quinta-feira, 1 de maio de 2014

Gabriel García Márquez / Maria dos Prazeres

Henri Matisse
Seated Pink Nude.

Gabriel García Márquez

Maria dos Prazeres




O homem da agência funerária chegou tão pontual que Maria dos Prazeres ainda estava de roupão de banho e com a cabeça cheia de bobes, e mal teve tempo de pôr uma rosa vermelha na orelha para não parecer tão indesejável como se sentia. Lamentou ainda mais seu estado quando abriu a porta e viu que não era um tabelião lúgubre, como supunha que deveriam ser os comerciantes da morte, e sim um jovem tímido com um paletó quadriculado e uma gravata com pássaros coloridos. Não vestia sobretudo, apesar da primavera incerta de Barcelona, cujo chuvisco de ventos enviesados fazia quase sempre com que fosse menos tolerável que o inverno. Maria dos Prazeres, que havia recebido tantos homens a qualquer hora, sentiu-se envergonhada como muito poucas vezes. Acabava de completar 76 anos e estava convencida de que ia morrer antes do Natal, e ainda assim esteve a ponto de fechar a porta e pedir ao vendedor de enterros que esperasse um instante enquanto se vestia para recebê-lo de acordo com seus méritos. Mas depois pensou que ele iria congelar no vestíbulo escuro e o fez entrar.
- Perdoe essa cara de morcego – disse -, mas estou há mais de cinqüenta anos na Catalunha e é a primeira vez que alguém chega na hora anunciada.

Falava um catalão perfeito com uma pureza um pouco arcaica, embora ainda se notasse a música de seu português esquecido. Apesar de seus anos e seus cachos de arame continuava sendo uma mulata esbelta e vivaz, de cabelo duro e olhos amarelos e ferozes, e já fazia muito tempo que havia perdido a compaixão pelos homens. O vendedor, deslumbrado ainda pela claridade da rua, não fez nenhum comentário, apenas limpou as solas do sapato na esteirinha de juta e beijou a mão dela com reverência.
- Você é um homem como os dos meus tempos – disse Maria dos Prazeres com uma gargalhada de granizo. – Senta aí.
Embora fosse novo no ofício, ele o conhecia o suficiente para não esperar aquela recepção festiva às oito da manhã, e menos ainda de uma anciã sem misericórdia que à primeira vista lhe pareceu uma louca fugitiva das Américas. Assim, permaneceu a um passo da porta sem saber o que dizer, enquanto Maria dos Prazeres abria as grossas cortinas de pelúcia das janelas. O tênue resplendor de abril iluminou um pouco o ambiente meticuloso da sala que mais parecia a vitrine de um antiquário. Eram coisas de uso cotidiano, nem uma a mais, nem uma a menos, e cada uma parecia posta em seu espaço natural, e com um gosto tão certeiro que teria sido difícil encontrar outra casa mais bem servida, mesmo numa cidade tão antiga e secreta como Barcelona.
- Perdão – disse. – Enganei-me de porta.
- Oxalá – disse ela -, mas a morte não se engana.
O vendedor abriu sobre a mesa de jantar um gráfico cheio de dobras como uma carta de navegar com parcelas de cores diversas e numerosas cruzes e cifras em cada cor. Maria dos Prazeres compreendeu que era o plano completo do imenso panteão de Montjuich, e lembrou com um horror muito antigo do cemitério de Manaus debaixo dos aguaceiros de outubro, onde chafurdavam as antas entre os túmulos sem nomes e mausoléus de aventureiros com vitrais florentinos. Certa manhã, sendo muito menina, o Amazonas transbordado amanheceu convertido num pântano nauseabundo, e ela havia visto os ataúdes rachados flutuando no quintal da sua casa com pedaços de trapos e cabelos de mortos nas rachaduras. Aquela recordação era a causa de que tivesse escolhido o morro de Montjuich para descansar em paz, e não o pequeno cemitério de San Gervasio, tão próximo e familiar.
- Quero um lugar onde as águas não cheguem nunca – disse.
- Pois aqui está – disse o vendedor, indicando o lugar no mapa com um apontador extensível que levava no bolso como uma esferográfica de aço. – Não há mar que suba tanto.
