quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

John Le Carré: “O Brexit é a maior idiotice já perpetrada pelo Reino Unido”

 

John Lhe Carré, retratado em Deia (Maiorca) em agosto.
John Le Carré, retratado em Deia (Maiorca) em agosto.SAMUEL SÁNCHEZ

John Le Carré: “O Brexit é a maior idiotice já perpetrada pelo Reino Unido”

Romancista britânico publica seu novo livro, ‘Agent Running in the Field’, enquanto mostra sua indignação com a saída britânica da UE


Guillermo Altares
21 Oct 2019

Em seu romance anterior, Um Legado de Espiões, John Le Carré ressuscitou seu emblemático personagem George Smiley. E anunciou então que talvez fosse seu último livro. Entretanto, aos 88 anos, este clássico vivo das letras britânicas e uma referência pela teimosia e sinceridade com que defendeu seu senso de ética e um modelo de sociedade mais justo, retornou com um novo livro, Agent Running in the Field (“agente correndo no campo”), ainda inédito no Brasil. Trata-se de uma história de espiões, semelhante à suas míticas obras sobre a Guerra Fria, como O Espião que Veio do Frio e O Espião que Sabia Demais, com a diferença de que o Brexit paira sobre este. De gargalhada fácil e extremamente educado, Le Carré (pseudônimo literário de David Cornwell, nascido no Poole, Dorset, em 1931) não oculta sua irritação quando fala do Brexit ou do Governo de Boris Johnson, sobre o qual solta todo tipo de impropérios. De fato, custa-lhe falar de seu livro sem mudar de assunto e inflamar-se ao refletir sobre o que ocorre em seu país. O Parlamento britânico reuniu-se no sábado para tentar acabar com a crise política, constitucional e emocional que fraturou o Reino Unido nos últimos três anos e meio. A Câmara dos Comuns, por 322 votos a favor e 306 contra, aprovou uma emenda que obriga o primeiro-ministro a pedir uma nova prorrogação à UE.

A entrevista foi feita em Mallorca (Espanha) no começo de agosto, durante férias do escritor nas ilhas Baleares, mas foi atualizada neste domingo por telefone. Le Carré acabava de participar no sábado, em Londres, de uma manifestação contra o Brexit, mas já se esfumaram as chances de que seu país permanecesse na União Europeia – algo que ele esperava que fosse possível dois meses atrás. Inclusive, considera que a própria sobrevivência do Reino Unido está em perigo.

Pergunta. O senhor disse certa vez que viu o Muro de Berlim ser construído quando tinha 30 anos, e derrubado quando tinha 60. Imaginou alguma vez a Europa em que vivemos agora e a crise provocada pelo Brexit?

Resposta. Parece-me algo impensável. É sem dúvida alguma a maior idiotice e a maior catástrofe que o Reino Unido já perpetrou desde a invasão de Suez [1956]. Para mim é um desastre autoinfligido, pelo qual não podemos culpar ninguém, nem os irlandeses, nem os europeus... Somos uma nação que sempre esteve integrada no coração da Europa. Podemos ter tido conflitos, mas somos europeus. A ideia de que podemos substituir o acesso ao maior tratado comercial do mundo pelo acesso ao mercado norte-americano é aterradora. A instabilidade que Donald Trump provoca como presidente, suas decisões de egomaníaco… Realmente vamos nos colocar à mercê disso em vez de continuar como membros ativos da UE? É uma loucura, é terrível e é perigoso. Eu não gosto politicamente, nem acredito nisso economicamente, e não entendo. Não entendo como chegamos a essa situação em que temos um Governo do Mickey Mouse de gente de segunda categoria. O secretário [ministro] de Relações Exteriores é alguém a quem realmente desprezo, nunca conheci essa gente, mas só produziu relatórios de segunda categoria, e é um homem muito estúpido e um péssimo negociador. Isso é que o penso sobre essa situação.

