sábado, 3 de maio de 2014

García Márquez e a Escola de Jornalismo

Gabriel García Márquez

Gabo e a Escola de Jornalismo

No dia 6 de setembro de 1995 um grupo de alunos da Escola de Jornalismo do EL PAÍS escutou pela primeira vez o início de 'Notícia de um sequestro'



    O escritor Gabriel García Márquez durante a conversa-colóquio na Escola de Jornalismo da UAM em 1994. / GORKA LEJARCEGI
    Desatou-se um vendaval e as luzes se desligaram para não voltar em um bom tempo. Na sala de aulas La Cristalera da Universidade Autónoma de Madri (UAM), no povoadinho madrilenho de Miraflores de la Sierra, a 60 quilômetros da capital, Gabriel García Márquez pediu velas e continuou com sua oficina de Reportagem e Redação para uma dúzia de privilegiados alunos da Escola de Jornalismo UAM/ EL PAÍS. No meio da estrepitosa tormenta, os congregados ouviram pela primeira vez o seguinte parágrafo: “Antes de entrar no carro olhou para acima do ombro para ter certeza de que ninguém a espreitava. Eram as sete e cinco minutos da noite de Bogotá. Tinha escurecido uma hora antes, o Parque Nacional estava mal iluminado e as árvores sem folhas tinham um perfil fantasmagórico contra o céu turvo e triste, mas não havia à vista nada que temer”. Parecia uma metáfora do que nesse momento estava ocorrendo em Miraflores. Era 6 de setembro de 1995 e um grupo de jornalistas que amadurecia escutava pela primeira vez o começo deNotícia de um sequestro.
    No final de 1993 Gabo viajava a Madri. Quer se entrevistar com os responsáveis e os alunos da Escola de Jornalismo para conhecer in situseu funcionamento. Gabo se tranca por cerca de três horas com professores e alunos, e dá sua visão do jornalismo e do que quer fazer e, sobretudo, pergunta para sanar suas dúvidas, se afiançar de algumas ideias e corrigir outras. Permite aos alunos que gravem essa conversa, que é inédita e que se conserva no arquivo da Escola. Apenas um trimestre depois, a conversa se repete em Bogotá, com mais intensidade. No café do hotel Charleston da capital colombiana, García Márquez comenta que está muito decidido a liderar “algo” relacionado com a formação dos jornalistas. É a origem da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano (FNPI, em sua sigla em espanhol).
    Quase um ano depois disso, aproveitando uma passagem por Madri, García Márquez dirigiu uma oficina de Reportagem e Redação na Escola de Jornalismo. Pensou-se que era bom que fosse muito intensiva e que os jornalistas que participassem nela se isolassem de qualquer outra atividade nos dias nos quais se desenvolvesse a oficina. Por isso foi escolhida a sede de La Cristalera. O primeiro problema foi a seleção: embora nunca tenha sido pública senão restrita a jornalistas do EL PAÍS, a Escola de Jornalismo e convidados de outros veículos, a primeira lista chegou a uma centena de participantes. Houve que deixá-la em um máximo de doze por exigência de Gabo que nunca trabalhava com um grande número de pessoas, por uma mistura de eficácia e timidez. A única vez que Gabo consentiu que todos os alunos e professores estivessem presentes em uma de suas oficinas foi no final de 1993, quando veio à Escola. Entre as opiniões que deixou naquela oficina figuram as seguintes, a modo de pílulas:


    Gabriel García Márquez

    - “Há um aspecto fundamental do jornalismo que é a reportagem, que é o que eu sempre gostei, que é o que eu sempre pratiquei, que se está confundindo com o da entrevista. Tenho, não sei se é uma vantagem ou desvantagem, de estar em ambos lados da escrivaninha, sou sujeito do jornalismo e me sinto jornalista e me preocupa a relevância da entrevista como gênero. Me surpreende muito que quase ninguém me peça como tema de seu trabalho algo diferente de uma entrevista. Faz pouco tempo, tentando ajudar uma jovem jornalista que me pediu a entrevista correspondente, eu lhe disse: venha amanhã, tomamos café de manhã juntos, e depois vai ficar do meu lado sem estorvar, vai ficar a certa distância mas vai perceber tudo, e depois escreva a reportagem do que eu fiz em um dia. Ela esteve muito bem, permaneceu o tempo todo do meu lado, mas no final não resistiu e me disse 'vou lhe fazer umas perguntinhas'. E terminou escrevendo uma entrevista”.
    - “Eu detesto a entrevista. Tenho a impressão de que é um convencionalismo. Nas poucas entrevistas que eu dou represento a personagem que quero ser, não o que eu sou. Para mim a entrevista terminou por ser parte da ficção. Eu invento respostas se é para um jornalista que eu aprecio muito, para que renda mais, para que tenha mais assunto, mas não acho que esteja comunicando minha verdadeira personalidade, meu verdadeiro pensamento, e acho que todos os que estão submetidos à ditadura das entrevistas antes ou depois terminam fazendo a mesma coisa. Por outro lado, a reportagem, que acho que foi inventada pelos jornalistas norte-americanos, não se pratica tanto como se deveria. Isto é, contar o que aconteceu para que o leitor saiba o que aconteceu como se tivesse estado no local. Esta é a parte que mais me preocupa do jornalismo atual”.
    - “Vou dizer-lhes uma coisa que talvez desanime a alguns: eu acho que se nasce jornalista, como se nasce pintor ou músico. Acho porque considero o jornalismo um gênero literário, como o romance, como o teatro, como a poesia. Isso significa que alguns dos que estão aqui nunca serão jornalistas. Tenho muito claro com a narração. Duas pessoas vão ver um filme e você pede que lhe contem. O primeiro explica: 'Bom, é o filme de uma garota que está traumatizada pelas contradições entre sua formação de camponesa e as angústias da cidade'. O segundo diz: 'Esta é uma garota que um dia foge de casa e pede carona na estrada; chega à cidade, não sabe o que fazer mas entra em um abrigo para conseguir dinheiro'. Este último está contando o filme tal como foi e o primeiro o está interpretando. O primeiro pode aprender o que ele quiser, mas jamais será um narrador; ao segundo ainda lhe falta muito, lhe falta a técnica, a formação, mas pode chegar a sê-lo. A pessoa nasce ou não nasce jornalista, a vida o dirá. Além disso, é preciso vocação: é muito duro sentar para escrever todos os dias, saiam bem, ou não, as coisas, a vida toda. E só a vocação permite superar as dificuldades”.


    García Márquez na Escola de Jornalismo do EL PAÍS em 1996. / GORKA LEJARCEGI
    Em outubro de 1994 nasce a Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano (FNPI). Desde então, os intercâmbios de professores se multiplicaram. Os da Escola de Jornalismo UAM/EL PAÍS foram muitas vezes até Cartagena; os mestres da FNPI deram numerosas conferências na Escola de Jornalismo UAM/EL PAÍS. Um ano depois desta presença de Gabo na rua Miguel Yuste de Madri (sede da Escola de Jornalismo), em setembro de 1995, voltou para dar a oficina de Reportagem e Redação citada, em Miraflores. Durante três dias, todas as manhãs, muito cedo, Gabriel García Márquez tomava um carro muito próximo do hotel Ritz e se dirigia à residência La Cristalera, onde convivia o dia todo com a dúzia de alunos que participavam da oficina. No terceiro dia, 6 de setembro, a clausura consistiu na leitura das primeiras páginas daquele livro reportagem que anunciava: Notícia de um sequestro. Foi então, como para validar o realismo mágico e para que a realidade copiasse a ficção, a tormenta deixou sem eletricidade uma sala de aulas sem janelas, e à luz das velas, com sua voz inconfundível, ele leu e leu.
    Pouco depois voltou a luz. Quando Gabo terminou de ler, os presentes aplaudiram com entusiasmo. Os sequestrados eram eles. Pelo jornalismo puro e a grande literatura.




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