Ela se orientou no tabuleiro de cores até encontrar a entrada principal, onde estavam as três tumbas contíguas, idênticas e sem nome, onde jaziam Buenaventura Durruti e outros dois dirigentes anarquistas mortos na Guerra Civil. Todas as noites alguém escrevia os nomes nas lápides em branco. Escreviam com lápis, com tinta, com carvão, com lápis de sobrancelha ou esmalte de unhas, com todas as suas letras e na ordem correta, e todas as manhãs os zeladores os apagavam para que ninguém soubesse quem era quem debaixo dos mármores mudos. Maria dos Prazeres havia assistido ao enterro de Durruti, o mais triste e tumultuado de todos os que ocorreram em Barcelona, e queria repousar perto de sua tumba. Mas não havia nenhuma disponível no vasto panteão agora superpovoado. Assim, resignou-se com o possível. “Com a condição”, disse, “de que não me metam numa dessas gavetas de cinco anos, onde a gente fica que nem no correio.”, Depois, recordando de repente o requisito essencial, concluiu:
- E, principalmente, que me enterrem deitada.
Na verdade, como réplica à ruidosa promoção de tumbas vendidas em prestações antecipadas, circulava o rumor de que estavam enterrando gente em pé, para economizar espaço. O vendedor explicou, com a precisão de um discurso decorado, e muitas vezes repetido, que essa versão era uma infâmia perversa das empresas funerárias tradicionais para desacreditar a novidade da promoção de tumbas a prestação. Enquanto explicava, bateram na porta com três golpezinhos discretos, e ele fez uma pausa incerta, mas Maria dos Prazeres indicou que continuasse.
- Não se preocupe – disse em voz muito baixa. – É o Noi.
O vendedor retomou o fio, e Maria dos Prazeres ficou satisfeita com a explicação. No entanto, antes de abrir a porta quis fazer uma síntese final de um pensamento que havia amadurecido em seu coração durante muitos anos, e até em seus pormenores mais íntimos, desde a lendária enchente de Manaus.
- O que quero dizer – disse – é que procuro um lugar no qual esteja deitada debaixo da terra, sem riscos de inundações e se for possível à sombra das árvores no verão, e de onde não vão me tirar depois de um certo tempo para me jogar no lixo.
Abriu a porta da rua e entrou um cãozinho empapado pela chuvinha fina, e com um aspecto perdulário que não tinha nada a ver com o resto da casa. Regressava de seu passeio matinal pela vizinhança, e ao entrar sofreu um arrebato de alvoroço. Saltou sobre a mesa latindo sem sentido e quase estropiou o mapa do cemitério com as patas sujas de barro. Um único olhar da dona foi suficiente para moderar seus ímpetos.
- Noi! – disse a ele sem gritar. – Baixa d’aí!
O animal se encolheu, olhou-a assustado, e um par de lágrimas nítidas resvalou por seu focinho. Então Maria dos Prazeres tornou a se ocupar do vendedor e encontrou-o perplexo.
- Collons! – exclamou ele. – Chorou!
- É que ficou alvoroçado por encontrar alguém aqui a esta hora – desculpou Maria dos Prazeres em voz baixa. – Em geral, entra na casa com mais cuidado que os homens. Exceto você, como já notei.
- Mas ele chorou, caralho! – repetiu o vendedor, e de imediato percebeu sua incorreção e desculpou-se, ruborizado: – A senhora me perdoe, mas é que não vi isto nem no cinema.
- Todos os cães podem fazer isso se forem ensinados – disse ela. – Acontece que os donos passam a vida educando os cachorros com hábitos que os fazem sofrer, como comer em pratos ou fazer suas porcarias na hora certa e no mesmo lugar. E, em compensação, não ensinam as coisas naturais das quais eles gostam, como rir e chorar. Mas aonde estávamos?
Faltava muito pouco. Maria dos Prazeres teve que se resignar também aos verões sem árvores, porque as únicas que havia no cemitério tinham suas sombras reservadas aos hierarcas do regime. As condições e as fórmulas do contrato, no entanto, eram supérfluas, porque ela queria se beneficiar do desconto por pagamento antecipado e à vista. Só quando haviam terminado, e enquanto guardava outra vez os papéis na pasta, o vendedor examinou a casa com um olhar consciente e estremeceu com o hálito mágico de sua beleza. Tornou a olhar Maria dos Prazeres como se fosse a primeira vez.
