segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gabriel García Márquez / Cem anos e três dias de solidão

Gabriel García Márquez

Gabriel García Márquez

Cem anos e três dias de solidão

Amigos de Gabriel García Márquez reconstroem a figura do Nobel colombiano falecido na quinta-feira

Cidade do México vive com intensidade o luto


    Gonzalo Garcia, filho de Gabo, em frente à casa do escritor no México. / E. VERDUGO (AP)
    Gabo dormia em tapetes alheios, fazia piada com as crianças e com os adultos, rompia em família a solenidade que lhe atribuíam e era tímido só quando lhe era conveniente escapar das tolices ou das aglomerações.
    Era um mexicano de Aracataca; agora a cidade, o país, se despede. Frequentava restaurantes e salas de concertos, era habitual das livrarias, e estas estão começando a acordar do estupor de sua ausência, a repor os livros que agora demandam as pessoas como se Gabo ressuscitasse e não tivesse morrido.
    Nas ruas e nas livrarias era um personagem de culto; ao seu redor o silêncio o acompanhava, os jovens escritores viam-no entrar como se estivessem diante de uma relíquia. Isso acontecia há anos numa livraria à qual iam Gabo e Rulfo, dois silenciosos ilustres das estantes mexicanas. Pequenos que queriam ser como eles esperavam, a cada dia, a cada semana, a cada mês, que chegassem um e outro, para comprar música de Bach, peças barrocas.
    Calavam e olhavam. Jordi Soler, que era um daqueles garotos, lembra assim de Gabo: “Era um tímido que havia se dedicado a escrever para não sair de seu quarto. Vê-lo chegar era um espetáculo. Víamos ele chegar, cruzar a praça; caminhava sob a calçada, tinha um caminhar do povo. Ali tudo era aprazível, ele ia sorteando os carros, como se tivesse um sexto sentido”.

    Alberto Salcedo: “Antes dele, a Colômbia era a pátria boba das letras”
    Com o tempo Soler publicou seu livro mais potente até agora, Os vermelhos de ultramar. “Mas como ia irromper em seu âmbito quando o via?; eu caminhava ao lado, junto a essa gente você sempre é um aspirante a escritor. Ele nos havia marcado de maneira permanente; sua prosa nos deslumbrou. Tinha uma música, para mim, desconhecida, em espanhol. Um ritmo caribenho, essa era a forma que tinha de pulsar sua literatura. Sobre mim exerceu uma influência mágica, mas ele e todo mundo que conhece essas selvas sabe que o que ele fez não foi realismo mágico senão realismo puro e duro. Quem já esteve em Aracataca e em Veracruz sabe que Gabo não inventava”.
    Era, diz Soler, “um grande tímido emergindo… Um tímido que havia se dedicado a escrever para não sair de seu quarto”.
    Os amigos de Gabo dizem que este sabia admirar; poderia não dizê-lo, mas sabia admirar. Ele acolheu na Fundação Novo Jornalismo, dirigida por Jaime Abello, e fundada por Gabo, Alma Guillermoprieto, mexicana, escritora da The New Yorker . “Quando o conheci”, disse, “me pareceu uma pessoa muito cheia de si, e algo solene… Imediatamente depois me entusiasmou sua descrição do projeto que trazia, que era a criação da Fundação Novo Jornalismo Ibero-americano”. A ela não lhe pareceu um tímido, mas alguém que sabia de onde vinha, o filho do telegrafista de Aracataca. Era mais bem inseguro; provinha de uma família humilde em um país classista. “Acho que ficou com a marca desse desprezo mascarado por toda a vida”.
    Era o solitário das livrarias, assinava livros mas não assinava papéis, e com o tempo nos locais públicos a gente começou a vê-lo como o ser que existia mas que queria desaparecer entre a multidão. Viver sem ser visto. Alberto Salcedo Ramos, outro dos grandes cronistas, vem das mesmas terras, e sabe qual pode ser a densidade do riso de um Caribe. México e o sucesso o abismaram, voltaram-no para dentro, guardava-se do ruído da fúria da fama. Mas quando chegava à sua terra… “Era o Caribe. Sentido do humor, expansivo, falante. Me surpreendeu que um homem que tinha saído do Caribe há quarenta anos mantivesse aquela oralidade, as piadas, o humor. Foi tímido e homem dos montes em algum momento, não gostava de ir a congressos nem a assembleias, não ia aos lançamentos de seus próprios livros. Era um homem tímido, mas após tanto contato, dissimulava”. E acrescenta: “Forjou a si mesmo, com uma tenacidade superlativa. Antes de Gabo, a Colômbia era a pátria boba das letras; os escritores eram filhos de embaixadores, eram bilíngues desde os cinco anos, cresciam em palácios dotados de grandes bibliotecas. Ele procede das margens, construiu a si mesmo a partir de seu enorme talento. Ele tinha a derrota como destino, mas se safou e se reinventou”.

