Clarice Lispector
Devaneio e embriaguez de uma rapariga
Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os eléctricos, a
estremecerem-lhe a imagem reflectida. Estava a se pentear vagarosamente diante
da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à
frescurazita da tarde. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora
escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa
pesada e fofa. Se os miúdos e o marido estivessem à casa, já lhe viria à ideia
que seria descuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava
meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios
entrecortados de várias raparigas.
«A Noite!», gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e
alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou
absorta: «Quem viu o pardalzito... passou pela janela... voou pr'além do
Minho!» — mas, colérica, fechou-se dura como um leque.
Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a farfalhar no quarto.
Pegou o lenço, aspirava-o a comprimir o bordado áspero com os dedos
avermelhados. Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a
rir. Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais
fechando os olhos, a abanar-se mais profundamente. Ai, ai, vinha da rua como
uma borboleta.
«Bons dias, sabes quem veio a me procurar cá à casa?», pensou como
assunto possível e interessante de palestra. «Pois não sei, quem?»,
perguntaram-lhe com um sorriso galanteador, uns olhos tristes numa dessas caras
pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal. «A Maria Quitéria, homem!»,
respondeu garrida, de mão à ilharga. «E se mo permite, quem é esta rapariga?»,
insistiu galante, mas já agora sem fisionomia. «Tu!», cortou ela com leve
rancor a palestra, que chatura.
Ai que quarto suculento!, ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas
persianas tremia na parede como uma guitarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao
peso arquejante dos eléctricos que vinham da Rua Mem de Sá. Ela ouvia curiosa e
entediada o estremecimento do guarda-loiça na sala das visitas. D'impaciência,
virou-se-lhe o corpo de bruços, e enquanto estava a esticar com amor os dedos
dos pés pequeninos, aguardava seu próprio pensamento com os olhos abertos.
«Quem encontrou, buscou», disse-se em forma de rifão rimado, o que sempre
terminava por parecer com alguma verdade. Até que adormeceu com a boca aberta,
a baba a humedecer-lhe o travesseiro.
Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a entrar pelo quarto
adentro. Não quis jantar nem sair de seus cuidados, dormiu de novo: o homem lá
que se regalasse com as sobras do almoço.
E já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá, ela
aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e leve na cama, um desses
caprichos, sabe-se lá. O marido apareceu-lhe já trajado e ela nem sabia o que o
homem fizera para o seu pequeno-almoço, e nem olhou-lhe o fato, se estava ou
não por escovar, pouco se lhe importava se hoje era dia de ele tratar os
negócios na cidade. Mas quando ele se inclinou para beijá-la, sua leveza
crepitou como folha seca:
— Larga-te daí!
— E o que tens?, pergunta-lhe o homem atónito, a ensaiar imediatamente
carinho mais eficaz.
Obstinada, ela não saberia responder, estava tão rasa e princesa que não
tinha sequer onde se lhe buscar urna resposta. Zangou-se:
— Ai que não me maces! Não me venhas a rondar como um galo velho!
Ele pareceu pensar melhor e declarou:
— Ó rapariga, estás doente.
Ela aceitou surpreendida, lisonjeada. Durante o dia inteiro ficou-se na
cama, a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos, sem o homem que
hoje comeria seus cozidos pela cidade. Durante o dia inteiro ficou-se à cama.
Sua cólera era ténue, ardente. Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos,
donde voltava nobre, ofendida.
A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo
amanhecendo inocente pela casa toda.
Ela, ainda à cama, tranquila, improvisada. Ela amava... Estava
previamente a amar o homem que um dia ela ia amar. Quem sabe lá, isso às vezes
acontecia, e sem culpas nem danos para nenhum dos dois. Na cama a pensar, a
pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A pensar, a pensar. O quê? Ora, lá
ela sabia. Assim deixou-se ficar.
Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do
primeiro instante parecia doída e delicada no quarto que rodava, que rodava
até ela conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama, surpreendida de que
talvez fosse verdade: «Ó mulher, vê lá se me vais mesmo adoecer!», disse
desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres.
Nessa noite, até dormir, fantasticou, fantasticou: por quantos minutos?,
até que tombou: adormecidona, a ressonar com o marido.
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que
voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, dia de lavar
roupa e serzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa
e satisfeita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã
pressurosa de sol.
Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tiradentes a atenderem ao
convite do negociante tão próspero, ela com vestidito novo que se não era cheio
d'enfeites era de bom pano superior, desses que lhe iam a durar pela vida
afora. No sábado à noite, embriagada na Praça Tiradentes, embriagada mas com o
marido ao lado a garanti-la, e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais
fino e rico, procurando dar-lhes palestras, pois que ela não era nenhuma
parola d'aldeia e já vivera em capital. Mas borrachona a mais não
poder.