- Posso fazer uma pergunta indiscreta? – perguntou.
Ela levou-o até a porta.
- Claro – disse -, desde que não seja a minha idade.
- Tenho a mania de adivinhar o ofício das pessoas pelas coisas que estão em suas casas, e aqui, para ser franco, não consigo – disse ele. – O que a senhora faz?
Maria dos Prazeres respondeu morrendo de rir:
- Sou puta, filho. Ou já não dá mais para notar?
O vendedor ficou vermelho.
- Sinto muito.
- Eu é que devia sentir – disse ela, tomando o pelo braço para impedir que se esborrachasse contra a porta. – E toma cuidado! Não vá se arrebentar antes de me enterrar direitinho.
Assim que fechou a porta, pegou o cãozinho e começou a limpá-lo, e somou sua bela voz africana aos coros infantis que naquele momento começavam a se ouvir na escola vizinha. Três meses antes havia tido em sonhos a revelação de que ia morrer, e desde então sentiu-se mais ligada que nunca àquela criatura da sua solidão. Havia previsto com tanto cuidado a partilha póstuma de suas coisas e o destino de seu corpo, que naquele instante poderia morrer sem estorvar ninguém. Tinha se aposentado por vontade própria com uma fortuna entesourada pedra sobre pedra mas sem sacrifícios demasiado amargos, e havia escolhido como refúgio final o muito antigo e nobre povoado de Grácia, já digerido pela expansão da cidade. Havia comprado o apartamento em ruínas, sempre cheirando a arenques defumados, cujas paredes carcomidas pelo salitre ainda conservavam os impactos de algum combate sem glória. Não havia porteiro, e nas escadas úmidas e tenebrosas faltavam alguns degraus, embora todos os andares estivessem ocupados. Maria dos Prazeres mandou reformar o banheiro e a cozinha, forrou as paredes com cortinados de cores alegres e pôs vidros bisotados e cortinas de veludo nas janelas. Por último, levou os móveis primorosos, as coisas de serviço e decoração e os arcões de sedas e brocados que os fascistas roubavam das residências abandonadas pelos republicanos na debandada da derrota e que ela tinha ido comprando aos poucos, durante muitos anos, a preço de ocasião e em leilões secretos.
O único vínculo que restou com o passado foi sua amizade com o conde de Cardona, que continuou visitando-a na última sexta-feira de cada mês para jantar com ela e fazer um lânguido amor de sobremesa. Mas mesmo aquela amizade da juventude se manteve na reserva, pois o conde deixava seu automóvel com as insígnias heráldicas a uma distância mais que prudente e chegava até o apartamento caminhando pela sombra, tanto para proteger a sua honra como a dela própria.
Maria dos Prazeres não conhecia ninguém naquele edifício, onde morava num apartamento que ficava na sobreloja, a não ser os da porta em frente à sua, onde morava fazia pouco tempo um casal muito jovem com uma menina de nove anos. Achava incrível, mas era verdade, que nunca tivesse encontrado ninguém nas escadas. Mesmo assim, a divisão de sua herança demonstrou que estava mais implantada do que ela mesma supunha naquela comunidade de catalães crus cuja honra nacional se fundava no pudor. Até as bijuterias mais insignificantes ela havia dividido entre as pessoas que estavam mais perto de seu coração, que eram as que estavam mais próximas de sua casa. No final não se sentia muito convencida de haver sido justa, mas estava, em compensação, segura de não ter esquecido ninguém que não merecesse. Foi um ato preparado com tanto rigor que o tabelião da rua da Árvore, que se prezava de ter visto tudo, não podia acreditar em seus próprios olhos quando a viu ditando de memória aos seus amanuenses a lista minuciosa de seus bens, com o nome preciso de cada coisa em catalão medieval, e a lista completa dos herdeiros com seus endereços e profissões, e o lugar que ocupavam em seu coração.