    As livrarias do México mudam suas vitrines para dedicar ao escritor
    Essa insegurança que dizem que era timidez desaparecia nos âmbitos domésticos. Durante os anos de Barcelona, no final dos sessenta até agora, a coincidência juntou seus amigos que não sabiam, como tantos então, que aquele comprido bigodudo ao que chamavam Gabito ia ser o escritor mais famoso do mundo. São Leticia e Luis Feducchi, psicólogos ambos, Luis também exerce como psiquiatra. Nestes dias têm estado pendentes de “os Gabo”, como seus íntimos de Barcelona (eles, Carmen Balcells…) chamam a Mercedes Barcha e a Gabriel García Márquez.
    Quando se conheceram, em uma das festas que animaram Barcelona que parecia a Cartagena das Índias, Gabo era chamado de Gabito, Cem anos de solidão ainda não explodia e o autor andava escondido de si mesmo. “Foi nos apresentado”, diz Luis, “por Rosa Regás. Cem anos de solidão tinha sido publicado, mas poucos tinham lido. Essa noite íamos embora de uma festa, e os Gabos também. Nos oferecemos para levá-los, e aí soubemos que tinham dois filhos da idade das nossas três filhas. Não tínhamos lido, e trocamos afinidades. A poesia foi uma delas. O cinema, os boleros. Nós os convidamos para jantar em casa. Eram duas famílias que começavam a se ver. Nós não sabíamos deles mais do que foi dito no carro. E assim continuou sendo nossa relação, com eles, com Carmen Balcells, com o filho de Carmen, Luis Miguel: famílias que se juntam”.
    Uma amizade que dura até agora. “Eles souberam cultivá-la, e nós a praticamos com eles. Uns amigos muito firmes que só abandonariam uma amizade por causas muito especiais. Chamam, perguntam, interessam-se pelo que fazemos embora isto seja banal, uma comida, uma roupa, um incidente”.
    E é tão tímido como dizem? “Não sei se Gabo foi tímido”, diz Luis Feduchi. “Acho que foi contido, cuidadoso. Eu acho que a timidez é outra coisa. Onde não tem de atuar aplica sua capacidade para cuidar do outro, para fazer o que o outro deseja. Isso é empatia, não timidez… Não gostava das conversas dispersas. Então retirava-se. Aqueles que o viam nesses momentos deduziam que era um tímido. Não. Era uma pessoa que fugia do que não tinha interesse”.
    Não atuou com eles como “o escritor mais famoso do mundo”. “Ele escrevia O outono do patriarca, esgotado, vinha comer. Jogava-se no chão, após a sobremesa, o tapete cheirava a cão, dizia, e adormecia. De vez em quando gritava: ‘Não mudem de conversa!”. A mudança de conversa o fazia perder o ano. “Nos últimos tempos, quando falhava a memória”, conta Luis Feduchi, “voltávamos às poesias que conhecíamos, e ele as seguia. Lorca, Jorge Manrique… Una história inteira de nossas vidas. É uma perda muito importante. Agora no México sentiremos esse vazio, mas há tantos amigos que o enchem: Mercedes, Carmen Mutis…”. “É uma pena com muita ternura. Gabo foi sempre muito carinhoso; quando já tinha a cabeça assim, dávamos as mãos, esse afeto de Gabo nunca se perdeu. Não se perderá”, conta Leticia Feduchi.
    Belém, filha dos Feducchi, tinha quatro anos quando os Gabo foram jantar pela primeira vez na sua casa. “Eu era gordinha. Ele me disse, nada mais que: ‘Que criança tão gordinha. Pode comer em cima de sua saia’. Mas este senhor quem pensa que é, disse a mim mesma… Logo foi como um tio meu. Eu o consultava para crises sentimentais, matrimoniais. Quando eu tinha doze anos perguntei a ele se valia a pena estudar datilografia. ‘Mas é claro’, disse-me ele, ‘é como aprender a montar numa bicicleta, nunca se esquece’. Eu nunca o tive como um escritor. Em um dia começou a me contar O amor e outros demônios,que estava escrevendo, e eu fiquei espantada, não me atrevi a perguntar. Não era tímido. Era calado. E quando se calava queria dizer que estava pensando”.
    Também não era tímido, senão simpático, para Malcolm Barral, o editor neto de Carlos Barral, sobre quem circula a lenda de que deixou escapar Cem anos de solidão. “Perguntei a Gabo (sobre isso), abruptamente, quando eu era um menino. Ele riu às gargalhadas. ‘Isso é uma bobagem’, me disse, e me esclareceu que meu avô nunca o havia lido. E depois disse: ‘A gente achava que ele queria ser André Gide [que fez com que Galllimard recusasse Em busca do tempo perdido de Proust], mas ele nunca leu o manuscrito”.
    Tímido ou não, no Caribe era pura gargalhada, em Barcelona dormia as sestas no chão das casas dos amigos, e quando ia comprar música de Bach não sabia que ao redor havia rapazes, como Jordi Soler, que faziam fila em Coyoacán para ouvir e pedir boleros. Agora, nas livrarias do México, estão mudando as vitrines para os inundar de Gabo. A cidade prepara-se para dizer adeus como se fosse daqui e não só o filho tímido e audaz do telegrafista de Aracataca. Escondia-se das multidões, refugiava-se nas casas alheias. Agora México e Colômbia preparam a despedida de um herói. Mercedes Barcha, sua mulher, está serena, em casa, com seus filhos, à espera de que também cheguem todos os amigos de Barcelona em cujos tapetes dormia a sesta Gabo no tempo em que escrevia como um mecânico O outono do patriarca.




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