Marguerite Duras |
01/04/2007 - 02h30
Ensaio de Enrique Vila-Matas aborda escritora Marguerite Duras
Folha de S.Paulo
Leia a seguir trechos de ensaio do espanhol Enrique Vila-Matas sobre a escritora francesa Marguerite Duras (1914-96), que faz parte de "O Homem Sentado no Corredor/A Doença da Morte".
Tudo escreve ao nosso redor
ENRIQUE VILA-MATAS
1
Refutar qualquer idéia de Montaigne é ridículo. Montaigne a expõe como opinião, não como verdade. Espero que, se digo aqui neste pequeno ensaio que Marguerite Duras foi essencialmente uma grande humorista, minhas palavras sejam lidas como o que são estritamente: uma opinião. Afinal, os ensaios, mesmo os mais breves, têm a vantagem de pertencer ao gênero literário mais livre e, portanto, um dos mais belos que existem. Só me sinto realmente cômodo quando escrevo um ensaio, e é porque não ignoro que com tanta liberdade eu mesmo serei o primeiro a me contradizer em seguida, talvez até no próximo ensaio. Ou, quem sabe, talvez muito antes de terminar de escrever estas linhas, pois basta observar que este ensaio já se estragou, acaba de se fragmentar sem que eu tenha conseguido evitar. Marguerite Duras era realmente humorista? Se o foi, era uma humorista clássica, dividia seu riso com a tragédia.
2
Com a escrita de Duras acontece o que ocorre com a primeira frase de "A Metamorfose" de Kafka. Quando lemos que um jovem funcionário acorda em sua cama transformado num inseto, só temos duas opções: fechar o livro incrédulos e não continuar ou crer nessa estranha verdade de Kafka e continuar lendo. Creio que a escrita de Duras só permite aos leitores duas opções: amar essa escrita ou odiá-la profundamente. Não há meio-termo com ela. Eu a adoro. Tem a beleza do literariamente infinito. A poesia de sua escrita me fascina e por vezes me levou à emoção e ao choro. No entanto uma infinidade de vezes tive que escutar ferozes opiniões muito adversas sobre o que ela escrevia. Nunca me incomodei a ponto de refutar essas opiniões, pois sei que de nada adianta fazê-lo. Quem detesta a escrita de Duras, detesta-a tão profundamente (e com a mesma alta crueldade que ela destilou em sua obra-prima, "L'Après-Midi de M. Andesmas" [A Tarde do Senhor Andesmas]) que não há absolutamente nada a fazer para evitar esse tipo de reações que, diga-se de passagem, penso que entusiasmavam Marguerite. Os grandes escritores, aqueles que inovam ou arriscam, não agradam todo mundo.
3
Agora, hoje, quando tudo já passou e não se pode voltar atrás, agora que sou um homem muito afastado do jovem que fui e tenho mais tempo do que então para pensar e para sentir, digo a mim mesmo que tudo poderia ter sido diferente e ter estado mais perto dela, que poderia tê-la acompanhado muito mais naqueles dias dos anos 1970 em que a conheci sem conhecê-la, pois, por não me inteirar, não cheguei nem sequer a saber que bebia muito e vivia em constante estado de amargura, que era precisamente o que a fazia rir tanto e com tanta tristeza.
Um dia, no terraço do [Café de] Flore, me atrevi a perguntar a ela o que a fazia rir. Respondeu muito depressa: "Casca de banana. Pessoas que escorregam e quebram o nariz. Sou muito clássica nisso".
Vivia com certa amargura e eu poderia ter sido mais esperto e registrar que ela vivia assim no dia em que, na rue de Rennes, me confessou, à queima-roupa, que escrevia para não se suicidar, e me afastei dali pensando que aquela era apenas mais uma de suas frases estranhas e sem perceber que vivia muito sozinha nessa época em que convivi com ela com certa freqüência sem chegar a saber nada dela, pelo que na verdade agora me ocorre que seria melhor que este breve ensaio sobre Duras cessasse imediatamente. Mas não vou me calar, resisto ao silêncio, preciso falar. Depois de tudo, nos dez anos que transcorreram desde a sua morte, me dediquei a lê-la com mais atenção e intensidade do que antes, me dediquei a ler os livros que ela foi buscar --não sei se era um sótão ou um celeiro-- no terceiro andar de sua casa de Neauphle-le-Château e me deu de presente; eram traduções de livros seus para o espanhol que descansavam --junto de traduções de muitos outros países-- sob capas de poeira no chão desse celeiro ou sótão dessa casa de campo onde ela se retirava para escrever e onde filmou "Nathalie Granger".
"A casa da escrita", como a chamou nesse dia em que me presenteou com as traduções espanholas de seus livros, traduções que ela não sabia a quem dar nem o que fazer: essas edições que ultimamente me dediquei a ler com nostalgia e às vezes lamentando de forma egoísta que lhes falte uma dedicatória dela, o que a bem da verdade tampouco lamento tanto assim e, mais, cada dia lamento menos, e ainda mais agora quando a única coisa que posso fazer é ler esses livros para saber algo dela, agora que já faz dez anos que tudo acabou, agora quando já é tarde demais para tudo exceto para lê-la e para desejar --como ela dizia-- que tudo escreva ao nosso redor e poder assim dizer, por exemplo, que a conheci sem conhecê-la e escrever isso para não calar, sobretudo porque preciso não calar e escrever sobre ela, não posso silenciar seu nome de Veneza em Calcutá deserta Marguerite Duras.