P. “Quando chegamos a uma idade provecta, os grandes espiões nos pomos a procurar as grandes verdades”, diz seu personagem, George Smiley, ao final de Um Legado de Espiões, seu romance anterior. Isso é verdade também para os escritores?
"O novo acordo é uma traição à Irlanda do Norte, um prego a mais no caixão da união do Reino Unido"


R. É verdade para mim. Conforme a vida avança, me tornei mais radical, mais contrário à guerra, desesperadamente preocupado com a ecologia e a mudança climática. Tenho 14 netos e três bisnetos, e suas vidas estão em perigo, e a vida da civilização. O planeta sobreviverá, claro, mas não tenho certeza de que a humanidade conseguirá sobreviver. Você mencionou Smiley no final de Um Legado de Espiões. É interessante para mim agora, retrospectivamente, porque Smiley, pelo que sabemos, termina sua vida na Alemanha. É lá onde o encontramos ao final daquela novela, e este novo livro conta a história de alguém a quem é preciso tirar do Reino Unido. Agora mesmo é muito difícil ser britânico e europeu. A demonização da Europa por esta horrível imprensa britânica parece incontrolável. É preciso recordar que 80% da mídia britânica estão nas mãos de oligarcas que vivem em paraísos fiscais. Quem se beneficia do Brexit? É algo que não posso entender. Se você estiver em um paraíso fiscal e puder apostar contra a libra, se gerir recursos de investimento e observar de onde sopra o vento, pode ganhar muito dinheiro. É isto que faz estes oligarcas da imprensa apostarem no Brexit? Temos que recordar que tratamos com gente de segunda, começando por Johnson. Acho muito importante que os europeus compreendam isso. Não é nossa primeira escalação, é nossa terceira escalação.

P. Que acha do novo acordo de saída alcançado entre o Reino Unido e Bruxelas?

"Boris Johnson é um moleque fazendo-se passar por primeiro-ministro"


R. É uma traição à Irlanda do Norte, um prego a mais no caixão da união do Reino Unido. O interessante é o que Boris Johnson fará agora, porque ele deu uma resposta de colegial ao não querer assinar a carta a Bruxelas. É um moleque fazendo-se passar por primeiro-ministro. O principal é evitar que se produza uma saída sem acordo, e nisso apoio as medidas que o Parlamento tomou ao pedir uma nova prorrogação.

P. Há cerca de dois meses, o senhor considerava existir uma remota possibilidade de que a saída se tornasse impossível e que houvesse um novo referendo. Perdeu a esperança?

R. Temo que a realidade seja a que é. Há muito cansaço pelo Brexit, muita impopularidade das instituições. Embora a medida tenha sido desautorizada pelos juízes do Supremo Tribunal, em certa medida Johnson está cada vez mais forte. Vão lhe fechar a porta da saída sem pacto, mas temo que em poucos dias ele ganhe. Enfrentamos um aumento do neofascismo: a maior ameaça terrorista atualmente no Reino Unido vem da ultradireita, e isso quem diz é a polícia. Essa gente envenenou a atmosfera. Primeiro tocaram as velhas de canções de eurofobia, e depois criaram esses sentimentos de rejeição ao outro através da imprensa popular, e agora o estão explorando. Em algum lugar do nosso país se esconde a velha estabilidade e o senso comum, mas ele desapareceu do discurso político.
"Existe um perigo real de desintegração do Reino Unido"


P. O Reino Unido está realmente em perigo?

R. Existe um perigo real de desintegração no Reino Unido. O que estamos dizendo à Irlanda do Norte é que se danem. E tudo isto aproxima mais do que nunca a possibilidade de reunificação da Irlanda, e na Escócia podem aproveitar-se desta situação. Acredito que existe a possibilidade de o Reino Unido se desmantelar. Em longo prazo, é possível que o problema catalão se torne muito pior como consequência do que ocorrer aqui. Johnson é uma pessoa que não tem nenhuma relação com a verdade, votou contra muitas das coisas que agora mesmo está oferecendo. obteve um pacto muito pior que o anterior. É muito deprimente.

P. Acha que Donald Trump, inclusive Boris Johnson, podem ser agentes russos?

R. Não vejo por que Johnson seria, exceto pelo fato de que sempre viveu de forma muito desatada, que é um indiscreto e que tem uma personalidade muito desagradável. Trump é um assunto completamente diferente. Tem enormes interesses econômicos na Rússia, existem indicações de que sua gente tratou de especular no mercado imobiliário em Moscou, e a vida do Trump é muito desordenada. Se Vladimir Putin tivesse provas de irregularidades financeiras e estivesse disposto a divulgá-las, talvez pudesse derrubá-lo. Mas por que o faria? É muito melhor dominar o personagem. Sempre que aparece a questão russa no horizonte, Trump se comporta com uma proximidade irracional em relação a Putin. Fantasio às vezes com o que aconteceria se a inteligência britânica, que tem ótimas fontes na Rússia, conseguisse provas irrefutáveis de que Trump está controlado por Putin. Quem a escutaria? Como lidariam com isso?
"Fiz coisas no serviço secreto das quais agora me envergonho"


P. Seus últimos dois livros recuperaram o ambiente da velha Guerra Fria, neste último inclusive entre a Alemanha e o Reino Unido. Acredita que haja atualmente uma desconfiança profunda contra o Reino Unido por parte seus ex-sócios?

