Gabriel García Márquez junto a Alma Guillermoprieto, Jaime Abello Banfi, Gustavo Bell, José Salgar, Javier Darío Restrepo y Sergio Ramírez na sede da FNPI em Cartagena, 2006. /ARCHIVO FNPI |
Gabriel García Márquez
Entre a disciplina e a farra
A escritora lembra de sua relação com García Márquez através da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano
ALMA GUILLERMOPRIETO 19 ABR 2014 - 19:55 BRT
Muitas pessoas que nunca o conheceram e a quem nunca fez danos falavam horrores dele. Que era orgulhoso, déspota, demasiado próximo ao poder. Por outro lado, não notavam que ele hipnotizava igualmente o poder e os poderosos, o jornalismo e os jornalistas, ou qualquer outro ofício que se exercesse com esforço e maestria; que passava inventando projetos para usufruto de outros, e que no círculo de suas verdadeiras amizades ele e Mercedes mantiveram por igual aos velhos amigos dos tempos duros e aos resplandecentes protagonistas líderes.
Eu o conheci trabalhando—me chamou um dia para que participasse nan construção da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano— e desde essa primeira tarde me assombrou não só a generosidade do telefonema senão a energia que o levou a criar uma e outra vez projetos deslumbrantes e ambiciosos. Não coloco aqui a palavra "sonhadores", porque nunca me pareceu que sonhasse muito. Entusiasmava-se, fazia.
Certamente era vaidoso; seu trabalho tinha custado a ele acumular os lucros para justificá-lo. Egoísta era, como todo artista que vive defendendo a muralha que protege sua criatividade do mundo. Que se aproximou do poder? Aí sim, nem se fala: hipnotizado, mais bem, pelo poder, indiscutível e incompreensivelmente, e de frente. Tudo fazia parte de sua voraz curiosidade e sua fome de mundo, suas vontades de tudo: de triunfar, de admirar, de saber, de festejar. Neste último dava aulas apesar da idade e da enfermidade: nas reuniões da Fundação davam a uma, as duas, as três da manhã, vinga beber, vinha rumba, rumba ia, iam caindo um depois do outro os celebrantes, e ele e Mercedes, incólumes.
Quando o conheci já exercia mais a disciplina que a farra, e pouco a pouco fui percebendo não só sua enorme capacidade de trabalho, senão o orgulho que produzia ser capaz de trabalhar assim. Nunca o ouvi se ufanar de tal livro ou tal frase bem construída. Presumia, ao contrário, do trabalho que lhe tinha custado a conseguir. "A mim o que me dá medo", disse uma e outra vez, "é que me vejam na carpintaria". Mas não era verdadeiro: a carpintaria—a estrutura inexpugnável de cada um de seus romances, as pontes e as transições invisíveis entre seus episódios, os ritmos síncopes e velozes da cada frase, o empurrão tão tremendo dinâmico no uso dos verbos—era o trabalho que levava a cabo arduamente. O talento tinha o presenteado algum deus—Hermes, quiçá, tão traveso e comunicador—e portanto não pertencia a ele. O que Gabo contribuía era o esforço e o trabalho, e isso sim era de sua propriedade. Não por nada Aureliano Buendía não é um artista senão um ourives.
Em suas manhãs García Márquez armava e rearmava a engenharia de uma alínea, corrigindo e reforçando a cada ponto de apoio até deixá-lo praticamente antissísmico. Estudou sempre os autores que admirava, da mesma forma que examinam os atletas os vídeos dos demais Medalhas de Ouro, não para copiar senão para entender. Mas antes de qualquer leitura, e muito antes que a primeira frase que digitou em algum dia, teve entre seus muitas principais ferramentas a sua prodigiosa memória, que o surtia não só de lembranças, senão de palavras. Tinha milhares em seu ter—soltas, guardadas em arcas em sequência como se fossem colares—e lembrava de todas. Em uma das primeiras reuniões da Fundação, Tomás Eloy Martínez, Carlos Monsiváis e ele foram recitando por relevos trechos do Novo canto de amor a Stalingrado de Neruda: "Eu escrevi sobre o tempo e sobre a água". Calou primeiro Tomás Eloy, ficou mudo pouco depois Monsiváis, e Gabo seguiu recitando, longamente.
Assim que pôde, viveu bem—carro bom, bebida boa, casa boa—e presenteou quantidades extravagantes de dinheiro a próprios e estranhos. Mas seu compasso e seu relógio interno regeram-se sempre pelo sentido que lhes dava o trabalho. Na formosa casa de San Ángel que arrumou com tanta calidez Mercedes, o que a ele interessava mostrar a uma visita nova era seu estúdio. "Olha, aqui trabalho".Inclusive já muito entrando no túnel de neblina que lhe foi tirando a lembrança se apresentava em seu estudo todos os dias, formalmente vestido e pronto para sentar em frente ao computador.
Muito antes disso, há anos, fui visitá-los em seu apartamento de Bogotá, e durante uma hora me foi mostrando, um a um, sua vasta coleção de dicionários. Tinha-os geográficos, cientistas, médicos, arquitetônicos, de homônimos, antônimos, latim, francês, velhos, novos, antigos, gastos ou reencadernados, enormes ou em fascículos. “Olha!” disse-me, abraçando com o gesto toda a enorme prateleira. "Olha quantas palavras tenho!" Ao igual que o dinheiro, as recebeu, desfrutou, e gastou extravagante e generosamente.
Alma Guillermoprieto é escritora.
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