Depois da visita do vendedor de enterros ela terminou por converter-se em mais um dos numerosos visitantes dominicais do cemitério. A exemplo de seus vizinhos de túmulo semeou flores de quatro estações em seus canteiros, regava a grama recém-nascida e a igualava com a tesoura de podar até deixá-la como os tapetes da prefeitura, e familiarizou-se tanto com o lugar que acabou não entendendo como foi que no começo achava-o tão desolado. Em sua primeira visita, o coração tinha dado um salto quando viu junto ao portal os três túmulos sem nome, e nem se deteve para olhá-los, porque a poucos passos dela estava o vigilante insone. Mas no terceiro domingo aproveitou um descuido para cumprir outro de seus grandes sonhos, e com o batom escreveu na primeira lápide lavada pela chuva: Durruti. Desde então, sempre que pôde tornou a fazer isso, às vezes numa tumba, em duas ou nas três, e sempre com o pulso firme e o coração alvoroçado pela nostalgia.
Num domingo do fim de setembro presenciou o primeiro enterro na colina. Três semanas depois, numa tarde de ventos gelados, enterraram uma jovem recém-casada na tumba vizinha à dela. No fim do ano, sete terrenos estavam ocupados, mas o inverno efêmero passou sem alterá-la. Não sentia nenhum mal-estar, e à medida que aumentava o calor e entrava o ruído torrencial da vida pelas janelas abertas, encontrava-se com mais ânimo para sobreviver aos enigmas de seus sonhos. O conde de Cardona, que passava na montanha os meses de mais calor, encontrou-a em seu regresso mais atrativa ainda que na sua surpreendente juventude dos cinqüenta anos.
Após muitas tentativas frustradas, Maria dos Prazeres conseguiu que Noi distinguisse sua tumba na extensa colina de tumbas iguais. Depois se empenhou em ensiná-lo a chorar sobre a sepultura vazia para que continuasse a fazer isso por costume após a sua morte. Levou-o várias vezes a pé da casa para o cemitério, para que memorizasse a rota do ônibus das Ramblas, até que o sentiu bastante treinado para mandá-lo sozinho.
No domingo do ensaio final, às três da tarde, tirou do cãozinho o colete de primavera, em parte porque o verão era iminente e em parte para que chamasse menos a atenção, e deixou-o por sua conta. Viu como ele se afastava pela calçada de sombra com um trote ligeiro e o cuzinho apertado e triste debaixo da cauda alvoroçada, e conseguiu a duras penas reprimir os desejos de chorar, por ela e por ele, e por tantos e tão amargos anos de ilusões comuns, até que o viu dobrar rumo ao mar pela esquina da Calle Mayor. Quinze minutos mais tarde subiu no ônibus das Ramblas na vizinha praça de Lesseps, tentando enxergá-lo sem ser vista pela janela, e enfim conseguiu vê-lo entre as molecagens dos meninos dominicais, distante e sério, esperando o sinal de pedestres do Paseo de Gràcia. “Meu Deus”, suspirou. “Parece tão sozinho.” Teve que esperá-lo quase duas horas debaixo do sol brutal de Montjuich. Cumprimentou várias pessoas de outros domingos menos memoráveis, embora mal as tenha reconhecido, pois havia passado tanto tempo desde que as viu pela primeira vez, que já não estavam com roupas de luto, nem choravam, e punham as flores sobre as tumbas sem pensar em seus mortos. Pouco depois, quando todos foram embora, ouviu um bramido lúgubre que espantou as gaivotas, e viu no mar imenso um transatlântico branco com a bandeira do Brasil, e desejou com toda a sua alma que ele trouxesse uma carta de alguém que tivesse morrido por ela no cárcere de Pernambuco.
Pouco depois das cinco, com doze minutos de antecipação, apareceu Noi na colina, babando de fadiga e de calor, mas com ares de menino triunfante. Naquele momento, Maria dos Prazeres superou o terror de não ter ninguém que chorasse em sua tumba.