E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito
ao negociante, e, cheio d'empenho e d'humildade, deixava-lhe, ao outro, o
cantar de galo. O que assentava bem para a ocasião fina, mas lhe punha, a ela,
uma dessas vontades de rir!, um desses desprezos!, olhava o marido metido no
fato novo e achava-lhe uma tal piada! Borrachona a mais não poder mas sem
perder o brio de rapariga. E o vinho verde a esvaziar-se-lhe do copo.
E quando estava embriagada, como num ajantarado farto de domingo, tudo
o que pela própria natureza é separado um do outro — cheiro d'azeite dum lado,
homem doutro, terrina dum lado, criado de mesa doutro — unia-se esquisitamente
pela própria natureza, e tudo não passava duma sem-vergonhice só, duma só
marotagem.
E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus gestos eram
etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro, em verdade por dentro
estava-se até lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem
esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E
aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdém por tudo, a
torná-la madura e redonda como uma grande vaca.
Naturalmente que ela palestrava. Pois que lhe não faltavam os assuntos
nem as capacidades. Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava
embriagada era como se estivesse prenhe — palavras apenas na boca, que pouco
tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez. Ai que
esquisita estava. No sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la,
e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas — e
ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez vermelho e branco da mesa
como sobre uma mesa de jogo, profundamente lançada numa vida baixa e
revolucionante. E esta gargalhada? Essa gargalhada que lhe estava a sair
misteriosamente duma garganta cheia e branca, em resposta à finura do
negociante, gargalhada vinda da profundeza daquele sono, e da profundeza
daquela segurança de quem tem um corpo. Sua carne alva estava doce como a de
uma lagosta, as pernas duma lagosta viva e a se mexer devagar no ar. E aquela
vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim. E aquela
maldadezita de quem tem um corpo.
Palestrava, e ouvia com curiosidade o que ela mesma estava a responder
ao negociante abastado que, em tão boa hora, os convidara e pagava-lhes o
pasto. Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder: o que
dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio — já agora ela não era
lagosta, era um duro signo: escorpião. Pois que nascera em Novembro.
Um holofote enquanto se dorme que percorre a madrugada — tal era a
sua embriaguez errando lenta pelas alturas.
Ao mesmo tempo, que sensibilidade!, mas que sensibilidade!, quando
olhava o quadro tão bem pintado do restaurante ficava logo com sensibilidade
artística. Ninguém lhe tiraria cá das ideias que nascera mesmo para outras
coisas. Ela sempre fora pelas obras d'arte.
Mas que sensibilidade!, agora não apenas por causa do quadro de uvas e
peras e peixe morto brilhando nas escamas. Sua sensibilidade incomodava sem
ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de
se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era
protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição
na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. Ai que
infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo
e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais,
contanto que não perdesse o brio. E assim, mais emborrachada ainda, percorria
os olhos pelo restaurante, e que desprezo pelas pessoas secas do restaurante,
nenhum homem que fosse homem a valer, que fosse triste mesmo. Que desprezo
pelas pessoas secas do restaurante, enquanto ela estava grossa e pesada, generosa
a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais
um pudesse falar com o outro. Cada um por si, e lá Deus por toda a gente.
Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d'entrada, lhe fizera
subir a mostarda ao nariz. Logo d'entrada percebera-a sentada a uma mesa com
seu homem, toda cheia dos chapéus e d'ornatos, loira como um escudo falso,
toda santarrona e fina — que rico chapéu que tinha! —, vai ver que nem casada
era, e a ostentar aquele ar de santa. E com seu rico chapéu bem-posto. Pois que
bem lhe aproveitasse a beatice!, e que se não lhe entornasse a fidalguia na
sopa! As mais santazitas era as que mais cheias estavam de patifaria. E o
criado de mesa, o grande parvo, a servi-la cheio das atenções, o finório: e o
homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas. E a santarrona toda
vaidosa de seu chapéu, toda modesta de sua cinturita fina, vai ver que não era
capaz de parir-lhe, ao seu homem, um filho. Ai que não tinha nada a ver com
isso, a bem dizer: mas já d'entrada crescera-lhe a vontade d'ir e
d'encher-lhe, à cara de santa loira da rapariga, uns bons sopapos, a fidalguia
de chapéu. Que nem roliça era, era chata de peito. E vai ver que, com todos os
seus chapéus, não passava duma vendeira d'hortaliça a se fazer passar por
grande dama.
