel
García Márquez
O avião
da bela adormecida
Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do
pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as
costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos
Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda
natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da
cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida",
pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia
fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de
Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu
na multidão do saguão.
Eram nove da manhã. Estava
nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas
ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga
alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto,
porém, a vida continuava em primavera.
Eu estava na fila atrás de uma
anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze
malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou
sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a
funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa
de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista.
"Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros"
Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento
eu preferia: fumante ou não-fumante.
— Dá na mesma — disse
categórico — desde que não seja ao lado das onze malas.
Ela agradeceu com um sorriso
comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.
— Escolha um número — me disse.
— Três, quatro ou sete.
— Quatro.
Seu sorriso teve um fulgor
triunfal.
— Nos quinze anos em que estou
aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete.
Marcou no cartão de embarque o
número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela
primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a
bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos
os vôos estavam adiados.
— Até quando?
— Só Deus sabe — disse com seu
sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.
Enganou-se: foi a maior do
século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia
rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante
como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio
adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha
própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em
inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos
na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as
vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não
havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que
escapei para respirar.
Lá fora encontrei um espetáculo
assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava
acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com
seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a
comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico
transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não
pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio
daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.
Na hora do almoço havíamos
assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis
diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos
de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber.
As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a
chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho.
Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela
rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete
infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as
cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no
espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de
papelão, e com o pensamento na bela.
O vôo para Nova York, previsto
para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui
embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma
aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da
janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes
experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar",
pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela
não percebeu.
Instalou-se como se fosse morar
ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local
ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão.
Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei
uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um
copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois
num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante
o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.
Quando levaram a água, ela
abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os
baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava
outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como
se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento.
Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se
com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir,
deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única
pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas
eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou.
Foi uma viagem intensa. Sempre
acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira
que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura
de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que
decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a
bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti
a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu
para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o
comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela
não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.
Fiz um jantar solitário,
dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu
sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas
pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole,
levantava a taça e brindava.
— À tua saúde, bela.
Terminado o jantar, apagaram as
luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra
do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era
imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então
contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que
pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as
nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível
sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as
unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter
mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um
casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa,
segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços
atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto
magistral de Gerardo Diego.
Em seguida estendi a poltrona
na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O
clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue
que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na
primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões
burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando
as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam
de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam,
porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da
bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.
— Quem iria acreditar — me
disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a
estas alturas.
Acho que dormi várias horas,
vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça
aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze
maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no
campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura
com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade
mesquinha de não os recolher.
Depois de desafogar-me dos
excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei
por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique,
ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao
assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências
de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo
do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria
me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu
regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento
número quatro.
O sono da bela era invencível.
Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um
pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo
era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse
recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que
merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci
Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem
se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral.
Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos,
não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.
Tirou a máscara, abriu os olhos
radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que
se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos
joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar
para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase
que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das
Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito
que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de
Nova York.
Junho de 1982.
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