Foi no outono seguinte que começou a perceber signos funestos que não conseguia decifrar, mas que aumentaram o peso de seu coração. Tornou a tomar café debaixo das acácias douradas da Plaza del Reloj com o casaco de gola de caudas de raposa e o chapéu com adorno de flores artificiais que de tão antigo tinha voltado à moda. Aguçou o instinto. Tentando explicar a si própria a sua ansiedade sondou a tagarelice das vendedoras de pássaros das Ramblas, os sussurros dos homens nas bancas de livros que pela primeira vez em muitos anos não falavam de futebol, os fundos silêncios dos mutilados de guerra que jogavam migalhas de pão para os pombos, e em todas as partes encontrou sinais inequívocos da morte. No Natal acenderam-se as luzes de cores entre as acácias, e saíam músicas e vozes de júbilo dos balcões, e unia multidão de turistas alheios ao nosso destino invadiu os cafés ao ar livre, mas mesmo dentro da festa sentia-se a mesma tensão reprimida que precedeu os tempos em que os anarquistas se fizeram donos da rua. Maria dos Prazeres, que havia vivido aquela época de grandes paixões, não conseguia dominar a inquietação, e pela primeira vez foi despertada na metade de um sonho por golpes de pavor.
Uma noite, agentes da Segurança do Estado assassinaram a tiros na frente de sua janela um estudante que havia escrito no muro: Visca Catalunya lliure. “Meu Deus”, falou a si própria, assombrada, “é como se tudo estivesse morrendo comigo!”. Só havia conhecido uma ansiedade semelhante quando era muito pequena em Manaus, um minuto antes do amanhecer, quando os ruídos numerosos da noite cessavam de repente, as águas se detinham, o tempo titubeava, e a selva amazônica mergulhava num silêncio abismal que só podia ser igual ao da morte.
No meio daquela tensão irresistível, na última sexta-feira de abril, como sempre, o conde de Cardona foi comer em sua casa. A visita havia se convertido num ritual. O conde chegava pontual entre as sete e as nove da noite com uma garrafa de champanha do país embrulhada no jornal da tarde para que não se notasse tanto, e uma caixa de trufas recheadas. Maria dos Prazeres preparava canelones gratinados e um frango macio feito em seu próprio suco, que eram os pratos favoritos dos catalães de estirpe de seus bons tempos, e uma travessa sortida de frutas da estação. Enquanto ela fazia a cozinha, o conde escutava no gramofone fragmentos de óperas italianas em versões históricas, tomando aos poucos uma tacinha de vinho do Porto que durava até o final dos discos.
Depois do jantar, longo e bem conversado, faziam de cor um amor sedentário que deixava, nos dois, um sedimento de desastre. Antes de ir embora, sempre sobressaltado pela iminência da meia-noite, o conde deixava 25 pesetas debaixo do cinzeiro do dormitório. Esse era o preço de Maria dos Prazeres quando ele a conheceu num hotel do Paralelo, e era a única coisa que o óxido do tempo havia deixado intacta.
Nenhum dos dois havia se perguntado nunca em que se fundava essa amizade. Maria dos Prazeres devia ao conde alguns favores fáceis. Ele dava a ela conselhos oportunos para o bom manejo de suas economias, havia ensinado a ela como distinguir o valor real de suas relíquias e o modo de tê-las sem que ninguém descobrisse que eram coisas roubadas. Mas, acima de tudo, foi ele quem lhe indicou o caminho de uma velhice decente no bairro de Gràcia, quando em seu bordel da vida inteira a declararam usada demais para os gostos modernos e quiseram mandá-la para uma casa de aposentadas clandestinas que por cinco pesetas ensinavam os meninos a fazer amor. Ela tinha contado ao conde que sua mãe a vendera aos catorze anos no porto de Manaus e que o primeiro-oficial de um barco turco desfrutou dela sem piedade durante a travessia do Atlântico e depois deixou-a abandonada sem dinheiro, sem idioma e sem nome no pântano de luzes do Paralelo. Ambos eram conscientes de ter tão poucas coisas em comum que nunca sentiam-se mais sozinhos que quando estavam juntos, mas nenhum dos dois havia se atrevido a magoar os encantos do hábito. Precisaram de uma comoção nacional para perceber, ao mesmo tempo, o quanto haviam se odiado, e com quanta ternura, durante tantos anos.