Oh, como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu, a
cabeça agora parecia-lhe nua. E a outra com seus ares de senhora, a fingir de
delicada. Bem sei o que te falta, fidalguita, e ao teu homem amarelo! E se
pensas que t'invejo e ao teu peito chato, fica a saber que me ralo, que bem me
ralo de teus chapéus. A patifas sem brio como tu, a se fazerem de rogadas, eu
lhas encho de sopapos.
Na sua sagrada cólera, estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito.
Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapareceu: remexia-se
agora dentro da realidade familiar de seu quarto, agora sentada no bordo de sua
cama com a chinela a se balançar no pé.
E, como entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de carne, o pé da
cama de carne, a janela de carne, na cadeira o fato de carne que o marido
jogara, e tudo quase doía. E ela cada vez maior, vacilante, túmida, gigantesca.
Se conseguisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior. Cada braço
seu poderia ser percorrido por uma pessoa, na ignorância de que se tratava de
um braço, e em cada olho podia-se-lhe mergulhar dentro e nadar sem saber que
era um olho. E ao redor tudo a doer um pouco. As coisas feitas de carne com
nevralgia. Fora o friozito que a tomara ao sair da casa de pasto.
Estava sentada à cama, conformada, céptica.
E isso ainda não era nada, só Deus sabia: ela sabia muito bem que isso
inda não era nada. Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais
tarde iriam a doer mesmo e a valer: quando ela voltasse ao seu tamanho comum,
o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas
comilanças e vinhos.
Então, já que isso terminaria mesmo por acontecer, tanto se me faz
abrir agora mesmo os olhos, o que fez, e tudo ficou menor e mais nítido, embora
sem nenhuma dor. Tudo, no fundo, estava igual, só que menor e familiar. Estava
sentada bem tesa na sua cama, o estômago tão cheio, absorta, resignada, com a
delicadeza de quem espera sentado que outro acorde. "Empanturraste e eu
que pague o pato", disse-se melancólica, a olhar os deditos brancos do pé.
Olhava ao redor, paciente, obediente. Ai, palavras, palavras, objectos do
quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e
maçantes que quem souber ler lerá. Aborrecimento, aborrecimento, ai que
chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que
se havia de fazer. Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer.
Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertira tanto esta
noite!, e dizer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante, ela sentada
fina à mesa. Mesa!, gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a responder-lhe, a
alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar
com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga
náusea.
Foi nesse instante que ficou surda: faltou-lhe um sentido. Enviou à
orelha uma tapona de mão espalmada, o que só fez entornar mais o caldo: pois
encheu-se-lhe o ouvido de um rumor de elevador, a vida de repente sonora e aumentada
nos menores movimentos. Das duas, uma: estava surda ou ouvir de mais — reagiu a
essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incómoda, com um suspiro de
saciedade conformada. Prós raios que os partam, disse suave, aniquilada.
"E quando no restaurante...", lembrou-se de repente. Quando
estivera no restaurante o protector do marido encostara ao seu pé um pé em
baixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele. Porque calhara ou de propósito?
O mafarrico. Uma pessoa, a falar verdade, que era lá bem interessante. Alçou
os ombros.
E quando no seu decote redondo — em plena Praça Tiradentes!,
pensou ela abanar a cabeça incrédula — a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai
que malícia.
Havia certas cousas boas porque era quase nauseantes: o ruído como de
elevador no sangue, enquanto o homem roncava ao lado, os filhos gorditos
empilhados no outro quarto a dormirem, os desgraçadinhos. Ai que cousa que se
me dá!, pensou desesperada. Teria comido de mais?, ai que cousa que se me dá,
minha santa mãe!
Era a tristeza.
Os dedos do pé a brincarem com a chinela. O chão lá não muito
limpo. Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria
lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver:
dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades
todas!, a casa havia de ver!, ameaçou ela colérica. Ai que se sentia tão bem,
tão áspera, como se ainda estivesse a ter leite nas mamas, tão forte. Quando o
amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela. E
quando ela ficava a se envergonhar não sabia onde havia de fitar os olhos. Ai
que tristeza. Que é que se há de fazer. Sentada no bordo da cama, a pestanejar
resignada. Que bem que se via a Lua nessas noites de Verão. Inclinou-se um
pouquito, desinteressada, resignada. A Lua. Que bem que se via. A Lua alta e
amarela a deslizar pelo céu, a coitadita. A deslizar, a deslizar... Alta, alta.
A Lua. Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor; cadela, disse a rir.
Clarice Lispector
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