4
"A mosca escreve." Até apenas uma hora trás, sempre pensei que essa era uma frase cômica de Duras. Mas não, voltei a esse texto incluído em "Escrever" e vi o lado sumamente trágico da frase. Não havia nada para rir ali. A mosca escreve. Silêncio. "C'est tout."
Duras vem de um grande silêncio, interrompido ocasionalmente por uma canção que às vezes digo a mim mesmo ou imagino que se intitula "Indochina Song". A influência de Maurice Blanchot é indiscutível. Creio que está muito bem explicada na biografia de Duras que Laure Adler escreveu: "Ela se inspira em Blanchot, a quem admira. Blanchot é partidário de uma literatura que busca a força oculta da palavra, uma literatura que só existe na e por meio da literatura, na qual o próprio ato de escrever perfura o núcleo de ilegibilidade".
"Somos conscientes --escreveu Blanchot em 'O Livro por Vir' [Martins Fontes]-- de que só escrevemos quando o salto se realizou, mas, para realizá-lo, primeiro é preciso escrever, escrever sem fim, escrever a partir do infinito."
Estas palavras, como se desenhassem o trajeto de uma mosca por um céu azul imortal, me levam a Neauphle-le-Château e ao celeiro ou sótão onde Marguerite, entre outros livros, me deu a versão espanhola daquela que hoje considero sua obra-prima, "A Tarde do Senhor Andesmas", a novela curta onde seu talento está mais visível do que nunca.
Não me esquecerei nunca dessa mosca que agoniza no jardim da casa de Neauphle-le-Château. "Nessa casa", escreveu Duras em "Escrever", "fica-se tão só que às vezes se está perdido (...) Só posso dizer que esse tipo de solidão de Neauphle fui eu quem a fiz, foi feito por mim. Para mim. E que só estou só nesta casa. Para escrever."
A mosca morreu às três e vinte da tarde. Duras havia ficado de se encontrar com Michelle Porta. Quando lhe disse a hora exata em que a mosca havia morrido, Michelle Porta teve um ataque de riso. Duras escreveria uns dias depois: "Escreve-se sem sabê-lo. Escreve-se para olhar como morre uma mosca. Temos direito de fazê-lo". E mais adiante (permita-me o leitor que transforme levemente sua frase e a torne minha): "Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos". E finalmente esta conclusão que nos deixa sem saber se rimos ou nos emocionamos: "Tudo escreve ao nosso redor, é isso que precisamos chegar a perceber: tudo escreve, a mosca, a mosca escreve (...) A escrita da mosca poderia encher uma página inteira. Então seria uma escrita. Desde o momento em que poderia ser uma escrita, já o é".
5
Saí aquele dia de Neauphle-le-Château como se sai de uma frase. E assim "a casa da escrita" se transformou para mim numa frase de Duras: "Meus livros saem desta casa. Também desta luz, do jardim. Desta luz refletida no tanque. Precisei de 20 anos para escrever o que acabo de dizer".
E eu precisei de 30 anos para dizer algo tão banal quanto isto: saí de sua casa com cinco livros traduzidos para o espanhol pela editora Seix Barral e não sabia então que demoraria tanto para lê-los realmente a fundo. Saio agora deste fragmento como se sai de uma frase.
6
De uma plataforma, no meio de uma colina, conseguindo ver apenas a beira de um abismo cheio de luz que os pássaros atravessam, velho e imóvel, sr. Andesmas espera Michel Arc. Repousa numa cadeira de vime. São quatro horas da tarde. Faz calor. Do abismo cujo fundo não posso ver, sobe a música de um toca-discos. É a canção do verão: "Quando os lilases florescerem, meu amor,/ quando os lilases florescerem para sempre".
O toca-discos está soando na praça do vilarejo. Estão dançando. A vida está nesse abismo. Passa um cachorro que se perde no bosque. Michel Arc demora. De fato, não chegará nunca. M. Andesmas percebe na lembrança o perfume dos cabelos de sua filha Valérie. Logo adormece e avança até ele a sombra de uma faia próxima. Chega um sopro de vento e uma menina muito estranha. O tempo passa com lentidão e facilidade. O domínio, por parte de Duras, desse tempo narrativo é simplesmente genial.
Dela, Duras, eu nunca vou esquecer, antes me esqueceria de mim mesmo. Quando a conheci, Marguerite, que havia lido muito, já não lia nada. Parecia que avançava sobre ela a sombra de uma faia próxima.
7
Saí de sua vida como se sai de uma frase.
8
Eu a conheci, mas sem chegar a conhecê-la. Faz 30 anos que deixei de vê-la. Quando ia a Paris, não me atrevia a lhe telefonar, sobretudo depois que Javier Grandes, um amigo comum, comentou que ela havia dito que voltara ao estado selvagem da infância e que já não se lembrava de nada e de ninguém. Eu tinha certeza de que, se eu telefonasse, ela diria que não me conhecia. Eu a conheci, mas sem chegar a conhecê-la. Ela na verdade nunca me conheceu.
Enrique Vila-Matas é escritor catalão, autor de "A Viagem Vertical", "Bartleby e Companhia" e "O Mal de Montano" (ed. Cosacnaify).
O Homem Sentado no Corredor/A Doença da Morte"
Autora: Marguerite Duras
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: Cosacnaify (tel. 0/xx/11/3218-1444)
Quanto: R$ 39,90 (112 págs.)
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