R. Enfrentamos um sistema de propaganda horrível. A maioria dos jornais apoia o Brexit, demoniza o primeiro-ministro irlandês e toda a Europa, embora seu pior inimigo seja a Alemanha. Não deixam de falar do espírito de Dunquerque, de como a Europa deixou a Inglaterra sozinha. É pura porcaria. Mas estamos nas mãos de manipuladores, e a Rússia colaborou nesta manipulação. Não foi totalmente admitida a dimensão da intervenção russa naquele referendo. Cada vez há mais evidências. Convocar um referendo no Reino Unido, onde existe uma democracia parlamentar, é absurdo. Fazemos um referendo sobre a pena de morte e começamos a pendurar gente nas ruas? A chave da democracia parlamentar é que se escolhem pessoas competentes para representar sua comunidade. O que aconteceu conosco, o que aconteceu com a gente moderada, decente, com os pragmáticos? Temos uma tradição nisso. O aroma de autocracia está aí. Estou furioso com tudo isto: nós não somos isso.

P. O senhor escreveu que a eficácia dos serviços secretos reflete a capacidade de um país. Neste romance não parece que os serviços secretos britânicos sejam os mais eficazes do mundo...

R. Falta-nos direção. Depois da Guerra Fria ficamos desarmados de pensamento. Atualmente não encontro nenhum idealismo, exceto a confiança no Brexit. Não existe nenhum líder com força suficiente que nos mostre a realidade do que ocorre. No livro vemos essa absoluta falta de direção. Se o MI6 fosse capaz de mostrar as verdadeiras intenções de Trump, seu acordo com Putin, a que governo apresentaria? A que entidade dos Estados Unidos? O terrível em ambos os lados do Atlântico é a ausência de coragem moral.

P. Um dos grandes tema de sua literatura é a capacidade das pessoas em continuarem sendo morais em um mundo imoral. É também um dos temas deste livro?

R. Sem dúvida. Embora agir de forma consiste e moral posa ser tremendamente perigoso em um mundo real... No período que vai do final da Guerra Fria até agora, queríamos sentir que tínhamos um objetivo moral, um grande líder e um plano Marshall. Queríamos nesse momento alguém que agarrasse a oportunidade de refazer o mundo. Era possível. Um grande momento e um grande líder. Ninguém apareceu.

P. No seu livro há uma cena muito emocionante e que, ao mesmo tempo, sinto que é muito pessoal para o senhor, quando o protagonista confessa à família que é um espião por tudo o que implica de mentiras dentro da família, como aconteceu com o senhor em relação ao seu próprio pai. É assim?

R. Nos serviços secretos sempre era um problema, porque em algum momento você tinha de falar com os filhos e normalmente se esperava que tivessem passado a puberdade... Era aí que acontecia essa conversa. Isso não aconteceu comigo porque ele já havia saído do serviço na época. Mas muita gente teve de passar por isso e muitas vezes a reação dos jovens era muito difícil: ‘Você mentiu para mim durante toda a juventude’. Em um sentido mais amplo, fiz coisas no serviço das quais agora me envergonho, coisas totalmente justificáveis pela ética do serviço, mas que agora as olho nuas. Em certa medida, Nat também está um pouco envergonhado e suas últimas palavras para Ed são: “Eu queria dizer que fui um homem decente, mas que já era tarde demais”. O que significa decência?

P. Voltando à cena do seu livro na República Tcheca que citou anteriormente, mostra que os russos perderam a Guerra Fria, mas venceram a pós-guerra?

R. A Rússia, graças a uma maciça operação de relações públicas, dá a sensação de que controla tudo, na realidade está falida e a situação de sua economia é terrível. Mas conduz sua política de expansão territorial, por exemplo, na Ucrânia, que está em vias de desaparecer. E os russos parecem apresentar uma frente unificada diante da desunião do Reino Unido, Europa, Estados Unidos... Putin não tem escrúpulos e pensa apenas em termos de conspiração...





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