Foi uma deflagração. O conde de Cardona estava escutando o dueto de amor de La Bohème, cantado por Licia Albanese e Beniamino Gigli, quando chegou até ele uma rajada casual das notícias do rádio que Maria dos Prazeres escutava na cozinha. Aproximou-se com cuidado e escutou também. O general Francisco Franco, ditador eterno da Espanha, havia assumido a responsabilidade de decidir o destino final de três separatistas bascos que acabavam de ser condenados à morte. O conde exalou um suspiro de alívio.
- Então, vão fuzilá-los sem remédio – disse ele -, porque o Caudilho é um homem justo.
Maria dos Prazeres fixou nele seus ardentes olhos de cobra-real, e viu suas pupilas sem paixão atrás dos óculos de ouro, os dentes de rapina, as mãos híbridas de animal acostumado à umidade e às trevas. Do jeito que ele era.
- Pois rogue a Deus que não – disse -, porque se fuzilarem um só eu boto veneno na tua sopa.
O conde assustou-se.
- E por que isso?
- Porque eu também sou uma puta justa.
O conde de Cardona não voltou mais, e Maria dos Prazeres teve a certeza de que o último ciclo de sua vida acabava de se encerrar. Até pouco antes, indignava-se quando lhe ofereciam o assento nos ônibus, que tentassem ajudá-la a atravessar a rua, que a tomassem pelo braço para subir as escadas, mas havia terminado não apenas por admitir tudo isso, mas desejando como uma necessidade detestável. Então mandou fazer uma lápide de anarquista, sem nome nem datas, e começou a dormir sem passar a tranca na porta para que Noi pudesse sair com a notícia se ela morresse durante o sono. Um domingo, ao entrar em casa na volta do cemitério, encontrou no desvão da escada a menina que morava na porta da frente. Acompanhou-a vários quarteirões, falando-lhe de tudo com um candor de avó, enquanto via a menina brincar com Noi como velhos amigos. Na Plaza del Diamante, tal como havia previsto, ofereceu-lhe um sorvete.
- Você gosta de cachorros? – perguntou.
- Adoro – respondeu a menina.
Então Maria dos Prazeres fez a ela a proposta que tinha preparada desde tempos.
- Se algum dia me acontecer alguma coisa, cuide do Noi – disse – com a única condição de que nos domingos você o deixe livre, sem se preocupar. Ele vai saber o que fazer.
A menina ficou feliz. Maria dos Prazeres, por sua vez, regressou para casa com o júbilo de ter vivido um sonho, amadurecido durante anos em seu coração. Porém, não foi pelo cansaço da velhice nem pela demora da morte que aquele sonho não se realizou. Nem mesmo foi uma decisão própria. A vida havia tomado a decisão por ela numa tarde glacial de novembro, quando se precipitou uma tormenta súbita na saída do cemitério. Havia escrito os nomes nas três lápides e descia a pé para o ponto de ônibus quando ficou empapada até os ossos pelas primeiras rajadas de chuva. Mal teve tempo de abrigar-se nos portais de um bairro deserto que parecia outra cidade, com armazéns em ruínas e fábricas empoeiradas, e enormes furgões de carga que tornavam o estrépito da tormenta ainda mais pavoroso. Enquanto tentava aquecer com seu corpo o cãozinho ensopado, Maria dos Prazeres via passar os ônibus repletos, via passar os táxis vazios com a bandeira abaixada, mas ninguém prestava atenção a seus sinais de náufrago. De repente, quando já parecia impossível até um milagre, um automóvel suntuoso da cor do aço crepuscular passou quase sem ruído pela rua inundada, parou de chofre na esquina e regressou de marcha à ré até onde ela estava. Os vidros desceram por um sopro mágico, e o chofer se ofereceu para levá-la.
- Vou muito longe – disse Maria dos Prazeres com sinceridade. – Mas seria um grande favor me levar até mais perto.
- Diga aonde vai – insistiu ele.
- A Gràcia – disse ela.
A porta abriu-se sem tocá-la.
- Está no meu caminho – disse ele. – Sobe.
No interior, que cheirava a remédio refrigerado, a chuva converteu-se num percalço irreal, a cidade mudou de cor, e ela sentiu-se num mundo alheio e feliz onde tudo estava resolvido de antemão.
O condutor abria caminho através da desordem do trânsito com uma fluidez que tinha algo de magia. Maria dos Prazeres estava intimidada, não apenas pela sua própria miséria mas também pela do cãozinho digno de pena que dormia em seu regaço.
- Isto é um transatlântico – disse, porque sentiu que tinha que dizer algo digno. – Nunca vi nada igual, nem em sonhos.
- Na verdade, a única coisa de mau é que não é meu – disse ele, num catalão difícil, e depois de uma pausa acrescentou em castelhano: – O salário da minha vida inteira não bastaria para comprá-lo.
- Calculo – suspirou ela.
Examinou-o de soslaio, iluminado pelo resplendor do painel, e viu que era quase um adolescente, com o cabelo crespo e curto, e um perfil de bronze romano. Pensou que não era belo, mas que tinha um encanto diferente, que lhe caía muito bem a jaqueta de couro barato gasta pelo uso, e que sua mãe devia sentir-se muito feliz quando adivinhava que estava voltando para casa. Só por suas mãos de lavrador já dava para acreditar que não era dono do automóvel.
Não tornaram a falar em todo o trajeto, mas também Maria dos Prazeres sentiu-se examinada de soslaio várias vezes, e uma vez condoeu-se por continuar viva à sua idade. Sentiu-se feia e compadecida, com o lenço de cozinha que havia posto na cabeça de qualquer jeito quando começou a chover, e o deplorável sobretudo de outono que não tivera a idéia de trocar porque estava pensando na morte.
Quando chegaram no bairro de Gràcia havia começado a amainar, era de noite e as luzes da rua estavam acesas. Maria dos Prazeres disse ao motorista que a deixasse numa esquina próxima, mas ele insistiu em levá-la até a porta de casa, e não só fez isso como também estacionou sobre a calçada para que pudesse descer sem se molhar. Ela soltou o cãozinho, tentou sair do automóvel com toda a dignidade que o corpo permitisse, e quando se virou para agradecer encontrou-se com um olhar de homem que deixou-a sem fôlego. Manteve o olhar por um instante, sem entender direito quem esperava o que, nem de quem, e então ele perguntou com uma voz decidida:
- Subo?
Maria dos Prazeres sentiu-se humilhada.
- Agradeço muito o favor de me trazer – disse -, mas não permito que caçoe de mim.
- Não tenho nenhum motivo para caçoar de ninguém – disse ele em castelhano com uma seriedade terminante. – E muito menos de uma mulher como a senhora.
Maria dos Prazeres havia conhecido muitos homens como aquele, salvara do suicídio muitos outros mais atrevidos que aquele, mas nunca em sua longa vida tivera tanto medo de decidir. Ouviu-o insistir sem o menor indício de mudança na voz:
- Subo?
Ela afastou-se sem fechar a porta do automóvel e respondeu em castelhano para ter certeza de ser entendida.
- Faça o que quiser.
Entrou no saguão mal iluminado pelo resplendor oblíquo da rua e começou a subir o primeiro trecho da escada com os joelhos trêmulos, sufocada por um pavor que só acreditava possível no momento de morrer. Quando parou na frente da porta do apartamento, tremendo de ansiedade para encontrar as chaves na bolsa, ouviu a batida sucessiva das duas portas do automóvel na rua. Noi, que havia se adiantado, tentou latir. “Calado”, ordenou ela com um sussurro de agonia. Quase em seguida sentiu os primeiros passos nos degraus soltos da escada e temeu que seu coração fosse arrebentar. Numa fração de segundo voltou a examinar por completo o sonho premonitório que havia mudado sua vida durante três anos e compreendeu o erro de sua interpretação. “Deus meu”, disse assombrada. “Quer dizer que não era a morte!”.
Encontrou finalmente a fechadura, ouvindo os passos contados na escuridão, ouvindo a respiração crescente de alguém que se aproximava tão assustado quanto ela no escuro, e então compreendeu que havia valido a pena esperar tantos e tantos anos, e haver sofrido tanto na escuridão, mesmo que tivesse sido só para viver aquele instante.


Maio de 1979.



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